Dica para leitura: aspas simples são para pensamentos internos, que é esse símbolo: ’
Aspas duplas para conversa mental: “
Travessão para falas em voz alta: —
Capítulo 6 — Saindo Pela Primeira vez
Depois de Aragi me contar o conto sobre o espírito de gelo Nivareth e sobre Pyroclast, eu tive que fazer certas perguntas.
— Mas por que ele estava com raiva de seu pai, Glacien, e acabou matando-o? — perguntei.
Aragi respondeu: — Ah, certo, eu esqueci de falar sobre isso… Mas ele estava com raiva, pois Glacien abandonou ele e sua mãe depois de engravidá-la.
— Oh… sim, isso faz sentido… — falei um pouco pensativo.
— E por que Glacien abandonou os dois? — perguntei um pouco confuso.
— Glacien usou a mãe de Nivareth apenas por pra… — Aragi parou de falar abruptamente quando sentiu o olhar ameaçador de Sophia nele.
Aragi limpou a garganta e disse:
— Bom, porque ele era um cara ruim. Sim, foi por isso. — Ele fitou Sophia com os olhos, para ver se ela estava com raiva, mas parecia que nada havia acontecido.
— Mas por que ele apareceu quando Nivareth ameaçou matá-la caso Glacien não aparecesse? —
— Porque ele sabia que, caso deixasse Nivareth crescer, ele se tornaria um enorme problema para ele, por isso decidiu matá-lo lá mesmo… mas acabou sendo morto. —
— Mas como Glacien escutou Nivareth? Por que ambos estavam no continente Norte?
— Porque Glacien também morava no continente norte. Então, com os gritos de ameaça de Nivareth e seu poder descontrolado, ele rapidamente soube onde encontrá-los. Além disso, os sentidos de espíritos são diferentes dos nossos. Ainda mais os sentidos de um espírito verdadeiro como Glacien.
Assim que eu abro a boca para perguntar mais uma coisa, Sophia acaricia o meu cabelo e me interrompe.
— Certo, mocinho, nada mais de perguntas. Está na hora de ir para a cama.
Eu apenas balancei a cabeça em concordância. Também estava com vontade de dormir, já que utilizar magia de cura custou um tanto em mim, apesar de eu já ter recuperado toda a mana que gastei.
Eu me levanto do chão e caminho para o quarto de Aragi e Sophia, onde eu ainda dormia. Antes, meu lugar era no berço, mas já era grande demais para ele. Agora, eu dormia no chão, sobre alguns panos empilhados que serviam como um colchão improvisado. Não era o ideal, mas pelo menos eu tinha espaço para me mexer sem sentir a madeira dura do berço pressionando meu corpo.
Sophia veio atrás de mim, esperando que eu me deitasse antes de ajeitar os panos ao meu redor. Ela passou a mão em meu cabelo e sorriu com carinho.
— Boa noite, Flügel. Durma bem.
Eu apenas murmurei algo em resposta, sentindo o peso do cansaço me puxar para baixo.
“Boa noite, Nytheris.”
“Boa noite, Flügel.”
Desejando boa noite a Nytheris, eu finalmente me senti pronto para dormir. Eu fecho os olhos e começo a adormecer. Essa parte de ser arrastado à escuridão sempre me deixa aflito, lembrando daquele ser que conversou comigo e do aperto da corda desaparecendo conforme eu ficava inconsciente.
…
E assim mais um ano se passou.
A passagem do tempo trouxe mudanças sutis, mas perceptíveis. O inverno foi rigoroso, e tanto Mael quanto Elijah ficaram doentes mais de uma vez. A gripe os atingiu em ondas, como um ciclo inevitável da estação, e eu sempre estava ali, ao lado deles, usando magia de cura para aliviar suas febres e dores. No início, era um desafio. O consumo de mana ainda me deixava exausto, e o controle fino da magia exigia esforço e precisão. Mas, conforme os meses passaram, minha habilidade melhorou consideravelmente. O cansaço após cada uso diminuiu, e comecei a entender melhor a forma como a mana fluía dentro de mim.
Com a prática constante, veio a confiança. Havia momentos em que eu sabia, sem sombra de dúvida, que poderia curá-los completamente em um instante. Mas eu também sabia que isso levantaria suspeitas. Uma recuperação súbita e milagrosa chamaria atenção, algo que eu queria evitar a todo custo. Então, continuei a agir com cautela, curando-os aos poucos, como se fosse apenas a evolução natural da doença. Ninguém jamais desconfiou.
Minha coordenação motora também melhorou. Antes, cada movimento exigia um esforço absurdo, como se eu estivesse sempre lutando contra meu próprio corpo. Mas, aos poucos, os músculos que antes se recusavam a obedecer começaram a responder melhor. Ainda não era perfeito, mas a diferença era notável. Meus passos ficaram mais firmes, minha precisão ao pegar objetos aumentou e, pela primeira vez, comecei a sentir que poderia um dia superar essa limitação.
Minha fluência na nova língua também avançou bastante. No começo, ainda havia momentos em que eu precisava me esforçar para lembrar palavras ou estruturar frases corretamente. Mas, com o tempo e a prática constante, minha fala se tornou mais natural. Ainda havia pequenos deslizes aqui e ali, mas eram poucos, e a maioria das pessoas ao meu redor já me tratava como qualquer outra criança que havia aprendido a língua normalmente.
Além disso, eu cresci. Não de forma extraordinária, apenas o esperado para minha idade. Meu corpo estava mais forte, e o berço em que eu dormia se tornava cada vez mais desconfortável. Em algumas noites, eu me mexia tanto que acordava com os pés pressionando as laterais, sentindo a madeira dura restringindo meus movimentos. Logo, eu provavelmente teria que dormir em uma cama de verdade.
Apesar de todas essas mudanças, algumas coisas continuavam as mesmas. A escuridão do sono ainda me trazia desconforto.
…
Meu aniversário chegou.
Descobri que aniversários aconteciam todos os anos, mas festas de aniversário… essas só ocorriam a cada cinco anos. Ou pelo menos era assim para aqueles que podiam pagar por elas. Para nós, não havia festa. Nem presentes. Apenas palavras de feliz aniversário ditas em um tom caloroso, mas vazio de qualquer promessa de um futuro melhor.
Nosso dia a dia não mudou. Continuamos pobres. Até demais. Eu percebia isso de forma cada vez mais nítida. Aragi estava mais magro. Sophia também. Ambos sempre deixavam de comer mais para que eu, Elijah e Mael tivéssemos mais no prato. Eles tentavam disfarçar, mas era impossível não notar como suas roupas pareciam cada vez mais largas, como seus rostos ficavam mais fundos.
Na noite do meu aniversário, me sentei no parapeito da janela, observando o céu. O que havia abaixo não era bonito. Barracos empilhados, ruas de terra batida, sombras dançando entre as construções. Olhar para cima era melhor. O céu noturno sempre trazia um pouco de consolo, mesmo que distante.
Senti um peso em minha cintura. Aragi estava ali, de pé atrás de mim, segurando-me com firmeza enquanto também olhava para o céu.
— Papai… nós somos pobres? —
Minha voz ainda era incerta ao formar as palavras dessa língua que ainda não soava completamente natural para mim.
Aragi ficou em silêncio por um momento. Quando respondeu, seu tom era amargo, e seu sorriso, nada feliz.
— Sim, filho… Nós somos pobres agora. Mas antes não éramos. Culpa do papai que estamos assim agora. Me desculpe.
Virei o rosto para trás e olhei para cima. O rosto de Aragi estava triste, cansado. Ele parecia velho. Mas ele não deveria parecer assim. Eu lembrava de ouvir as pessoas o parabenizando pelo seu aniversário há dois meses. De vinte e sete anos. E Sophia, vinte e nove anos. Eles eram jovens. Mas a vida havia colocado anos a mais sobre seus ombros.
— Por quê? — perguntei. Eu queria entender. Precisava entender.
Aragi respirou fundo.
— O papai era um mercador, filho. Nossa família era de mercadores. Não éramos ricos, mas vivíamos bem, sem grandes preocupações com dinheiro. Meu pai… seu avô começou esse ramo. Ele trabalhou duro e conseguiu nos manter. Quando ele morreu, eu continuei, e por um tempo deu certo. Até que…
Ele parou por um momento, seus olhos se perderam em algum ponto no horizonte. Depois engoliu em seco e continuou.
— Até que eu fiz um trabalho para um velho dono de uma vila próxima. Ele comprou um colar mágico através da guilda de aventureiros daqui. Como o trato foi feito por cartas, alguém precisava levar até ele. Era um item caro, então contratei dois mercenários para me protegerem no caminho. Um era rank B, o outro rank C. Mas não foi o suficiente.
Aragi fechou os olhos por um instante, como se tentasse apagar a lembrança.
— No caminho, fomos emboscados. Um único ladrão nos atacou. Ele matou os dois mercenários num instante e roubou a mercadoria. Mesmo assim, eu fui até a vila e contei o que aconteceu. Mas o velho não quis saber de explicações. Ele queria o dinheiro de volta.
Ele riu, mas foi um riso seco, sem humor.
— Eu não tinha esse dinheiro. Tive que vender nossa casa para pagar a dívida. Ele deixou apenas a carroça comigo. O velho tinha influência, e eu sabia que, se não pagasse, ele nos perseguiria. Então, quando voltei para o reino, precisei vender até a carroça para conseguir pelo menos alugar essa casa.
Ele olhou para mim, sua expressão se tornando mais sombria.
— Mas não foi só isso. O dono da guilda e o velho espalharam mentiras. Disseram que eu tinha roubado a mercadoria para mim. Que os Handels eram ladrões. Que nós não trabalhávamos. E assim, ninguém mais quis fazer negócios comigo. Por isso… quando você nasceu, decidimos não usar mais o sobrenome Handels. Você, Elijah e Mael têm o sobrenome Aurion. Fazendo assim o seu nome ser Flügel Aurion Handels, sempre que for se apresentar, use apenas Flügel Aurion… Apenas se a pessoa perguntar o seu nome de família você fala Handels
Então era esse o motivo. A razão pela qual vivíamos assim. Era por isso que eles estavam cada vez mais magros. Por isso que Sophia parecia sempre tão cansada. Por isso que minha própria sobrevivência aqui parecia algo incerto.
Eu senti um aperto no peito. Eu precisava fazer dinheiro. Mas eu tinha apenas cinco anos ainda. E se as coisas continuassem assim, alguém ficaria doente e talvez eu não conseguisse curá-los.
Aragi respirou fundo, inclinando a cabeça para cima, como se tentasse impedir que as lágrimas caíssem. Ele me pegou no colo e me colocou no chão.
— Certo! Hora de ir para a cama, rapazinho.
Seu sorriso era forçado. Eu sabia disso. Mas fingi não perceber. Apenas balancei a cabeça e caminhei para o quarto.
No fundo, uma única certeza tomava conta de mim.
Eu precisava encontrar uma forma de mudar isso.
Voltei para o quarto onde eu, Sophia e Aragi dormíamos.
Assim que me deitei, fechei os olhos e fingi dormir. Minha respiração se acalmou, e meus movimentos diminuíram até que qualquer um que olhasse acreditaria que eu estava em um sono profundo.
O tempo passou devagar. Eu escutava a casa respirar junto comigo—o som suave da madeira se ajustando ao frio da noite, o ritmo controlado da respiração de Aragi e Sophia. Quando os sons ficaram espaçados, lentos e ritmados, soube que era seguro.
Abri os olhos.
O cômodo estava mergulhado na escuridão, apenas alguns feixes de luz da lua atravessando as frestas das tábuas do telhado. Movi-me devagar, puxando os panos de cima do meu corpo sem fazer barulho.
Sentei-me e esperei um pouco, observando. Nada se moveu. Aragi estava deitado abraçando Sophia, com o rosto contra o pescoço dela, como se tivesse chorado até dormir.
Não pude deixar de achar isso uma cena triste. Provavelmente ele estava chorando por ter sido o culpado em colocar sua família em uma situação tão precária, mesmo não sendo o culpado.
Levantei-me com cuidado e fui até a porta da entrada. Os pisos rangiam se pressionados da maneira errada, então me esforcei para lembrar onde pisar. Desviei das tábuas mais soltas e caminhei com passos precisos, mantendo a respiração leve.
Cheguei à porta da frente e parei diante dela.
“Você vai sair?” A voz de Nytheris ressoou na minha mente.
“Sim, vou. Só não sei como…”
Olhei para a fechadura. Poderia usar a gravidade para girar a chave e a maçaneta, mas o som do metal se movendo ecoaria na casa silenciosa. Esse problema me incomodava há meses, então treinei para superá-lo. Agora era o momento de colocar isso à prova.
Levantei a mão e deixei a mana fluir. Concentrei-me em controlar o vento ao redor da fechadura, reunindo-o em uma esfera invisível que englobava tanto a maçaneta quanto a entrada da chave. Criar uma simples corrente de ar era fácil, mas manter um fluxo constante sem que o vento escapasse exigia precisão.
O primeiro passo era eliminar o som. Para isso, criei uma pequena abertura na esfera e, através dela, lancei um jato contínuo de vento para fora. Esse jato não apenas empurrava o ar para fora da esfera, mas também gerava uma leve sucção dentro dela, diminuindo gradualmente a pressão interna. Para evitar que o ar retornasse, mantive um fluxo contínuo e controlado, direcionando o vento para que removesse apenas a quantidade exata necessária.
Quando o ar dentro da esfera se dissipou completamente, fechei rapidamente a abertura e reforcei a barreira ao redor com uma camada de vento mais densa, garantindo que nada atravessasse. O resultado foi uma bolha esbranquiçada, quase translúcida—a indicação de que havia criado um vácuo interno.
E então, usando o mesmo processo, envolvi as dobradiças da porta com uma esfera de vácuo semelhante. As dobradiças sempre rangiam ao serem movidas, e o som delas seria perceptível. Ao aplicar a mesma técnica, consegui anular o atrito do metal contra a madeira e criar um movimento suave e silencioso.
‘Certo, deu certo.’
O suor escorria pela minha testa. Manipular o vento dessa forma exigia um controle fino e desgastava mais do que eu esperava.
Ainda mantendo o vácuo ativo, apontei a outra mão para a chave dentro da fechadura. Usando magia de gravidade, criei pontos de atração distintos ao longo da chave, forçando-a a girar suavemente. O metal se moveu sem emitir som. Fiz o mesmo com a maçaneta, girando-a devagar até sentir que a porta estava destrancada.
Empurrei-a lentamente e saí sem fazer barulho. Assim que atravessei, repeti o processo ao contrário, fechando a porta e travando-a sem ruído.
Soltei a magia. O vácuo desapareceu e o ar voltou ao seu lugar naturalmente.
Ofegante, apoiei-me contra a parede externa da casa, sentindo o ar frio da madrugada em meu rosto. Respirei fundo, limpando o suor da testa.
A lua brilhava intensamente no céu, iluminando as ruas e a mim mesmo, era de madrugada e estava longe do amanhecer.
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