Dica para leitura: aspas simples são para pensamentos internos, que é esse símbolo: ’
Aspas duplas para conversa mental: “
Travessão para falas em voz alta: —
Capítulo 69 — Armadura Deplorável
Flügel ponderou enquanto assistia seu familiar vestir a armadura, pois era a maneira mais fácil de transportá-la. Desajeitado, Nytheris tentava se acostumar com o novo peso e a rigidez do metal, o tilintar ecoando a cada movimento desengonçado.
‘Eu posso comprar uma para mim também…’ Com um pensamento rápido e calculado sobre as possibilidades do cenário em sua cabeça, ele decidiu que poderia ser uma boa aquisição para si mesmo e também uma proteção a mais para as batalhas que apareceriam à sua frente.
— Vark, você não teria uma armadura para mim também? — Seus olhos voltaram para o vendedor corpulento, que havia parado de esfregar as mãos a um tempo, mas começou a admirar as moedas de ouro e a contá-las repetidamente.
A pergunta sobre uma outra armadura fez sua atenção ser voltada para a outra possível dezenas de moedas de ouro entrando em seu cofre. Um brilho ganancioso apareceu em seus olhos novamente, e outro sorriso manso se abriu em seu rosto. — Oh… é… — Mas logo um sentimento de tristeza, decepção e frustração invadiu seu ser.
Não havia mais armaduras boas como aquela. Não na loja. A frustração apertou o peito de Vark, mas sua mente, agora turbinada pela perspectiva de mais lucro, trabalhou mais arduamente do que em toda a última década. Até que uma ideia acendeu uma luz no fim do túnel.
Com um sorriso ainda mais amplo, ele esfregou as mãos e disse:
— Claro… Mas elas não estão aqui, são preciosas demais e vendemos apenas sob encomenda, mas como o jovem é um convidado de Grenhard eu farei exceção. Elas estão no porão, gostaria de ir dar uma olhada?
Flügel olhou para Grenhard, como se confirmasse a veracidade daquela informação, mas seu mestre apenas olhou confuso também, mostrando que não sabia sobre isso.
‘Então ele tá tentando me passar a perna lá embaixo, me empurrando qualquer porcaria que não conseguiu vender ou que é ruim demais para as prateleiras comuns.’
Mesmo com a desconfiança, ele decidiu pelo menos dar uma olhada. Afinal, muitas vezes o lixo de um é o luxo do outro. Agarrado a essa ideia, ele seguiu Vark sozinho até o porão. A entrada estava disfarçada por barris e guardada por um dos capangas de Vark, que parecia mais entediado do que vigilante.
Conforme ele desceu, o som metálico da armadura de Nytheris se mexendo diminuiu à medida que se aprofundavam no porão. A cada degrau, o cheiro de metal e umidade ficava mais forte.
A luz que vinha da entrada alcançava o fundo, revelando um estoque desorganizado de objetos.
Havia espadas com cabos desgastados, escudos com arranhões profundos, elmos com algumas amolgadelas e pilhas de armaduras incompletas, tudo misturado de forma caótica, mas nada parecia completamente inutilizável.
— Aqui estamos nós! — Vark exclamou com um sorriso forçado, gesticulando para a desordem. — Nosso estoque especial!
Era exatamente como imaginara: um depósito de itens que não vendiam facilmente. Vark começou a puxar objetos aleatórios, tentando vendê-los com um entusiasmo que não correspondia à qualidade dos itens.
— Que tal este elmo? Tem apenas algumas marcas de uso, mas é resistente! Ou este escudo, perfeito para um iniciante, ele é leve e de material raro — Ele ria de nervoso, enquanto Flügel apenas balançava a cabeça.
Enquanto Vark divagava, tentando empurrar uma adaga com a lâmina um pouco cega, os olhos de Flügel varreram o porão. Em um canto mais escuro, quase escondida sob uma lona empoeirada, havia uma armadura.
Ela parecia estar em mau estado: o metal estava opaco e com algumas manchas de ferrugem, o couro estava ressecado e algumas fivelas pareciam soltas. Era uma peça de armadura que a maioria das pessoas consideraria de terceira mão, talvez até de quarta.
— O que é aquilo? — Flügel perguntou, apontando para o que parecia ser um amontoado de metal e fuligem.
Vark seguiu o olhar de Flügel e encolheu os ombros. — Ah, aquilo? É um lixo antigo que conseguimos, mas ela está muito danificada. Estava pensando em vendê-la como sucata. Não serve para muita coisa, apenas para colecionadores de bagatelas — Havia um tom de desdém em sua voz, como se ele próprio não conseguisse entender por que Flügel sequer notaria algo tão sem valor aparente.
Mas, por alguma razão, algo naquilo chamou a atenção de Flügel. Talvez fosse a intuição, ele não sabia. Ele se aproximou e, ignorando a camada de poeira, estendeu a mão para tocar a armadura.
Sob a densa camada de poeira, o toque gelado e esquecido irrompeu pelo braço de Flügel. Ele não sabia se a armadura era preta ou cinza, a quantidade de sujeira nela atrapalhava discernir qual era a sua verdadeira cor.
Seu visual parecia bastante com o da armadura prateada de Nytheris, mas ao invés de brilhar sutilmente, ela parecia morta. Abandonada. Como se, uma vez cumprido o seu objetivo, todo o seu brilho único tivesse se esvaído, deixando apenas um casco opaco e sem vida.
— Como você consegue esses itens? — A pergunta de Flügel foi genuína, ele realmente queria saber de onde vinham todos aqueles equipamentos surrados.
— Roubamos. Aventureiros mortos na floresta, ou em dungeons1 próximas, normalmente recebemos informações na guilda de aventureiros sobre novatos indo se aventurar, e quando eles demoram para voltar, vamos lá e saqueamos o que estiver em seus corpos — Vark continuou a procurar no montante de lixo algo mediano para tentar conseguir essa outra venda aparentemente impossível.
Flügel sentiu uma onda de náusea e raiva subir-lhe pelo estômago. A ideia de que aqueles itens, antes vestígios de bravura e esperança, eram agora troféus saqueados de corpos sem vida, revirava-os por dentro.
A forma como Vark descreveu o ato, com uma casualidade chocante, como se estivesse a falar do tempo, apenas intensificava a sua fúria. Aquilo não era apenas repugnante, era um vislumbre cru da verdade sombria por trás daquele emaranhado de metal e couro.
Reprimindo a raiva que fervilhava em seu interior, ele forçou sua atenção de volta para a armadura. Juntou todas as peças espalhadas e examinou seu estado. Era deplorável.
A maneira como ela estava amassada, retorcida e furada era inacreditável. Flügel conseguia imaginar, com uma clareza dolorosa, a agonia e a dor que a pessoa que uma vez usou essa armadura sentiu.
Mas algo na armadura o deixava inquieto. Ele ainda não sabia o que chamava sua atenção, mas havia uma aura estranha que emanava dela, sutil, quase imperceptível.
Não sabia se era uma aura de poder ou magia, mas ele tinha certeza que algo profundo residia nela, como um eco de uma vida intensa ou de um destino incompleto. Era como se a armadura estivesse sussurrando fracamente, de uma forma que só ele conseguia sentir.
Ele apertou uma das luvas corroídas e notou algo peculiar. Apesar da aparência gasta e manchada da superfície, a armadura inteira parecia incrivelmente leve para o tamanho e a quantidade de metal.
E, embora o material estivesse opaco e coberto de ferrugem, havia uma resistência estranha que ele não esperaria de um item tão negligenciado.
Era como se a sujeira e a corrosão fossem apenas uma camada de camuflagem, escondendo algo muito mais robusto e, talvez, valioso.
— Vark, quanto você quer por esse… monte de sucata? — Flügel perguntou, tentando soar o mais casual possível, mas sua voz traía uma curiosidade que Vark, astuto como era, não deixou passar despercebida.
O vendedor corpulento ergueu uma sobrancelha, um brilho de interesse cruzando seus olhos. Ele não esperava que Flügel demonstrasse qualquer interesse naquele item.
— Essa dai? Ah, para você, posso fazer um preço especial — Vark começou, seu sorriso retornando, agora mais ganancioso do que antes. — É um incômodo para mim, então, que tal… cinco moedas de ouro?
Flügel conteve um suspiro. Cinco moedas de ouro? Era um preço exorbitante para algo que Vark acabara de chamar de “lixo” e “bagatela”.
A ganância do vendedor era evidente, mas o sentimento de que havia algo a mais naquela armadura era forte, uma intuição que gritava mais alto que a lógica. Ele precisava saber o que era, mas não seria enganado tão facilmente.
- masmorras[↩]
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