Dica para leitura: aspas simples são para pensamentos internos, que é esse símbolo: ’
Aspas duplas para conversa mental: “
Travessão para falas em voz alta: —
Capítulo 46 — Louco?
Flügel pegou o novo livro, Véus do Outro Lado: Registros de Almas Perdidas, mas hesitou antes de abri-lo. Seus olhos voltaram-se para Aelara Veyris: Luz e Sombra, ainda aberto sobre a mesa.
— Depois eu leio esse, deixe-me terminar o de Aelara antes — respondeu, sorrindo levemente.
Havia algo nas palavras daquela mulher que o atraía como um ímã, uma promessa de compreensão que ele sentia estar ao seu alcance. Ele virou mais algumas páginas, relendo o trecho do experimento de Aelara com um misto de fascínio e insegurança:
“Para manipular a gravidade, é necessário compreender que ela não é apenas uma força, mas uma relação entre existências. Cada objeto, cada ser, carrega um peso que vai além do físico. A mana pode amplificar ou dissipar esse peso, dobrando o espaço ao redor. Meu primeiro sucesso veio quando visualizei o mundo não como sólido, mas como um tecido maleável, pronto para ser moldado.”
A ideia de um mundo como um tecido maleável era revolucionária para Flügel. Ele usava a magia gravitacional todos os dias, mas sua abordagem era completamente diferente.
Para ele, a magia era uma extensão de sua vontade, uma imagem mental forte que moldava os elementos à sua frente. Fogo, água, vento: todos obedeciam a um comando claro em sua mente.
Mas a gravidade? Essa era diferente. Ela havia surgido de um desejo vago, quase acidental, um pedido ambíguo que, por algum milagre, se transformara em poder.
Ele não a controlava com precisão, ele a sentia, como uma memória muscular que precisava ser constantemente refrescada. Flügel temia que, se ficasse muito tempo sem usá-la, essa habilidade pudesse simplesmente desaparecer.
‘Como ela fazia isso?’ ele se perguntou, os dedos traçando as palavras de Aelara no papel amarelado. Como ela manipulava a gravidade com tanta maestria? Ele tinha limites claros, um peso máximo que podia reduzir ou aumentar, mas Aelara parecia transcender essas barreiras.
Se ela via o mundo como um tecido maleável, talvez sua capacidade fosse ilimitada, ou pelo menos muito maior que a dele. A diferença entre eles era gritante: Flügel era um produto de conhecimento roubado de outro mundo, um truque de sorte, enquanto Aelara era uma mente brilhante, uma verdadeira gênia que reescrevia as leis da realidade.
‘Talvez seja assim que um gênio da magia veja o mundo,’ pensou, sentindo um aperto no peito.
‘Eu não sou um gênio. Sou só um impostor com uma vantagem injusta, uma mentalidade de outro tempo que me permitiu treinar desde bebê. Mas ela… ela estava além deste mundo com sua genialidade absurda.’
Flügel riu de si mesmo, um som seco e autodepreciativo que ecoou pela biblioteca silenciosa. Ele ria da própria arrogância, da ilusão de que ser um reencarnado o colocava no mesmo patamar que Aelara Veyris. Que tolo ele tinha sido.
— Será que você está enlouquecendo, Flügel? — Nytheris interrompeu, erguendo os olhos do livro que lia com uma mistura de sarcasmo e preocupação.
Flügel engasgou no riso, tentando se recompor. — C-claro que não! Eu só pensei em algo engraçado, tá bom? Não estou rindo do nada, não estou louco. — Mas as palavras de Nytheris plantaram uma semente de dúvida.
Ele conversava consigo mesmo o tempo todo, um hábito que começara na infância solitária, quando não conseguia acompanhar as conversas ao seu redor. Era normal, ele dizia a si mesmo, mas agora se perguntava: ‘E se não for?’
— Eu não estou enlouquecendo, estou? — murmurou baixinho, balançando a cabeça para afastar o pensamento. Ele não podia se deixar levar por isso agora. Havia perguntas demais, mistérios demais para resolver.
Olhando para Nytheris, que já estava absorto em Véus do Outro Lado: Registros de Almas Perdidas, Flügel perguntou: — Você já terminou aquele livro de teorias do teleporte?
— Hm? Não, mas você vai ler depois, não é? Então não tem muito motivo pra eu ler. Posso pegar a informação da sua cabeça depois — respondeu Nytheris, sem desviar os olhos das páginas.
Flügel pensou por um momento como isso realmente funcionava. Afinal, Flügel sabia de tudo sobre a sua vida… menos sobre seus retornos e sobre as entidades que ele vira quando morria e voltava, mas como ele não sabia sobre isso?
Ele não via? Ele via, mas era tudo apagado de sua mente? Flügel não sabia e tinha muito medo de tentar conversar sobre qualquer coisa relacionada àquelas entidades que o ameaçaram. Com certeza, elas eram poderosas o suficiente para cumprir com a sua palavra e colocá-lo em um inferno sem fim.
Ele só conseguia pensar em quatro formas de como aquele seu retorno poderia funcionar: assim que ele morria, ele era teletransportado para uma realidade alternativa, poucos instantes antes de sua morte acontecer.
Segunda possibilidade: reversão temporal. Talvez o mundo simplesmente rebobinasse quando ele morria, como uma fita de vídeo voltando alguns segundos. Essa teoria parecia mais simples, mas uma das mais prováveis.
Se o tempo estava sendo manipulado, quem tinha o poder de fazer isso? E por que apenas ele parecia perceber? Quem tinha o poder de brincar daquela maneira com o tempo?
Terceira possibilidade: uma simulação. E se ele não estivesse morrendo de verdade? E se todas as suas batalhas, suas mortes, seus retornos fossem parte de uma simulação elaborada?
Talvez ele estivesse preso em um teste, uma espécie de experimento mágico ou tecnológico, onde sua mente era forçada a enfrentar cenários de vida e morte até alcançar algum objetivo desconhecido. A ideia o deixava nauseado.
Ele imaginou entidades observando-o de fora, como cientistas analisando um rato em um labirinto, esperando que ele descobrisse a saída. Mas qual era o propósito? Sobreviver a um inimigo específico? Provar sua força?
Ou era apenas um jogo cruel, onde o objetivo era mantê-lo correndo em círculos para sempre? Ele olhou para suas mãos, tentando decidir se elas pareciam reais. ‘Se isso é uma simulação, como eu saberia?’
Quarta possibilidade: uma morte ilusória. E se ele nunca morresse de fato? Talvez, ao chegar ao momento da morte, sua mente fosse enganada, projetando uma ilusão de continuidade.
Nesse caso, o que ele via como “retorno” poderia ser apenas sua consciência sendo reiniciada, como um mecanismo de defesa sobrenatural. Essa era a que menos lhe chamava atenção; ele não via muito um porquê de ser esse o caso.
Flügel esfregou as têmporas, sentindo uma dor de cabeça se formar. Cada possibilidade parecia plausível, mas nenhuma oferecia uma resposta concreta.
Ele queria desesperadamente conversar com Nytheris sobre isso, mas a lembrança das entidades, suas vozes distorcidas, suas ameaças veladas, o fazia hesitar.
‘E se falar sobre isso desencadear algo pior?’ Ele já tinha tentado, uma vez, mencionar algo vago sobre “voltar” para Nytheris, mas a conversa foi interrompida por uma sensação sufocante, como se o próprio ar o estivesse avisando para ficar quieto.
— Você tá com essa cara de novo — disse Nytheris, sem levantar os olhos do livro. — Aquela cara de quem tá pensando em algo que não deveria.
Flügel forçou um sorriso. — Só tentando entender o universo, sabe? Nada demais.
Nytheris bufou, claramente não convencido, mas voltou ao seu livro. Flügel, por sua vez, olhou para o livro de Aelara sobre a mesa. ‘Tecido maleável’, ele pensou. Talvez a resposta estivesse lá, não na magia gravitacional, mas na ideia de que a realidade podia ser moldada.
Se Aelara conseguia dobrar as leis do mundo, talvez ele pudesse descobrir como dobrar as leis de suas próprias mortes. Mas, por enquanto, ele só tinha perguntas e o medo crescente de que, qualquer que fosse a verdade, ele não estava preparado para enfrentá-la.
Flügel se via em um beco sem saída. Para onde quer que ele olhasse, ele não via uma saída. Talvez fosse por ser muito fraco ou muito ignorante sobre o mundo de divindades, mas isso pesava em sua mente e o fazia se sentir tão impotente. Sua cabeça rodava cheia de perguntas e seu peito ardia com ódio.
Ele se tornara muito raivoso nesses últimos anos. Ele não sabia se podia ser culpa das poções que ele tomara, mas nutria um enorme ódio por todos aqueles que lhe causavam até mesmo o mínimo de desconforto.
Seu ódio estava dividido entre o Lich, os assustadores vultos esfarrapados e, por último, ele odiava com todas as forças as malditas entidades que apareciam todas as vezes que ele morria e retornava. Elas agiam como queriam em sua vida, forçando-o a se curvar sob suas ameaças com medo e a obedecê-las como um cachorro.
Seu ódio por essas entidades até mesmo lhe causava mal-estar, e com isso a infernal dor do efeito colateral das drogas que ele tomara para se tornar mais forte vinha com toda a sua fúria para deixá-lo com mais raiva ainda.
Aquela dor frequente irradiou de seu peito, percorrendo todo o seu corpo, como se estivesse devorando toda a sua carne com uma fome descontrolada, quase levando-o ao ponto de gritar em agonia.
Sua dor de cabeça aumentou quando a dor chegou à sua cabeça, parecendo que um torno apertasse sua cabeça com o objetivo de estourá-la. Sua ira aumentou, e em resposta a dor se intensificou. Ele se levantou, pegou os livros e disse a Nytheris:
— Vamos para casa, amanhã o dia vai ser longo e eu estou cansado. — Forçou-se a abrir um sorriso calmo. Nytheris assentiu, percebendo que Flügel estava lhe dando um sorriso forçado. E então ele se levantou e também guardou seu livro.
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