Índice de Capítulo

    Dica para leitura: aspas simples são para pensamentos internos, que é esse símbolo: ’
    Aspas duplas para conversa mental: “
    Travessão para falas em voz alta: —

    Ao cair da noite sobre Tournand, os turnos de vigia já haviam se revezado três vezes. Cada dupla mantinha a guarda por três horas seguidas. Flügel, cujo turno já havia terminado, agora descansava ao lado de Borghen. A conversa inacabada entre eles foi finalmente concluída e, nela, Flügel aprendeu não apenas sobre a história do gigante, mas também sobre toda a sua raça.

    Borghen descendia de Durgan, um exilado conhecido pejorativamente como “O Gigante Anão”. Rejeitado por sua vila por ser considerado defeituoso, Durgan transformou sua maldição em liberdade. Ele vagou pelo mundo, desbravando diversas civilizações sem jamais se fixar em nenhuma. Ao contrário dos outros gigantes, que raramente se aventuravam para além de seus domínios, ele abraçou uma vida de exploração, alcançando recantos que um gigante de porte comum jamais alcançaria.

    Mesmo com o nanismo, a força colossal de sua linhagem corria em suas veias. Essa vantagem natural, somada ao dinheiro que ganhava em missões como aventureiro, financiava suas longas viagens. Ele percorreu quase todos os continentes, exceto os Ermos Infernais e o distante continente de Celestra.

    Durgan viveu assim por muitos anos, mas sua vida de andanças teve um fim inesperado. Enquanto cumpria uma missão para a guilda de aventureiros em uma pequena vila humana, ele se apaixonou por uma mulher local. Decidiu, então, abandonar a estrada e se estabelecer ali, na esperança de construir uma vida ao seu lado.

    Flügel tinha muitas perguntas sobre a linhagem de Durgan e a vida do Gigante Anão, mas decidiu não fazê-las. Ele ponderou que, por ser uma história tão antiga sobre o ancestral de uma sub-raça inteira, não deveria tomar tudo como verdade absoluta. Além disso, Borghen talvez não tivesse todas as respostas, o que poderia criar um clima estranho entre eles. Por isso, preferiu guardar para si suas curiosidades.

    E pensar que eu reencarnaria em um mundo cheio de gigantes anões, elfos-espírito, familiares, liches, monstros… Quantas raças além dessas ainda existem? Em meio a todas as tempestades que já vivenciara neste mundo, ele ainda se agarrava à ideia de se tornar um aventureiro de verdade: não um que matava monstros por dinheiro, mas um que desbravava o desconhecido. Anseava por se aventurar, conhecer todos os cantos do mundo e explorar masmorras.

    Ele não levou uma vida ruim, levou?, Flügel se perguntou, divagando sobre como seria sua própria jornada. Para ele, viajar pelo mundo seria mais fácil; afinal, ele podia voar. Deixou-se levar pelos pensamentos por um tempo, até Nytheris se sentar ao seu lado.

    — Você se machucou muito quando estávamos no meio daquela confusão? — Seu tom era cansado e preocupado, e seu rosto se contorcia em uma carranca de impotência. Ele percebera que era fraco, que não conseguiria proteger Flügel da maneira que desejava. Aquela batalha lhe servira como um aviso.

    — Bom, um pouco, mas a sua armadura me salvou. Eu teria morrido sem ela, com certeza. Obrigado por me salvar, Nytheris — disse Flügel com um sorriso grande e gentil, percebendo que seu familiar estava incomodado. Contudo, algo pesava em sua mente há algum tempo, e ele decidiu que era hora de tirar isso a limpo. Nytheris corou com o sorriso e o agradecimento.

    — E você? — Flügel deixou todo o peso em sua mente transparecer em seu tom, ele temia que o pior cenário fosse o mais provável.

    — Hm… Eu sou imortal, então não me machuquei, pelo menos não de forma permanente — disse Nytheris, um pouco desconcertado com a pergunta.

    — Não, quero dizer… você sente dor? — Isso martelava na cabeça de Flügel desde que soube que Nytheris tinha consciência própria, mas ele nunca perguntou, com medo da resposta.

    Nytheris hesitou, coçou a nuca desajeitadamente e então disse: — Sinto, mas passa rápido, já que eu me curo na mesma velocidade. Não é tão ruim — ele sorriu, tentando dar leveza a esse novo fato.

    Flügel suspirou, um peso ainda maior caindo sobre seus ombros. A única pessoa que sabia de quase tudo sobre ele, sofria a cada batalha, e ele nunca fizera nada a respeito. Novamente, estava negligenciando os sentimentos dos outros e focando demais em si mesmo. Isso o fez sentir uma enorme repulsa, perguntando-se como conseguia errar tantas vezes sem nunca aprender.

    — Me desculpe, Nytheris. Eu vou arrumar uma forma de te proteger. Mas, por que você não cria uma armadura para si mesmo?

    — Flügel, criar uma armadura para mim gastaria muito da sua mana, e eu sei que você precisa dela para se manter seguro. Eu me regenero rápido, então não faz sentido tirar recursos de você para me proteger. Minha prioridade é te manter vivo, não me preocupar comigo… E seria bem difícil manter as duas armaduras e as espadas ativas enquanto luto.

    Flügel olhou para Nytheris, a culpa ainda pesando em seu peito. Sabia que seu familiar estava certo, mas isso não tornava o sentimento mais leve. A ideia de Nytheris sofrendo, mesmo que por instantes, o corroía por dentro. Ele queria dizer algo, mas as palavras pareciam presas na garganta. Nytheris, percebendo o silêncio pesado, desviou o olhar para o céu, onde as últimas luzes da noite davam lugar ao brilho das estrelas.

    — Não precisa se preocupar tanto, sabe? — disse Nytheris, tentando quebrar o clima. — Eu fui feito para isso, Flügel. Para estar ao seu lado, para te proteger. Um pouco de dor não é nada comparado a… — Ele hesitou, escolhendo as palavras com cuidado. — Comparado a te perder.

    Flügel sentiu um aperto no peito. Queria argumentar, mas a sinceridade no tom de Nytheris o deteve. Em vez disso, apenas assentiu, deixando o silêncio se instalar entre eles novamente. Isso, porém, não significava que havia desistido da ideia de proteger Nytheris adequadamente.

    O vento frio soprava suavemente, carregando o som distante das folhas e o crepitar da fogueira onde Borghen agora roncava baixo. Depois de alguns minutos, Flügel finalmente falou, a voz baixa, quase um sussurro: — Você já pensou… no que quer para si mesmo? Além de me proteger, quero dizer.

    Nytheris virou o rosto, surpreso. Seus olhos, que brilhavam com um leve tom sobrenatural, pareciam perscrutar a face de Flügel. — O que eu quero? — Ele riu, um som curto e desajeitado. — Eu sou seu familiar, Flügel. O que eu quero é o que você quer. Sua aventura, seus sonhos… são os meus também.

    — Mas e se eu quiser que você tenha seus próprios sonhos? — insistiu Flügel, inclinando-se para frente. — Você tem consciência, sente dor, pensa. Você é mais do que apenas… uma extensão de mim.

    Nytheris ficou em silêncio por um momento, coçando a nuca, um hábito que Flügel percebeu que ele tinha quando estava desconfortável. — Não sei, Flügel. Nunca pensei nisso assim. Eu existo por você, para você. Mas… — Ele fez uma pausa, olhando para o céu estrelado. — Se eu tivesse que escolher algo, acho que gostaria de ver o mundo com você. Não só lutar, mas… explorar. Como aquele gigante anão que o Borghen mencionou. Conhecer lugares, pessoas, histórias. Talvez isso seja o mais próximo de um sonho que eu consigo imaginar. Eu quero viver.

    Flügel sorriu, um sorriso pequeno, mas genuíno. A ideia de explorar o mundo com Nytheris, não como mestre e familiar, mas como companheiros, aqueceu seu coração.

    — Então está combinado — disse ele, estendendo a mão para Nytheris. — Vamos desbravar o mundo. Não só lutar, mas descobrir o que há lá fora. E, Nytheris… — Ele hesitou, a voz firme, mas carregada de emoção. — Vamos encontrar um jeito de te proteger também. Não vou aceitar que você sofra por mim.

    Nytheris olhou para a mão estendida e, após um instante, segurou-a com firmeza. Seus olhos brilhavam com algo que Flügel não conseguia nomear, talvez gratidão, talvez esperança. — Está bem, Flügel. Vamos fazer do seu jeito. Mas só se você prometer não se culpar tanto. Somos como almas gêmeas, juntos para sempre.

    — Huh… certo… — respondeu Flügel, arqueando uma sobrancelha, tentando decifrar a expressão de Nytheris.

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