Dica para leitura: aspas simples são para pensamentos internos, que é esse símbolo: ’
Aspas duplas para conversa mental: “
Travessão para falas em voz alta: —
Capítulo 7 — Sombras da Fobia, Luz da Magia.
Eu finalmente estava fora de casa. Desde que renasci neste mundo, carregando as memórias de uma vida passada cheia de medo e solidão, nunca tinha saído. Mael e Elijah me chamavam para brincar, e Sophia, com aquela voz suave, dizia que eu podia ir.
Mas eu preferia ficar trancado, manipulando magia de gravidade ou de vento, ou alimentando Nytheris com pedaços de mana que eu puxava do fundo do meu ser. Lá dentro era seguro. Ninguém me julgava, ninguém podia me machucar.
Olhei ao redor, o peito apertado. Na minha vida passada, sair de casa era raro e, quando acontecia, o medo das pessoas — do que podiam fazer comigo — me engolia. Talvez fosse por causa daqueles vídeos perturbadores que eu assistira.
Afogado em depressão, apático, eu consumia aquele lixo sem sentir nada, ou pelo menos achava que não. Mas as imagens ficaram cravadas na minha mente, impossíveis de apagar. Larguei esse hábito, mas as memórias perturbadoras ainda me perseguiam.
Engoli em seco. A lua banhava o reino de prata, destacando telhados desengonçados e paredes rachadas. Nas ruas vazias, até o vento parecia evitar fazer barulho. Uma noite perfeita para aventuras — ou para desgraças, pensei, arrepiado. Minha respiração pesou, e uma dor pulsou na cabeça.
‘Droga, mesmo depois de morrer e renascer, essa fobia social ainda me acompanha?’
“Flügel, eu tô aqui com você”, disse Nytheris na minha mente, a voz como um abraço quente.
Senti-o pulsar no meu peito, e minha respiração se acalmou.
“Obrigado, Nytheris”, respondi mentalmente, o aperto no peito aliviando. Respirei fundo, o ar enchendo meu peito com aquele calor vivo da mana, e escolhi o caminho à direita.
— Certo… o que posso fazer aqui fora para ganhar dinheiro? — murmurei, olhando para os lados.
As ruas do reino pareciam um beco sem saída. Eu podia usar magia gravitacional para roubar alguma coisa, mas isso não era quem eu queria ser. Apesar da apatia, eu tinha alguns ideais, mesmo aqueles que parecessem idiotas para outros. Mas, quando pensava na minha família, esses princípios tremiam.
Não era sentimento, era lógica. Eu era humano, e os humanos cuidam dos seus. Se precisasse machucar alguém para garantir a felicidade deles, eu faria.
Na minha vida passada, decidi: se um botão aparecesse e apertá-lo salvasse minha mãe e meu irmão, mesmo custando metade do mundo, eu não hesitaria.
Passei pelas casas precárias, o luar mostrando telhados tortos e paredes rachadas. Num beco, vi uma garota e um garoto dormindo abraçados, enrolados num cobertor velho. A garota parecia ter uns quinze anos, e o garoto era um pouco mais velho que eu.
Meu peito apertou. Eu era apático, mas não de pedra. A apatia era uma armadura, proteção contra a dor da minha infância, contra um mundo que eu sabia ser cruel.
Os frágeis não sobrevivem, e eu não queria ser frágil. Mas ver aqueles dois ali, tão expostos, mexeu comigo. Forcei meus pés a seguirem em frente.
‘Saí de casa para conseguir dinheiro para minha família, mas o que eu poderia fazer?’ Pensei, suspirando. ‘O que uma criança de cinco anos, de madrugada, num reino estranho vai fazer? Talvez eu fosse mais burro do que imaginava.’
Continuei andando, passando por mais pessoas dormindo nas ruas, encolhidas sob trapos. O desespero delas pesava no ar, e eu me senti ainda mais perdido. Então, vi o muro ao longe, banhado pelo luar, alto e frio. Uma ideia arriscada brotou:
‘Posso passar por cima do muro…’ Pensei. Não precisava voar — alturas me davam pavor —, eu só precisava subir e descer sem quebrar o pescoço. Mas, ao me aproximar, vi as torres de vigia, silhuetas escuras contra o céu.
‘Claro que tem vigias. Por que não pensei nisso?’
“Nytheris, dá para você subir e ver se tem alguém lá?”
“Eu não voo…” respondeu ele, com um tom meio envergonhado.
“Então vou ter que tentar mesmo assim” murmurei, o estômago revirando.
O muro tinha uns dez metros, talvez mais. Para meu corpo fraco de cinco anos, era uma montanha.
‘Quanto mais rápido eu fizer isso, mais rápido acaba’, pensei tentando me convencer. Mas antes que eu pudesse mexer um músculo, Nytheris saiu do meu peito, tomando forma à minha frente. Ele parecia ter dez anos, esguio, a pele tão branca que brilhava sob o luar. E… pelado.
— O que tu quer? — perguntei, olhando para os lados, o coração disparado. Se alguém visse, podia tentar qualquer coisa.
Minha vida passada me ensinou que humanos podem ser nojentos, e eu não duvidava que os deste mundo também fossem podres.
— Precisava sair — disse Nytheris, as mãos na cintura. — Fiquei muito tempo dentro de você.
Ele sorriu, os cabelos negros balançando com a brisa, os olhos escuros bizarramente negros.
— Por que não tá olhando para mim? Ah, é porque tô pelado, né? Olha só!
Hesitei, mas olhei. Nytheris fechou os olhos, concentrando-se. Senti a mana sair de mim como um rio escuro, mas respirei fundo, e o ar trouxe mais, enchendo meu peito.
A mana de seu próprio corpo se desfez em algumas partes, formando um hanfu preto, com mangas largas e caimento fluido, como os trajes das ilustrações de web novels que eu lia na minha vida passada. O tecido parecia dançar com as sombras, combinando com seus cabelos e olhos.
— Nossa, como tu fez isso? — perguntei, sorrindo, tocando a manga. Era macia, como seda de verdade.
— Hehe, vi nas novels que você lia! — Nytheris riu, balançando as mangas do hanfu. — Gostou, né?
— Ficou ótimo! — concordei. — Mas volta para dentro. Vou tentar passar o muro.
Nytheris assentiu e escorreu de volta para o meu peito como um rio negro. Respirei fundo, reuni a mana nas mãos e usei magia de gravidade pela primeira vez fora de casa. Não tinha força para subir direto, então diminuí meu peso, sentindo o corpo leve como uma pena.
‘Um impulso forte deve bastar’, pensei. Saltei, canalizando um jato de vento sob minhas mãos. O vento explodiu, jogando-me para cima, mas fui alto demais: passei o muro e segui subindo em vez de avançar.
Tentei me virar no ar, usando pequenos jatos de vento, mas meu corpo pequeno não ajudava. Vi a torre de vigia e um guarda com a cabeça baixa, talvez dormindo, mas não tive tempo de confirmar.
Caí do outro lado, o coração na boca. Desativei a gravidade, senti meu peso voltar, e reativei para desacelerar a queda. Toquei o chão com um baque, suando, exausto. Usei um vórtice de vento para me ventilar, o ar fresco aliviando o calor.
— Nunca mais quero passar por isso… — murmurei, apoiando-me no muro. A floresta à minha frente era densa, as árvores engolindo a luz da lua. Parecia viva, e não de um jeito bom.
— Posso ir na frente? — perguntou Nytheris, tomando forma de novo, o hanfu preto já esvoaçante sob o luar.
— Não, e se tiver uma besta perigosa? — respondi, firme. Minha voz tremia, o cansaço pesando nos ombros. O ar da floresta era úmido, grudando na pele. Cheirava a musgo e algo azedo, como fruta podre.
— Protetor, hein? — Nytheris riu, o som saindo leve, mas nervoso. — Acho que sou meio imortal. Deve ser minha natureza, sabe?
Pensei nisso, o coração ainda disparado pela péssima experiência. Nytheris era feito de mana, uma extensão de mim. Enquanto eu tivesse mana, ele podia se regenerar.
— Tá bem, mas não morre à toa — disse, sério. Ele assentiu, olhos escuros brilhando feito poços.
Entramos na mata, eu atrás dele. Meu corpo pequeno tornava cada passo um sofrimento. Raízes grossas cobertas de musgo escorregadio subiam do chão. Galhos baixos arranhavam meus braços, deixando marcas vermelhas.
A escuridão engolia tudo, um breu denso. A luz da lua mal atravessava os galhos retorcidos. Evitamos fazer fogo, com medo de atrair predadores. O silêncio era pesado, só quebrado pelo vento gemendo baixo.
Nytheris andava com confiança, mas tropeçava vez ou outra — sinal de que não enxergava melhor que eu.
— Tá vendo algo? — sussurrei, voz rouca. Minha garganta estava seca, o ar úmido pesando. Nytheris parou, olhando ao redor.
— Nada, mas está estranho — respondeu, voz baixa.
‘Estranho é pouco’, acrescentei mentalmente, enquanto o suor frio escorria pela nuca. O chão parecia mole, como se respirasse. Troncos negros brilhavam com umidade, cascas rachadas como cicatrizes. Um cheiro podre crescia, embrulhando o estômago.
Passos ecoaram, mas não só os nossos. Um farfalhar veio de trás, folhas mexendo. Virei, mas só vi sombras dançando entre as árvores. ‘Apenas imaginações’, tentei me convencer, mas o peito apertou. Nytheris parou de novo.
— Flügel, vamos embora — disse, voz tensa. Ele voltou até mim, hanfu roçando folhas. — Tem algo ruim aqui, eu sinto.
— É, também não estou gostando — Concordei. A floresta parecia ter prendido o ar numa teia invisível. Meu coração batia rápido, ecoando nos ouvidos.
Nytheris se aproximou, hanfu quase tocando meu braço.
— Não gosto disso — murmurou, quase um gemido. A brisa parou, silêncio pesado. Até o vento parecia ter medo de se mover.
— Vamos voltar — disse, voz firme, porém falsa. Ele assentiu tão rápido que mal o vi. Começamos a andar, sem saber a saída.
O chão traiçoeiro nos traiu: raízes escondidas fizeram meus pés tropeçarem. Galhos roçaram meu rosto como dedos frios. O fedor ficou mais forte, grudando na garganta, e minha cabeça rodopiou no ar denso.
Tentei acelerar o passo, mas tropecei em algo macio e pesado. Caí de joelhos, a terra molhada sujando minhas mãos.
— Droga! — amaldiçoei.
Em pânico, forcei a mana a se moldar. Como fiz com o vento, num instinto bruto. Nunca criara fogo, mas sabia manipular mana. Ela obedeceu: chamas trêmulas e laranja flutuaram na minha mão.
O calor lambia meu rosto, ardendo a pele. O cheiro de terra úmida misturava-se ao da carne podre. A luz revelou troncos negros, cascas rachadas como feridas. Folhas escuras brilhavam úmidas, refletindo as chamas.
Ali, sob uma árvore, um corpo. Pele pálida, olhos abertos e arregalados, sentado, seu cheiro forte e nojento penetrando o ar.
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