Índice de Capítulo

    Dica para leitura: aspas simples são para pensamentos internos, que é esse símbolo: ’
    Aspas duplas para conversa mental: “
    Travessão para falas em voz alta: —

    Flügel acordou cedo no dia seguinte, antes mesmo de o sol raiar. Já estava de pé e pronto, sentindo-se revigorado. Não havia fadiga nem dor; seu corpo estava bem descansado, e ele se sentia disposto para a expedição que o aguardava.

    Colocou a mochila nas costas após verificar os itens que havia preparado na noite anterior. Tudo estava em ordem: comida desidratada, pedras mágicas de fogo, roupas extras, papel e lápis para anotar qualquer detalhe que pudesse parecer importante. Bateu o pé duas vezes no chão, confirmando que as botas estavam bem amarradas. 

    Satisfeito, ajeitou a capa rústica que comprara anos atrás, perfeita para caminhadas longas. Também vestia seu par de luvas, adquiridas no mesmo dia que a capa. Apesar do uso diário, elas permaneciam em perfeito estado, provavelmente pela qualidade excepcional do couro encantado.

    Nytheris, ao seu lado, não carregava bagagem. Como não precisava comer, beber ou carregar roupas já que podia conjurar novas peças com sua mana, ele dispensara a ideia de uma mochila. Estava parado, ponderando entre duas capas pretas que havia criado. A única diferença entre elas era que uma tinha capuz e a outra não.

    — Estou pronto, Nytheris. E você? — perguntou Flügel, olhando para o familiar, que segurava as capas com uma expressão pensativa.

    Nytheris virou-se, estendendo ambas as capas. — Com qual eu vou? — perguntou, os olhos negros brilhando com um toque de indecisão.

    Flügel avaliou as opções, o olhar passando de uma capa para outra, e respondeu com um sorriso:

    — Acho que a sem capuz cai melhor em você, por causa do cabelo longo — Apontou com o queixo para a capa sem capuz.

    Nytheris assentiu, jogando a capa sem capuz sobre os ombros com um movimento elegante. A peça se ajustou perfeitamente, como se fosse feita sob medida, embora Flügel soubesse que era uma criação recente da mana de Nytheris. O cabelo longo e preto do familiar caiu sobre a capa negra, quase se fundindo com ela.

    — Por que não usa uma capa branca? — sugeriu Flügel, inclinando a cabeça. — Combinaria com seu cabelo. Você está sempre de preto.

    Nytheris ergueu uma sobrancelha, considerando a ideia. Com um gesto sutil, a mana ao redor da capa se desfez e reformou, agora num branco puro como neve. O contraste com o cabelo negro de Nytheris era impressionante, dando-lhe uma aparência majestosa. Sua pele pálida harmonizava com a nova cor.

    — Nada mal — admitiu enquanto assobiava levemente. com um sorriso que misturava surpresa e diversão. 

    — Vamos logo, major Garrick disse que precisamos chegar cedo — completou Flügel, ajustando a mochila nos ombros com um movimento firme. — Ele quer que todos relembrem suas posições e revisem o plano antes de partirmos. Não podemos nos atrasar. 

    Caminharam com cuidado para não acordar Elijah e Mael com os barulhos de bota, até eles chegarem na sala, onde Sophia e Aragi esperavam sentados, com Aragi abraçado a Sophia, que estava com uma cara de sono, como alguém que não dormiu a noite toda. Aragi estava na mesma, mas não deixava isso transparecer, como se soubesse que se Flügel o visse da mesma maneira, só estaria colocando mais fardos sobre os ombros de seu filho. Sophia estava com o rosto cansado contra o pescoço de Aragi, como se seu cheiro a deixasse mais confortável.

    Aragi parou com o cafuné que estava dando em Sophia e a chamou docemente — Amor, Flügel está pronto para ir —, Sophia parecia estar um pouco com raiva por ter sido acordada de um sono que ela tanto merecia nos braços de seu amado, mas ela se virou e encarou Flügel.    

    Flügel segurou o olhar de Sophia por um momento, sentindo o peso daqueles olhos cheios de emoção crua. Havia algo ali que ele não conseguia decifrar completamente uma mistura de medo, culpa e um apego que o fazia sentir um aperto no peito. Ele desviou o olhar, incapaz de sustentar a intensidade, e ajustou a mochila nos ombros como se o gesto pudesse dissipar o desconforto.

    — Estou pronto — disse ele, a voz firme, mas com um toque de suavidade que não costumava usar em casa. — Não se preocupem, vai dar tudo certo.

    Sophia levantou-se lentamente, desvencilhando-se do abraço de Aragi com um movimento hesitante. Seus cabelos castanhos, normalmente presos em um coque impecável, estavam soltos, caindo em ondas desleixadas sobre os ombros. Ela cruzou os braços, como se tentasse se proteger do frio que não estava lá, e deu um passo à frente.

    — Flügel… — começou, mas parou, mordendo o lábio inferior. Seus olhos brilhavam com lágrimas contidas, e sua voz tremia levemente. — Só… volte, está bem? Não faça nada estúpido lá fora. Promete.

    Aragi colocou a mão no ombro dela, um gesto gentil, mas firme, como se tentasse ancorar suas emoções. Ele olhou para Flügel, seus olhos pretos carregando uma seriedade que contrastava com sua habitual leveza. — Ela tem razão, sabe? Você é jovem, mas já enfrentou coisas que a maioria de nós nem sonha. Não deixe isso subir à cabeça. Fique esperto. 

    Flügel abriu a boca para responder, mas as palavras de Aragi o pegaram desprevenido. Ele ainda não sabia lidar com uma figura paterna e conversas emocionais. Sentiu Nytheris se mexer ao seu lado, a presença do familiar um lembrete silencioso de que ele não estava sozinho, mesmo naquele momento de tensão familiar.

    — Eu sei me cuidar — respondeu finalmente, forçando um sorriso que não chegou aos olhos. — Não é a primeira vez que enfrento algo perigoso. E não vai ser a última.

    Sophia franziu a testa, claramente insatisfeita com a resposta. — Não é sobre você se cuidar, Flügel! É sobre… — Ela parou, respirando fundo, como se tentasse controlar uma onda de frustração. — É sobre não carregar tudo sozinho. Você sempre faz isso. Sempre age como se fosse o único que pode resolver as coisas. Mas você não precisa. Não dessa vez.

    As palavras dela cortaram mais fundo do que Flügel gostaria de admitir. Ele engoliu as palavras que pensou em dizer, e então com uma voz serena disse:

    — Prometo que vou voltar — a  voz mais suave agora. — E não vou fazer nada estúpido. Não mais do que o necessário, pelo menos.

    Sophia deu um sorriso fraco, mas seus olhos ainda estavam carregados de preocupação. Aragi apertou o ombro dela antes de puxá-la levemente contra o seu corpo. — Vamos, Sophia. Deixe o garoto respirar. Ele tem Nytheris com ele, e Garrick não vai deixar ninguém fazer besteira. Certo, Nytheris?

    Nytheris, que até então observava a cena em silêncio, inclinou a cabeça, a coloração branca da capa refletindo a luz fraca da sala. — Claro. Ele é o meu criador, meu objetivo é mantê-lo vivo, com a minha vida eu o protegerei, não importa os custos irei manter ele seguro!  — Seu tom era sério e estava cheio de promessas, Nytheris estava ao máximo tentando demonstrar o seu comprometimento com tal promessa.

    Aragi ficou surpreso com a devoção de Nytheris a Flügel e Sophia finalmente relaxou os ombros, embora seu olhar ainda seguisse Flügel enquanto ele se dirigia à porta. — Cuide-se, Flügel — disse ela, quase em um sussurro, como se temesse que o destino pudesse ouvi-la.


    A chuva da noite anterior havia deixado as ruas de Tournand brilhando sob a luz pálida do amanhecer. O ar estava fresco, carregado com o cheiro de terra molhada e o leve aroma de fumaça que vinha das chaminés da cidade. Flügel e Nytheris caminhavam em direção ao ponto de encontro marcado por Garrick, o portão menor de Tournand, ao sudoeste do reino. 

    Enquanto atravessavam as ruas ainda silenciosas, Flügel não conseguia afastar a imagem do olhar de Sophia. ‘Ela está com medo de me perder’, pensou, e a ideia o incomodava mais do que ele gostaria. Ele sabia que sua vida em Tournand, apesar das tensões em casa, era um lar, algo que ele não deu valor em sua vida passada, quando se isolou de tudo e todos por medo… por isso que ele não iria viver com medo novamente. Mas o peso de ser um reencarnado, de carregar memórias de mortes e retornos, o isolava, mesmo daqueles que se importavam com ele.

    Nytheris, caminhando ao seu lado, ele estava com as suas bochechas pálidas coradas de vergonha. 

    — Porque você está corado? — Flügel perguntou, encarando o rosto vermelho de Nytheris se intensificar.

    Nytheris desviou o olhar, o rubor em suas bochechas pálidas ficando ainda mais evidente sob a luz suave do amanhecer. Ele ajustou a capa branca com um gesto rápido, como se o movimento pudesse esconder sua expressão. — Não é nada — murmurou, a voz um pouco mais aguda do que o normal, quase defensiva. — Só… não estou acostumado a fazer promessas tão sérias na frente dos outros. Especialmente com toda essa… — Ele gesticulou vagamente para o ar, como se tentasse apontar para a tensão emocional que ainda pairava. — Essa coisa de família.

    Flügel ergueu uma sobrancelha, surpreso com a admissão. Nytheris raramente mostrava vulnerabilidade, sempre mantendo uma fachada de impassível confiança. Ver seu familiar corado e desconcertado era algo novo, e, por um momento, Flügel sentiu uma pontada de ternura. — Você? Envergonhado? — disse, com um sorriso brincalhão. — Quem diria que o grande Nytheris, voz da razão, ficaria vermelho por causa de uma promessa.

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