Dica para leitura: aspas simples são para pensamentos internos, que é esse símbolo: ’
Aspas duplas para conversa mental: “
Travessão para falas em voz alta: —
Capítulo 58 — Namorada
Mal todos se acomodaram e Flügel já atacava o prato. A diferença entre as carnes tornou-se clara na segunda colherada: a de gado se desfazia na língua, macia e suculenta, enquanto a de javali, mais fibrosa e rústica, o forçava a mastigar com vontade. Ele apanhou uma porção de grãos e, ao comê-los, sentiu o calor da refeição se espalhar pelo corpo, um conforto bem-vindo que partia de seu estômago.
Sentindo o peso dos olhares sobre si, Flügel ergueu o rosto e encontrou todos à mesa o encarando, boquiabertos. A surpresa deles o fez notar a própria voracidade: seu prato já estava quase vazio. Ele engoliu em seco, um pouco sem graça, e lambeu os lábios antes de dizer: — Desculpem. A fome da expedição falou mais alto… e a comida está excelente.
— Agradeça ao Nytheris, então — disse Sophia com um sorriso. — Foi ele quem teve a ideia das carnes e preparou o molho. Eu só cuidei dos vegetais e do ruz. Ao ouvir seu nome, Nytheris estufou o peito, com um ar de importância, visivelmente aguardando os elogios.
Flügel levou uma colherada de ruz à boca e falou, um pouco surpreso: — Sério? Eu pensei que o Nytheris só ficava importunando a senhora o tempo todo.
— Humph, eu a ajudo mais do que você — resmungou Nytheris, com uma tensão contida na voz. Ele virou o rosto bruscamente e focou no próprio prato.
— Opa, não me diga que ficou ofendido. Era brincadeira — disse Flügel, com um sorriso leve. — A comida está deliciosa, chef Nytheris. Obrigado de verdade.
A menção ao título de “chef” fez os ombros de Nytheris relaxarem um pouco, e um esboço de sorriso surgiu em seus lábios antes que ele o suprimisse, mantendo o olhar teimosamente fixo na comida.
— Como foi a expedição, Flügel? — perguntou Aragi, depois de levar a primeira colherada à boca.
Flügel fez uma pausa calculada, como se estivesse organizando os pensamentos, embora já tivesse o relatório ensaiado. — Foi tranquilo. Tivemos que lutar contra alguns monstros, inclusive um bando de Goblins.
Ao ouvir a menção da batalha, Sophia prendeu a respiração visivelmente.
Para qualquer outra pessoa, uma expedição na floresta era sinônimo de batalha, as matas eram repletas de feras. A verdadeira anomalia seria não encontrar nenhuma, mas para Flügel, essa era a regra. Ele tinha suas suspeitas, é claro. Uma desconfiança de que o caminho à sua frente era silencioso demais, quase como se o Lich estivesse… “limpando” o terreno antes que ele chegasse.
— Encontramos um grupo de monstros desconhecidos, mas não foram um grande desafio. O mérito foi todo do Borghen, com aquela força toda, ele deu conta de quase tudo sozinho. Eu mal precisei lutar.
As palavras saíram fáceis, mas um gosto amargo ficou em sua boca. Ele odiava enganar aqueles rostos felizes e calorosos, mas a verdade era um luxo que ele não podia se permitir.
Não podia contar a verdade. Não podia descrever o pânico de ser cercado por dezenas de criaturas, o momento em que sentiu a vida por um fio, ou a humilhação de ser arremessado pelo ar como um boneco de pano, impotente.
— E… descobriram alguma coisa? — A pergunta de Sophia saiu hesitante, e a sombra da preocupação ainda persistia em seu olhar.
— Ainda não. Amanhã teremos outra reunião e provavelmente sairá outra expedição, ou algo maior, como uma missão. Mas não sei se vou participar… — Ele fez uma pausa e então se virou para os irmãos. — E vocês, Mael e Elijah? Como vai a academia?
Flügel mudou de assunto deliberadamente. Sabia que a atenção excessiva sobre si poderia despertar o ciúme deles e queria cortar isso pela raiz.
— Vou bem. O mestre disse que minha esgrima está ótima, e eu realmente me sinto mais forte… — A voz de Mael foi perdendo a força no final. Ele baixou o olhar para o prato intocado, empurrando a comida de um lado para o outro com o garfo, a boca se abrindo como se para dizer mais alguma coisa, mas se fechando em silêncio.
— Em magia, estou prestes a me tornar um perito médio! E na esgrima, falta pouco para o nível de perito alto! — anunciou Elijah, com um sorriso que mal cabia no rosto.
— Isso é impressionante! — disse Flügel, virando-se de Elijah para o outro irmão. — E você, Mael? Quais são os seus níveis?
— Em magia, eu sou nível perito baixo. Na esgrima, sem o ardema, sou perito alto, com o ardema, primarca baixo…
Flügel ficou em silêncio por um momento, avaliando a ideia. Então, ele se decidiu. — Vocês são talentosos… hm… — Ele olhou para Aragi e Sophia. — Tudo bem se eu tentar conseguir uma vaga para eles na Aelara Veyris?
A simples menção da Aelara Veyris, a mais renomada academia de Tournand, fez com que todos os olhares na mesa se voltassem para ele, carregados de surpresa.
— Você… conseguiria fazer isso? — A pergunta de Sophia saiu carregada de uma dúvida genuína. Ela simplesmente não via como, pois sabia que pagar as duas caras inscrições da Aelara Veyris estava muito além das posses da família.
— Meu professor é um descendente direto da linhagem Aera Veyris. Tenho quase certeza de que, se eu pedir, ele pode conseguir uma indicação. — Ele olhou para os irmãos. — A esgrima do Mael já o qualificaria, e o talento de Elijah fala por si. Se vocês quiserem, eu posso conversar com ele.
Dito isso, sua compostura pareceu se quebrar. Ele atacou o prato com uma fome renovada, devorando o resto da comida em segundos.
O único som na mesa por um longo momento foi o tilintar apressado da colher de Flügel contra o prato de cerâmica. O nome “Aelara Veyris” não representava apenas um sonho impossível, mas um centro de pessoas bem sucedidas, o simples fato entrar ali por indicação era, por si só, chocante.
Foi Elijah, como sempre, o primeiro a quebrar o silêncio. Sua empolgação era visível, mas agora vinha misturada com uma dose de espanto pelo poder que o irmão sugeria ter.
— De graça? Como a sua, Flügel? — A voz dele era um sussurro maravilhado. — Você… você tem influência para fazer isso? De verdade?
Ao contrário da explosão do irmão, Mael parecia ter se encolhido. Seus ombros caíram um pouco, e o olhar, que antes estava no prato, agora se fixava em suas próprias mãos sobre a mesa. A questão não era o custo. Ele parecia estar dividido, entre querer ir e não querer.
Aragi levantou uma mão calmamente, e a empolgação de Elijah se conteve. Ele, que estivera quieto durante a maior parte do jantar, observando, finalmente falou. Sua voz era baixa e séria, e seus olhos não deixavam Flügel, que já havia limpado metade do que restava em seu prato.
— Flügel. — Aragi esperou que o filho erguesse o olhar. — Nós sabemos que a sua situação na academia é especial. E somos gratos por isso. Mas o que você está oferecendo é algo de outra magnitude.
Ele fez uma pausa, o peso de suas próximas palavras preenchendo a sala. Sophia concordou com um aceno sutil, a mesma preocupação no rosto.
— Conseguir uma bolsa de estudos já é um milagre. Duas, por um simples pedido? Favores dessa escala criam dívidas, Flügel. Dívidas que não se pagam com moedas. A pergunta de sua mãe não era sobre como, mas sobre o porquê. Por que esse seu professor, um descendente da linhagem Veyris, lhe concederia tanto poder?
A pergunta pairou, mais afiada que uma lâmina. Ela acertou Flügel em cheio, e a fome voraz que o dominava pareceu se evaporar. A colher parou. Ele largou sobre o prato agora vazio, o barulho ecoando no silêncio.
Ele limpou a boca com as costas da mão, o olhar distante.
— Ele é complicado — disse Flügel, a voz agora desprovida de qualquer leveza. — Ele pode parecer ser duro e rígido, mas ele é gente boa. Não acho que ele não pediria nada em
troca.
Flügel olhou para os rostos de sua família: a esperança nos de seus irmãos, a cautela nos de seus guardiões.
— E tenho certeza de que ele não pediria nada em troca — continuou Flügel, vendo a cautela nos rostos de Aragi e Sophia. — É uma questão de mérito. A esgrima de Mael é excelente e o talento de Elijah é inegável. Para a academia, não há perda em aceitar alunos de elite, na verdade, eles só ganham. Realmente não vejo por que recusariam.
— Eu quero ir! — A voz de Elijah cortou o silêncio, quase um grito. Ele se levantou da cadeira de um salto, os punhos cerrados sobre a mesa e os olhos fixos em Flügel, brilhando com uma intensidade feroz.
Todos os olhares se voltaram para Mael. Ele estava visivelmente em conflito, apertando uma mão na outra com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos. Um rubor intenso subiu por seu pescoço até as bochechas.
— E-eu… não quero ir — a voz dele saiu baixa, quase um murmúrio. Ele finalmente levantou o olhar, e a razão de sua recusa veio de uma vez, como se arrancada dele: — Eu tenho uma namorada. Na academia. Se eu for para Aelara… não vou mais poder vê-la!
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.