Índice de Capítulo

    Dica para leitura: aspas simples são para pensamentos internos, que é esse símbolo: ’
    Aspas duplas para conversa mental: “
    Travessão para falas em voz alta: —

    A carruagem logo chegou à porta da casa de Flügel. Após se despedir de Grenhard, o elfo seguiu para sua própria residência. Lá fora, o ar gelado da noite picava a pele, e a brisa leve carregava o cheiro de chuva.

    — Vamos entrar, estou morrendo de fome — disse com um sorriso, levando a mão ao estômago. Nytheris assentiu e o seguiu de perto.

    Na porta, Flügel hesitou. A armadura estava um caco e ele sabia que o estado dela assustaria seus pais. Decidiu, então, tirar também o peitoral.

    Flügel entregou o elmo a Nytheris, removeu o torso da armadura e, por fim, abriu a porta.

    — Chegamos! — A voz de Flügel soou arrastada, carregada pelo cansaço do dia que finalmente desabou sobre seus ombros. Era sempre assim: o alívio de relaxar em casa era, de fato, maravilhoso.

    Aragi saiu da cozinha e parou, surpreso. Ali estavam eles: Nytheris, imponente em sua armadura prateada, polida, brilhante e majestosa, segurando um elmo surrado, e Flügel, seu filho, vestindo apenas as calças e botas de uma armadura deteriorada, com o torso, ainda mais estragado, em suas mãos. 

    O contraste era gritante: uma peça impecável contra a outra, velha, suja, cheia de furos e amassados.

    — O que aconteceu? Você está machucado, Flügel? — A voz de Aragi tremeu, a preocupação evidente.

    — Não. Essa eu comprei assim mesmo e vou mandá-la para um ferreiro. Ela é boa, apesar de todo o estrago. Já essa outra… — Flügel apontou para Nytheris, um sorriso de orgulho crescendo em seu rosto — …comprei para ele!

    — Ah, entendi… eu acho — Aragi respondeu, um tanto hesitante, os olhos fixos na armadura de Flügel, como se tentasse discernir o que o filho vira de bom naquela sucata.

    — A janta ainda vai demorar um pouco — Aragi avisou. No mesmo instante, a barriga de Flügel roncou. Aragi sorriu. — Pode comer pão se estiver com muita fome.

    — Tudo bem, mas eu vou tomar um banho primeiro e talvez eu coma alguns pães depois. — Um leve sorriso surgiu no rosto de Flügel, embora o cansaço do dia ainda pesasse. 

    O corpo de Flügel clamava por descanso, e sua mente ansiava por um pouco de paz, longe dos recentes e tumultuosos eventos. Com um suspiro de puro alívio por finalmente estar em casa, ele se dirigiu ao quarto.

    A porta do quarto se fechou com um clique. Flügel foi até o canto, onde pousou o torso da armadura, antes de descalçar as botas e remover as partes das pernas.

    — Comprei ela por três moedas de ouro, você acredita? — Flügel perguntou, virando-se para Nytheris. O familiar estava parado junto à porta, com o elmo amassado na mão, e seus olhos o fitavam intensamente por trás do capacete prateado.

    Flügel se aproximou de Nytheris e, ao retirar seu capacete, sentiu o coração apertar com uma dor lancinante. Ele preferiria enfrentar a morte novamente pelas mãos daquele vulto a ver o rosto de seu familiar naquele estado.

    Os olhos vermelhos e o nariz escorrendo e avermelhado de Nytheris enquanto chorava lhe conferiam uma expressão quase fofa, embora para Flügel doesse como se um pedaço do seu peito fosse arrancado.

    À desolação, somou-se uma raiva borbulhante em seu âmago: a culpa era dele. Se tivesse subido sem o elmo, Nytheris jamais o teria atacado. Flügel sabia que, se fosse outra pessoa a ter provocado tamanha tristeza em Nytheris, ele provavelmente perderia o controle de sua raiva.

    Flügel se forçou a focar em Nytheris, sua prioridade naquele momento. Com um sorriso gentil, ele usou a mão direita para limpar as lágrimas grossas que escorriam pelas bochechas agora rosadas do familiar.

    — Vamos lá, não é para tanto. Pare de chorar, cara, você já está bem grandinho para essas coisas — A voz de Flügel saiu mais leve do que ele se sentia, um esforço para não aprofundar no lado emocional. 

    Ambos, afinal, eram desastrosos com emoções e sentimentos. Flügel nunca havia confortado ninguém, na verdade, era sempre ele quem recebia o apoio de Nytheris ou de sua família.  Agora, com os papéis invertidos, ele se viu sem rumo. Mas, apesar de tudo, estava decidido a tentar.

    Em vez de acalmar Nytheris, as palavras de Flügel tiveram o efeito oposto. O familiar largou o elmo da armadura no chão e, num impulso, saltou sobre Flügel, abraçando-o com força.

    Seu rosto estava enterrado no ombro de seu criador, molhando seu casaco. Suas mãos, tremendo, apertavam desesperadamente as costas de Flügel, aferrando-se à roupa, como se dali pudesse extrair a certeza de que ele não o deixaria.

    O impacto do abraço de Nytheris fez Flügel cambalear. Ele soltou o capacete da armadura prateada para não cair e, retribuindo o abraço, acariciou o couro cabeludo de Nytheris.

    — Eu quase te matei… Se a sua armadura não tivesse aguentado, eu teria te matado… — A voz de Nytheris saiu trêmula, embargada pelo choro e rouca de desespero

    Flügel suspirou, apertando Nytheris em seus braços. — Você não sabia, Nytheris. A armadura escondeu minha presença. Não foi sua culpa. Você apenas reagiu a uma ameaça que pensou ter me ferido, como sempre faz.

    O corpo de Nytheris estremeceu nos braços de Flügel, os soluços sacudindo a armadura. O aperto em suas costas se tornou mais forte, quase doloroso.

    — Mas… e-eu… eu deveria ter sentido! Nosso vínculo! — Nytheris se afastou um pouco, o rosto ainda molhado pelas lágrimas. Seus olhos marejados fixaram-se em Flügel, cheios de desespero. — Sempre senti você, Flügel. Sempre!

    Flügel tomou o rosto de Nytheris entre as mãos, erguendo-o para que seus olhos se encontrassem. — Eu sei, eu sei — sussurrou. — E é isso que torna essa armadura tão peculiar. Ela escondeu minha presença de você, algo totalmente inédito. Isso só prova que ela é ainda mais especial do que eu pensava. E você, Nytheris, é o melhor familiar que alguém poderia ter. Eu confio em você e sei que jamais me faria mal de propósito.

    O olhar de Nytheris suavizou um pouco, mas a culpa ainda persistia, pesada. Ele apertou os lábios numa tentativa de conter os soluços, o que, ironicamente, fez as lágrimas escorrerem com mais intensidade.

    — Então… você não está bravo? — A pergunta de Nytheris mal escapou de seus lábios, quase inaudível.

    — Bravo? Não, Nytheris. Estou vivo por sua causa, ou melhor, por causa da minha armadura, que aguentou seu golpe. Mas você estava tentando me proteger, pensou que eu fosse um monstro… O que mais eu poderia pedir? E também não acho que eu conseguiria ficar bravo com você — Flügel tentou forçar um sorriso convincente, embora ainda se sentisse um tanto desajeitado com a situação.

    Fungando, Nytheris tentou se recompor. No entanto, o pensamento de que Flügel pudesse ter morrido ou se machucado gravemente por sua causa o assolava, causando-lhe um terror absurdo. Embora soubesse que morreria sem seu criador, não era a própria morte que o amedrontava.

    O sentimento o remetia à vez em que Flügel quase morrera afogado no rio, logo após a fuga do Lich. Antes daquele dia, Nytheris jamais havia entendido por qual motivo alguém ficaria triste com a morte. Ele não sabia de nada, nem tinha experienciado a vida, a não ser pelas memórias de Flügel de sua vida passada.

    Ele sabia que humanos se entristeciam com a morte alheia, mas Nytheris era completamente apático a isso, e à própria morte. Contudo, tudo mudou quando Flügel quase morreu à sua frente. Ver o garoto com os lábios roxos, o rosto pálido e sem respirar, trouxe-lhe um sentimento sem igual, e ele faria de tudo para nunca mais experienciar aquilo.

    A partir daquele dia, seu zelo pela segurança de Flügel, sua pessoa favorita, tornou-se obsessivo, temendo que ele sofresse. E agora, o golpe: ele próprio quase o tirou de si.

    — Eu nunca mais vou errar… eu prometo! — A promessa saiu da boca de Nytheris com uma seriedade dolorosa, como se cada palavra fosse um juramento gravado em sua alma.

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