Capítulo 53 — O Coração do Major

O machado de Borghen desceu em um arco letal, e seu rugido parecia o de um urso furioso. Quando ele estava prestes a acertar o Lich e esmagá-lo contra o chão, o Lich se transformou em fumaça e se desfez, aparecendo ao lado de Borghen. Da mesma maneira que seu maldito lobo fez anos atras contra Flügel e Nytheris. 

Flügel avançou assim que Borghen errou seu ataque. Ele já estava investido na mana negra e protetora de Nytheris, com sua armadura fazendo-o quase se camuflar na escuridão da noite. Sua espada não era como as de sempre: ela era instável, como se fosse feita de fogo negro oscilante. Apenas o cabo era mais denso e estável. Ele correu em passos largos até o Lich, encurtando a distância ligeiramente.

Ele estava a apenas alguns metros do Lich quando o ouviu dizer com uma leveza inesperada:

— Isso é perigoso.

Flügel duvidaria que realmente não fosse. Aquilo era a sua magia mais destrutiva, perigosa até para ele mesmo. Mana negra pura, que corroía tudo que possuísse mana até não sobrar nada. Isso incluía tudo e todos diante do pensamento de Aelara Veyris.

Um sorriso vitorioso se formou nos lábios de Flügel, sob o elmo. Estava a um passo de consumir o Lich com seu fogo sombrio. O fim estava próximo.

De repente, o chão tremeu. Um estrondo de madeira se partindo rasgou a noite à sua direita. Ele mal teve tempo de vislumbrar um vulto colossal, maior que qualquer urso ou até mesmo que Borghen, irrompendo da linha das árvores. Antes que pudesse sequer virar a cabeça, uma muralha de carne e fúria o atingiu. O mundo se tornou um borrão violento e silencioso.

Ele voou pelo ar como um boneco de pano, com um grunhido de dor que morreu na garganta. Suas costas se chocaram contra um carvalho antigo com um baque surdo e pesado. A árvore estremeceu da raiz à copa, soltando uma chuva de folhas, mas seu tronco se manteve inflexível. Flügel, no entanto, não tinha a mesma resiliência. O último som que sua mente registrou foi o estalar nauseante de seus próprios ossos antes que a escuridão o engolisse por completo.

— Borghen, o colosso é seu! Thalion, nos dê suporte! — a voz de Garrick soou como um trovão, seus olhos de comandante cravados na nova ameaça, ignorando completamente o vulto de Flügel que fora arremessado segundos antes. A criatura era uma fortaleza ambulante de aço e fúria, empunhando uma marreta capaz de esmagar muralhas. No entanto, algo estava errado. A face de seu enorme pavês¹  sibilava e se desfazia, corroída por veios de energia negra que rastejavam pela superfície como um câncer. O colosso salvara o Lich, mas o simples contato com a lâmina profana de Flügel deixara sua marca. Ele teve que descartar o seu enorme escudo, senão seria ele próprio a ser corroído.

Nytheris correu direto para o corpo imóvel de Flügel, desmaterializando o seu capacete. Seus olhos se arregalaram quando viu o sangue escorrer pela boca e nariz de seu criador. Seus lábios se contorceram, sua mão segurou a bochecha dele e ele não perdeu tempo e começou a recitar:

— Ó fonte sagrada de toda a vida, ouça meu chamado e conceda sua graça. Sobre este corpo ferido, derrame sua luz restauradora. Que o osso partido se una, que a carne rasgada se feche, e que o sopro da vida retorne a estes pulmões com vigor. Pelo poder que me foi confiado, eu ordeno. GRANDE CURA!

Assim que a luz da ‘Grande Cura’ o envolveu, a respiração agônica de Flügel se aprofundou, estabilizando-se quase que instantaneamente. O poder exigido por um feitiço de nível Soberano era imenso, e a magia drenou uma vasta porção da própria mana de Flügel como combustível para o milagre. Em troca, seu corpo foi restaurado quase por completo. Um custo de poder ínfimo a se pagar pela própria vida.

Nytheris se aliviou quando a respiração de Flügel voltou ao normal e ele abriu os olhos. Flügel ofegou por ar e olhou ao redor, confuso, como se não soubesse o que havia acontecido.

— O que… aconteceu? Onde…? — A voz de Flügel era um sussurro fraco, sua mente uma tela em branco, tentando processar o que acontecera antes de tudo se apagar. Ele estava se sentindo tonto pela quantidade de mana que a magia de cura consumiu, mesmo não sendo muito comparado ao vasto oceano de mana que ele possuía, perder tanta mana de uma só vez causava um efeito parecido com o de tirar muito sangue de uma vez.

— Você foi atingido e desmaiou, precisei até usar a Grande Cura em você… — A voz de Nytheris estava trêmula. Ele estava quase sucumbindo à emoção da cena em que vira Flügel voar como um brinquedo após ser atingido por aquela criatura. Ele fungou e passou o antebraço nos olhos, para secar as lágrimas teimosas que ameaçavam escorrer. Agora não era momento para ficar sentimental.

Ainda atordoado, Flügel forçou seu olhar a varrer a clareira, buscando no caos alguma âncora para seus pensamentos fragmentados. O que encontrou foi um pesadelo em pleno andamento. Uma nova figura dominava o campo de batalha, um colosso de armadura que fazia até mesmo o corpulento Borghen parecer um anão. Ele brandia uma marreta do tamanho de uma bigorna com uma facilidade aterradora, cada golpe errático abrindo uma nova cratera no chão. Ao lado, descartado, um pavês gigantesco testemunhava o poder que o atingira: suas bordas não estavam apenas corrompidas, elas se desfaziam em tempo real, com o metal se desfazendo em pó sob o efeito da mana profana.

Assim que ele viu aquele escudo, as peças se encaixaram em sua mente. Suas memórias desconexas tomaram uma forma que fazia sentido, e ele conseguiu formar uma boa linha de pensamentos, colocando todos os acontecimentos em ordem.

— Vamos ajudá-los — Flügel se levantou, criando novamente a espada de mana pura e negra. Ele olhou para Nytheris e disse: — Obrigado por me salvar novamente.

Nytheris não perdeu tempo respondendo e criou uma nova armadura para Flügel. Desta vez, tornou as placas da armadura ainda mais grossas e resistentes. Flügel estava vivo por um verdadeiro milagre, e pela primeira vez Nytheris agradeceu a decisão dele de tomar aquelas poções.

Assim que a armadura cobriu todo o seu corpo, ele olhou para Borghen e Garrick. Borghen estava segurando o colosso sozinho, mas Garrick, Dellia, Koto e, com o auxílio de Thalion, estavam enfrentando o Lich. Antes que Flügel pudesse decidir qual deles ajudar, o chão ao redor de Thalion se incinerou, o fogo se amontoou e uma entidade se ergueu das densas chamas.

No instante em que Garrick e Dellia foram arremessados para trás, uma brecha se abriu. Com a precisão mortal que lhe era característica, Thalion avançou com sua criatura contra o Lich. Vendo a oportunidade, Flügel partiu para se juntar ao ataque. Ele sabia que sua mana negra era o anátema perfeito para a não-vida do imortal, mas a lógica era apenas uma desculpa para o ódio que o consumia. Ele estava determinado a ser aquele que esmagaria aquela abominação com as próprias mãos.

A salamandra elemental invocada por Thalion era uma torrente de fúria ígnea. O ar ao seu redor ondulava com um calor sufocante e, a cada movimento, ela deixava um rastro de solo vitrificado e uma chuva de brasas. Enquanto os outros recuavam instintivamente, Flügel avançava. Protegido pela armadura encantada e pela cura passiva que já pulsava sob sua pele, ele via o caos não como um perigo, mas como a cobertura perfeita para seu ataque. 

A criatura de fogo se lançou, abrindo fauces de chamas laranja e vermelhas intensas em uma tentativa de engolir o Lich. O imortal, no entanto, sequer se moveu. Ele apenas fez um gesto displicente com a mão, e do ar rarefeito acima, um iceberg colossal e antinatural despencou. Não houve um grito de dor do elemental, apenas o chiado ensurdecedor de um milhão de chamas se extinguindo de uma vez. O impacto foi um trovão de gelo e vapor, esmagando a criatura e salpicando o campo de batalha com fragmentos de fogo moribundo.

Flügel se impressionou com tal demonstração de poder instantâneo, mas não parou. Ele também já sentia que Garrick, Dellia e Koto estavam avançando. Podia sentir a sua mana sendo gasta em pulsos curtos e potentes ao longe, significando que Nytheris estava auxiliando Borghen a derrotar o colosso. A ofensiva era total. Não tinha como parar agora.

1. um escudo longo e largo, projetado para proteger completamente o corpo do combatente[↩]