Dica para leitura: aspas simples são para pensamentos internos, que é esse símbolo: ’
Aspas duplas para conversa mental: “
Travessão para falas em voz alta: —
Capítulo 38 — Promessa
— Beba isso — ordenou Cassie, abrindo rispidamente minha boca e me forçando a engolir outra poção. — Não posso deixar você morrer. Garrick vai me dar um sermão se isso acontecer.
O líquido desceu espesso pela minha garganta, com um gosto amargo que lembrava terra molhada e metal enferrujado. Engasguei, o reflexo de cuspir lutando contra a força dos dedos de Cassie, que seguravam firme meu queixo.
Seus olhos cor de esmeralda me perfuravam, frios e implacáveis, como se eu fosse apenas mais um frasco em seu laboratório, prestes a explodir ou se transformar em algo útil.
— Engula, Flügel — ela sibilou, sem soltar meu rosto. — Ou tudo o que passamos até agora terá sido em vão.
Forcei o líquido para baixo. Meu corpo ainda tremia por causa da poção anterior. Os canais de mana dilatados e instáveis, o ardema rugindo, ativando-se mesmo sem que eu condensasse a mana.
O sangue seco no meu queixo e peito era um lembrete cruel do que havia acabado de passar. E a menção a Garrick trouxe um novo tipo de peso. Ele era o motivo de tudo aquilo — o homem que não me via como um garoto, mas como uma arma a ser forjada.
Eu sabia que ele enxergava em mim um talento descomunal. Por isso queria que eu ficasse mais forte. Afinal, eu estava entre as fileiras de Tournand. Era natural que quisesse um aliado poderoso ao seu lado.
Cassie soltou meu rosto e recuou, limpando as mãos em seu avental manchado como se me tocar fosse uma tarefa desagradável. Pegou um frasco vazio na mesa e começou a anotar algo em seu caderno. O som do lápis contra o papel ecoava na sala fria. A luz das velas tremulavam, lançando sombras que dançavam ao ritmo do meu coração disparado.
— O que… era isso? — perguntei, minha voz rouca, quase engolida pela dor que ainda latejava em mim.
Cassie não respondeu imediatamente. Terminou de escrever, fechou o caderno com um estalo e só então me olhou.
— Uma poção de equilíbrio — disse, com um tom entre tédio e advertência. — Seus canais de mana estavam sobrecarregados. A raiz de sombreira e o pó de Leviatã da última poção quase te despedaçaram. Esta serve para reforçar seu corpo, acalmar o ardema e evitar que você se desfaça por dentro. — Fez uma pausa, um leve sorriso curvando seus lábios. — Pelo menos por enquanto.
— Por enquanto? — repeti, sentindo o pânico subir pela espinha. — O que isso significa?
Ela deu de ombros, voltando a mexer em seus frascos.
— Significa que o grosso do trabalho cabe a você. Eu posso fornecer outras poções para auxiliar, mas é o seu corpo que terá que assimilar tudo. Aguentar ou não… depende de você.
Eu queria gritar, dizer que não era justo, que não pedi para ser uma cobaia. Mas a verdade é que eu havia escolhido isso. O poder correndo em minhas veias, mesmo com toda a dor, era viciante. A ideia de me tornar mais forte, de nunca mais ser o garoto fraco e impotente que fui me mantinha ali. Naquela sala. Com Cassie. E suas promessas envenenadas.
A nova poção começou a fazer efeito. Primeiro veio um frio intenso, como se meu sangue estivesse sendo substituído por gelo derretido.
Meu ardema, antes uma tempestade, começou a se aquietar. Transformou-se numa chama constante — ainda poderosa, mas agora controlada. Meus músculos, que antes tremiam de tensão, relaxaram. Pela primeira vez em horas, consegui respirar sem sentir que meu peito ia explodir.
— Vendo a forma como você relaxou, acho que a poção começou a fazer efeito. Agora o processo de assimilação será mais tranquilo… se a minha teoria estiver correta. — Ela desamarrou as amarras reforçadas dos meus punhos e tornozelos.
Senti alívio ao me ver livre daquela pedra lisa e fria, inclinada levemente para trás.
Apesar da experiência intensa, eu não me sentia fraco. Pelo contrário — meu corpo estava forte, os músculos vibrando com poder. O único problema era a dor que percorria todo o meu corpo.
Gemendo, limpei o sangue seco do nariz e levei a mão à testa. Um brilho azul iluminou meu rosto.
— Não vai funcionar usar magia de cura — alertou Cassie, destruindo minhas esperanças de aliviar a maldita dor de cabeça e o sofrimento no corpo. — Os danos causados por essas poções não são algo que a cura comum consiga tratar.
A primeira dor vinha dos efeitos colaterais da poção anterior. A segunda, da reconstrução que esta agora estava fazendo dentro de mim.
— Certo. Obrigado por me avisar sobre algo que eu iria descobrir do pior jeito — retruquei, irritado com o tom desdenhoso de Cassie, sempre mais interessada nos efeitos das fórmulas do que no meu bem-estar.
Virei-me e saí da sala sem sequer me despedir. Do lado de fora, Capitão Eadric me esperava, junto de Nytheris, que não podia permanecer dentro de mim durante o consumo das poções.
Eadric suspirou aliviado ao me ver, como se estivesse esperando pelo pior. Com aquele suspiro, um peso parecia ter se assentado sobre seus ombros agora curvados.
Os últimos dias não foram fáceis com ele. Eadric se culpava por ter me enviado naquela missão. Mesmo que parecesse simples e inofensiva, ela acabou me traumatizando de formas que nem ele compreendia.
Ele também era contra todo esse processo de refinamento. Chegou a confrontar o major Garrick, dizendo que eu era apenas uma criança e que decisões desse tipo não deveriam ser tomadas por mim sozinho e sim com o aval dos meus responsáveis.
Depois de uma conversa reservada entre ele e Garrick, Eadric parecia ainda mais contrário à decisão, mas com um rosto de impotência ele não disse mais nada.
Nytheris estava com uma carranca em seu rosto, com fúria mal contida irradiando dele. Ele era aquele particularmente contra tudo isso.
Ele se sentia traído por eu passar por cima da opinião dele e pelo fato que por mais que ele me perguntasse sobre o que aconteceu para eu estar assim, eu não o contava sobre nada. Apenas falava a ele que eu não podia falar.
Mas seus olhos brilharam com alívio e seus músculos relaxaram levemente, se é que ele tinha músculos.
Apesar dele provavelmente saber a todo momento que eu estou vivo, havia inúmeras possibilidades do que a poção poderia fazer comigo, tornando cada segundo sem notícias parecerem horas.
Seu olhar caiu para a minha camiseta suja de sangue e o rastro seco de sangue que escorreu do meu nariz, seus labios contraíram e ele se segurou para não começar a me dar semões sobre o quão idiota eu sou por querer isso.
— Você está bem Flügel? — Nytheris foi o primeiro a falar, sua voz ansiosa e apressada.
Eu forcei um sorriso e balancei a cabeça, — Eu to bem, isso não é nada — menti entre os dentes enquanto esfregava o nariz, tentando limpar a mancha de sangue seca.
A carranca de Nytheris aprofundou, seus lábios se encolhendo a uma linha fina, ele sabia que eu estava mentindo, e teria a certeza disso quando olhasse as minhas memórias e sentisse meus sentimentos.
— Você precisa de uma magia de cura? — Eadric perguntou, estremecendo levemente quando eu o encarei, deixando ele ver claramente meu rosto que antes era cheio de vitalidade, agora com uma cor pálida doente e com olheiras profundas sob meus olhos.
— Não, obrigado. Eu mesmo já usei em mim — respondi, com um sorriso grato direcionado a ele, com a intenção de tranquilizá-lo, mas isso pareceu fazer ele se sentir pior ainda, pois sombras de arrependimento caíram sobre seu rosto quando ele me viu sorrir forçadamente.
Ele apenas acenou com a cabeça e começou a andar pelo corredor escuro, iluminado apenas por pequenas lamparinas mágicas, que não exigiam ser alimentadas por óleo, então eram ótimas para iluminar um local onde levaria muito tempo até adicionar o combustível em cada uma delas.
Caminhamos por alguns minutos, até subirmos uma escada em espiral, e chegarmos a uma porta, que ficava localizada no quartel general de Tournand, ela era bem reforçada e só as pessoas da mais alta patente tinham a permissão de possuir a cópia de uma chave.
Obviamente aquele corredor não guardava apenas aquela sala de Cassie, também guardava muitos segredos do reino de Tournand.
Nem mesmo Eadric tinha a permissão de estar aqui, ele só estava por major Garrick ter sido aquele que deixou ele entrar junto comigo.
Eadric fechou a porta reforçada, e se certificou que havia trancado ela.
— Pode ir embora, eu vou relatar tudo ao major Garrick e entregar as chaves a ele, vá descansar, Flügel — Ele disse se virando para mim, enquanto guardava a chave.
Com um aceno de despedida, eu me virei e caminhei pelo extenso corredor.
O sol estava se pondo no horizonte, quase anoitecendo. Mas sua luz ainda estava banhando Tournand com seu calor reconfortante. Eu respirei fundo, tentando ignorar a dor que entrou junto com o ar fresco.
— Ei, Flügel… — Nytheris me chamou das minhas costas, eu me virei, olhando para seu rosto pálido, com aqueles olhos negros como o breu, mas incrivelmente humanos.
— Me conte o que está acontecendo… por favor — Nytheris implorou, seu rosto com um turbilhão de emoções. Ele necessita saber.
Eu quase desabei sob o seu olhar desesperado para eu confiar nele. Eu abri minha boca, quase vacilando e contando sobre tudo. Eu também sentia que eu precisava contar a ele, esse era um fardo pesado demais para eu carregar sozinho.
Mas as palavras morreram na minha garganta quando eu lembrei da promessa das entidades. Eu balancei a cabeça, me repreendendo por quase ter falado sobre.
‘Ainda não.’
E então olhei no fundo de seus olhos e disse:
— Eu não posso falar sobre isso com ninguém. Tenho medo só de pensar nisso. Mas… eu te prometo, Nytheris, eu vou me tornar forte o suficiente para ser livre. Um dia, eu não vou precisar temer ninguém.
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