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    Dica para leitura: aspas simples são para pensamentos internos, que é esse símbolo: ’
    Aspas duplas para conversa mental: “
    Travessão para falas em voz alta: —

    Flügel estava diante de três livros cuidadosamente selecionados, alinhados sobre a mesa de carvalho polido na Biblioteca das Eras. O ar ao seu redor vibrava com a energia de magia antiga, impregnado do cheiro de couro velho e tinta seca.  As sombras das prateleiras imponentes dançavam sob a luz das constelações falsas que preenchiam o teto abobadado, imitando um céu estrelado em lenta mutação, com estrelas que pareciam pulsar em ritmos quase hipnóticos.

    A tensão da reunião na sala de estratégia ainda pesava em sua mente. As palavras sobre os vultos esfarrapados, sussurros de uma ameaça crescente e a certeza de que tudo isso era obra do Lich,  com ele próprio como alvo daquele monstro, pressionavam seus ombros como um fardo invisível. 

    Ele sentia o coração apertado, não apenas pelo perigo iminente, mas pela sensação de estar no centro de algo muito maior, algo que ele ainda não compreendia.

    Nytheris, em sua forma física ao lado de Flügel, observava os livros com um brilho astuto nos olhos negros. Seus cabelos, presos em um rabo de cavalo alto, balançavam levemente enquanto ele se inclinava, passando os dedos pálidos pelas lombadas com uma curiosidade quase predatória. Sem esperar por Flügel, ele puxou o menor dos livros, encadernado em linho azul desbotado, intitulado Fluxos do Invisível: Teorias do Teletransporte.

    — Esse aqui parece interessante — disse Nytheris, sua voz carregada de um tom seco, quase desafiador, como se já antecipasse algo útil nas páginas. Ele se sentou em uma cadeira próxima, cruzando as pernas com graça felina e abrindo o livro com um gesto preciso, as franjas de cabelo caindo sobre o rosto. Seus olhos percorreram as primeiras linhas com uma velocidade impressionante, como se ele estivesse mais devorando o texto do que lendo.

    Flügel ergueu uma sobrancelha, mas não comentou. Ele conhecia Nytheris o suficiente para saber que, quando seu familiar tomava a iniciativa, era porque algo o intrigava profundamente. Havia uma conexão quase instintiva entre eles, uma sintonia que ia além de palavras, como se a mana que os unia sussurrasse segredos que nenhum dos dois precisava verbalizar. 

    Voltando-se para os outros dois livros, Flügel hesitou por um momento. O primeiro, encadernado em couro negro com runas prateadas que pareciam pulsar fracamente, era Crônicas do Éter: Fundamentos da Invocação. O segundo, mais grosso, com bordas douradas gastas pelo tempo, trazia o título Aelara Veyris: Luz e Sombra. Sua mão foi atraída por este último, como se o nome de Aelara exercesse um puxão invisível, um chamado que ele não podia ignorar.

    — Vamos ver o que você tem a dizer — murmurou Flügel, abrindo o livro com cuidado. As páginas, amareladas pelo tempo, estavam em um estado de conservação quase milagroso, como se a magia da biblioteca as protegesse da deterioração. O texto inicial era denso, escrito em uma caligrafia fluida e elegante. As primeiras linhas declaravam:

    A gravidade é apenas um elemento como os outros, mais misterioso e poderoso, mas ainda assim manipulável pela mana. A própria mana é onipotente, fluindo através de tudo o que existe e sendo capaz de fazer o impossível se tornar possível.

    Flügel releu as linhas, a palavra onipotente ecoando em sua mente como um chamado distante. A mana, segundo Aelara, era uma força capaz de tornar o impossível possível, fluindo através de tudo e moldada por aqueles que ousavam compreendê-la. 

    Era uma ideia tão simples e, ao mesmo tempo, tão revolucionária que ele sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Ele virou a página, o coração acelerando ao mergulhar mais fundo em Aelara Veyris: Luz e Sombra. O texto, escrito na caligrafia fluida e precisa de Aelara, era denso e direto, sugerindo uma autora que não se preocupava com floreios, mas sim com transmitir conhecimento puro, como se quisesse armar seus leitores com o poder que ela mesma dominava.

    A próxima seção descrevia a técnica de Aelara para manipular a gravidade:

    As palavras são âncoras para mentes frágeis. A verdadeira magia nasce da vontade, um fio de mana tecido pela mente. Para guiar a mana da maneira que você quiser, não precisa usar recitamentos, mas sim toda a capacidade de sua mente. Com sua vontade e desejo.

    Flügel parou, os olhos fixos nas palavras. A ideia de magia sem recitação era radical, quase herética em um mundo onde os magos dependiam de cânticos e gestos precisos para canalizar mana. Aelara não apenas dominava a gravidade, mas também transcendia as limitações que outros aceitavam como naturais. Ele podia imaginar o impacto que essas palavras tiveram em sua era, a revolução que ela deve ter causado entre os magos de Tournand.

    ‘Aelara Veyris tentava até mesmo passar sua capacidade de omitir a recitação na magia para frente,’ pensou Flügel, franzindo a testa. ‘Será que ela era realmente uma boa pessoa, alguém que gostava de ajudar os outros? Seus feitos ainda pesam no mundo, mesmo agora… O mais impressionante é como ela simplesmente desapareceu do mapa, sem deixar nenhum rastro.’ Sua mente vagou, perdendo o foco nas palavras diante dele. Ele começou a raspar a unha contra o papel velho, um gesto inconsciente enquanto seus pensamentos giravam em torno de Aelara.

    ‘Talvez ela tentasse voltar para a Terra? Não… não posso assumir que ela era do mesmo mundo que eu. Mas é possível que ela estivesse com saudade de sua vida passada e tenha encontrado um jeito de retornar ao seu mundo original? Sabendo que a mana é onipotente, vejo esse cenário como plausível.’ Ele ergueu o olhar, fixando-o nos cristais que flutuavam suavemente perto das estantes, no alto da biblioteca. Aquelas pedras mágicas, imbuídas de magia gravitacional, eram idênticas às pedras de fogo que ele usava em casa para aquecer o chuveiro, mas carregavam o elemento único criado por Aelara. 

    ‘E talvez ela tenha deixado essas pedras como um legado, para que as pessoas pudessem estudar a gravidade mesmo sem ela? Um presente para um mundo que ela sabia que não poderia acompanhar sua genialidade?’

    Outra possibilidade, mais sombria, cruzou sua mente. ‘Ou… talvez ela tenha sido apagada? Como uma existência de outro mundo, chegou passando conhecimento sobre magia, afirmando que a mana é onipotente… Talvez os deuses, ou entidades ainda mais poderosas, tenham apagado sua existência para evitar que ela causasse um desequilíbrio no mundo?’ Ele soltou um suspiro longo e pesado, recostando-se na cadeira e encarando as estrelas falsas no teto.

    — Droga, eu gostaria de ter um papel para anotar tudo isso… Não vou conseguir manter toda essa linha de raciocínio só na mente — murmurou para si, a frustração tingindo sua voz.

    Nytheris, que até então parecia absorto em seu próprio livro, ergueu o olhar, um sorriso malicioso curvando seus lábios. — Perdido em pensamentos profundos, hein? Cuidado, Flügel, sua cabeça pode explodir se você continuar tentando desvendar o universo sozinho. — Sua voz era provocadora, mas havia um brilho genuíno de curiosidade em seus olhos.

    Flügel bufou, cruzando os braços. — Não é o universo, só… Aelara. E talvez o que aconteceu com ela. Você já pensou no que significa alguém como ela simplesmente desaparecer? Uma maga que criou um elemento novo, que dizia que a mana era onipotente… e depois, nada. Nenhum corpo para ser enterrado, nenhum registro, nada.

    Nytheris inclinou a cabeça, os olhos estreitando-se enquanto considerava as palavras de Flügel. — Você acha que ela era como você? Uma… — Ele baixou a voz, quase como se temesse que as paredes da biblioteca pudessem ouvir. — …reencarnada?

    Flügel hesitou, o peso da palavra pairando entre eles. Era a primeira vez que Nytheris tocava diretamente nesse assunto, e a franqueza do familiar o pegou desprevenido. Ele desviou o olhar, fixando-o nas espirais hipnóticas do mosaico no chão. 

    — Não sei. Mas é a única coisa que faz sentido. A magia gravitacional dela… é diferente. Não é algo que alguém desse mundo teria concebido tão facilmente. E se ela veio de outro lugar, como eu, faz sentido ela conseguir descobrir tão facilmente a magia gravitacional.

    Nytheris fechou o livro com um estalo, apoiando o queixo na mão enquanto encarava Flügel com uma intensidade que o fez desconfortável. — E se ela foi apagada, como você disse? O que isso significa para você? Se os deuses, ou seja lá o que for, decidiram que ela era perigosa, o que te impede de acabar no mesmo caminho?

    As palavras de Nytheris cortaram como uma lâmina, e Flügel sentiu um frio percorrer sua espinha. Ele abriu a boca para responder, mas nenhuma palavra veio. A ideia de ser apagado, de desaparecer como Aelara, era algo que ele nunca havia considerado tão diretamente. Ele sempre pensara em sua reencarnação como uma oportunidade, uma chance de realmente viver e encontrar seu propósito. Mas e se fosse uma sentença? E se sua própria existência fosse uma ameaça para forças que ele nem sequer compreendia?

    — Nada — admitiu finalmente, a voz baixa. — Mas não posso parar agora. Se Aelara deixou pistas, se ela sabia algo sobre reencarnação ou sobre como usar a mana para… sei lá, transcender esse mundo, eu preciso encontrar. Não é só curiosidade. É… — Ele hesitou, buscando as palavras certas. — É como se eu tivesse que saber por que estou aqui. E algo mais.

    Nytheris ficou em silêncio por um momento, seus olhos negros fixos em Flügel. Então, com um suspiro dramático, ele se levantou, caminhando até uma das estantes próximas. 

    — Tudo bem, herói trágico. Vamos procurar mais pistas, então. Mas se você acabar sendo apagado por um deus zangado, não diga que eu não avisei. — Ele puxou outro livro da prateleira, este encadernado em veludo roxo com o título em dourado, e o jogou na mesa com um baque. — Véus do Outro Lado: Registros de Almas Perdidas. Parece o tipo de coisa que uma maga como Aelara leria. Quem sabe? Talvez tenha algo sobre mundos além deste.

    Flügel deu um meio sorriso, mas o apelido que Nytheris lhe dera trouxe uma imensa dor ao peito, como se aquele título realmente lhe pertencesse em um futuro não muito distante.

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