Dica para leitura: aspas simples são para pensamentos internos, que é esse símbolo: ’
Aspas duplas para conversa mental: “
Travessão para falas em voz alta: —
Capítulo 59 — A Calma e o Caos
O silêncio que se seguiu à confissão de Mael foi tão súbito que pareceu ter uma textura própria. Todos os olhares estavam cravados no garoto, cujo rosto ardia em um tom profundo de vermelho. Flügel piscou duas vezes, a mão com um pedaço de pão parada a meio caminho da boca. Ao seu lado, Elijah soltou um pequeno bufo de riso, que foi imediatamente silenciado por um olhar fulminante de Sophia.
— Uma namorada? — A sobrancelha de Aragi se ergueu, mas havia mais confusão do que raiva em seu olhar. Ele suspirou, um som pesado de pai para filho. — Mael… eu entendo que sentimentos são importantes. Mas Aelara Veyris? Estamos falando do seu futuro. Você deixaria tudo isso passar… por um namoro?
Mael engoliu em seco, o corpo se curvando para dentro como se para se proteger do peso das expectativas. — Não é só por ela… — murmurou ele, a voz tão baixa que mal podiam ouvir. — Eu gosto de lá. Conheço todo mundo. Meus amigos, meus professores… eles me conhecem. É… é o meu lugar.
As palavras de Mael eram sinceras, Flügel não duvidava disso. Mas não eram a história toda. Ele via o desconforto do irmão, a forma como ele se agarrava a razões seguras – amigos, rotina, um amor de juventude. Era uma defesa. Uma muralha para esconder o verdadeiro conflito. Flügel abriu a boca para sondar, para ir mais fundo, mas a voz de Sophia se adiantou, gentil, porém resoluta.
— Mael, ninguém está dizendo que você precisa decidir agora. — No meio da frase, ela desviou o olhar para Flügel por um instante, o suficiente para que um aviso silencioso passasse entre eles. — Mas é uma oportunidade única. Pense com calma, converse com sua namorada sobre isso. Não deixe o medo da mudança decidir por você. — Ela terminou com um sorriso suave. — E trate de nos apresentar essa garota um dia desses.
Até mesmo Nytheris, que se mantivera em silêncio durante todo o jantar, resolveu se pronunciar. Sua voz era arrastada, com um toque de desdém. — Você não é muito novo para isso?
Aragi nem sequer olhou para Nytheris. Ele simplesmente estendeu a mão até a cesta sobre a mesa, pegou um pão e o partiu ao meio com um gesto tranquilo. — Do que está falando? Ele está na idade certa — disse, a voz completamente neutra. — Eu também tive minha primeira namorada com treze anos.
— É mesmo, querido? — A voz de Sophia saiu perigosamente doce, um contraste gritante com os olhos que se semicerraram até virarem duas fendas na direção de Aragi. — Que interessante… porque eu tinha quase certeza de que você me disse que eu fui sua primeira namorada.
Aragi engasgou com o pedaço de pão que acabara de colocar na boca. Ele deu duas tossidas secas no punho, os olhos arregalados em pânico na direção de Sophia. — Eu não menti! — ele se apressou em dizer, a voz um pouco rouca pela tosse. — Você foi a primeira séria! A primeira que eu beijei! Foi isso, juro! Isso que eu quis dizer!
— Vocês ainda poderiam se ver. A Aelara Veyris não é uma prisão — disse Flügel, mantendo a voz o mais neutra possível para disfarçar o choque. A verdade era que ele mal conseguia processar: seu irmão de treze anos tinha uma namorada, enquanto ele, em vinte e quatro anos somando duas vidas inteiras, nunca tivera.
Ele enfiou o pão encharcado de molho na boca, mastigando com força. Cada mordida era uma tentativa de engolir não só a comida, mas a pontada de inveja que sentia de seu irmão mais velho.
— Mas… — A palavra morreu nos lábios de Mael. Incapaz de responder, ele apenas encarou o próprio colo, derrotado.
Flügel suspirou, percebendo que pressionar não adiantaria. Ele decidiu oferecer ao irmão uma saída. — Escute, não tem problema não querer ir — disse, a voz surpreendentemente branda. — Aelara Veyris só é a oportunidade de uma vida se você quiser uma vida de espadachim de elite. Se não for o seu caminho, então não é a oportunidade certa. Pense nisso.
Com um sorriso gentil para tranquilizá-lo, Flügel voltou sua atenção para a cesta de pães. Foi só então que ele olhou para o próprio prato e percebeu, com uma pontada de surpresa, que já o havia limpado.
— Quer molhar o pão no meu molho? — ofereceu Nytheris, deslizando seu prato levemente na direção de Flügel.
Com um sorriso agradecido, Flügel não hesitou. Ele mergulhou o pão no molho rico e, com a mesma mão, aproveitou para surrupiar um pedaço suculento de carne.
— Tsk, guloso — estalou Nytheris, puxando o prato para perto de si e o protegendo com o antebraço.
— Que falta de respeito! — retrucou Flügel, com a boca cheia da carne que acabara de pegar. — Eu preciso me alimentar bem para crescer saudável, sabia?
A brisa fresca da manhã tocava seu rosto, mas não trazia alívio algum. A calmaria lá fora só servia para amplificar o caos em sua cabeça. Ele sentia uma pressão constante atrás dos olhos, como se algo estivesse prestes a rachar. Culpa. Medo. Desesperança. Ontem, ele fora um bom ator. Mas a máscara havia caído com a luz da manhã. Agora, só restava a verdade: o peso esmagador de ver cada hora passar, sabendo que a praga que ele mesmo criou continuava a se alastrar, a consumir tudo.
O vento frio cortava seu rosto enquanto ele corria, mas era um fraco contraponto ao caos em sua mente. Ele buscava desesperadamente uma forma de reverter a maldição que lançara sobre o mundo, enquanto travava uma outra batalha, uma mais íntima e talvez mais difícil: a luta para não ceder ao impulso quase magnético que o puxava em direção à floresta para ver o quanto que a mana negra já havia corrompido.
— Chegamos… — disse ele, a voz entrecortada pela respiração ofegante. Ele havia corrido todo o trajeto desde sua casa, na esperança de que o exercício físico pudesse clarear o caos em sua mente. ‘Idiotice’, pensou. Estivera tão perdido nos próprios pensamentos que nem sequer notara o caminho.
‘Por que eu corri tão rápido?’ Flügel amaldiçoou a si mesmo. Ele se forçou a entrar no QG, preparando o espírito para o sermão que provavelmente viria.
Nytheris caminhava ao seu lado, já ciente de todo o tormento que passara pela mente de Flügel durante a noite. Ele havia espionado os pensamentos do rapaz e sabia de sua imersão em dois problemas principais: a busca desesperada por uma forma de reverter a mana negra e a dor de cabeça excruciante, um efeito colateral da poção, intensificada graças ao estresse.
— Relaxe um pouco — Nytheris disse colocando a mão no ombro tenso de Flügel.
Flügel não respondeu ao toque ou às palavras. Continuaram andando em direção à sala de reuniões, mas o quartel-general estava diferente do normal. Havia uma urgência no ar, um fluxo constante de cavaleiros com armaduras polidas e magos com vestes bordadas apressados pelos corredores. Para Flügel, no entanto, tudo não passava de um borrão silencioso.
Flügel bateu três vezes na porta de seu destino e esperou. Silêncio. Ele insistiu, batendo de novo. Nada. Já com o punho erguido para uma terceira e mais forte tentativa, uma voz grave e cansada soou logo atrás dele.
— Apressado? — a voz de Garrick era um arrastar de pedras, pesada de exaustão. — Ainda é muito cedo. Você é o primeiro a chegar.
Sua aparência confirmava o cansaço: olheiras profundas marcavam seu rosto e as roupas estavam amarrotadas. Na verdade, ele parecia pior agora do que quando Flügel o vira após a luta contra a marionete do Lich.
Garrick passou por Flügel, destrancou a porta e entrou na sala escura. Antes que Flügel pudesse articular uma palavra, a voz cansada de Garrick o cortou.
— Vamos esperar os outros. — Sua voz era grave. — Mas já vou adiantando: sua situação não é boa. Você terá que se explicar diretamente à Torre dos Magos sobre a natureza e a periculosidade do seu feitiço. — Ele fez uma pausa, deixando o peso daquilo assentar. — Assim como terá que arcar com as consequências por danificar terras do reino de Tournand…
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