Dica para leitura: aspas simples são para pensamentos internos, que é esse símbolo: ’
Aspas duplas para conversa mental: “
Travessão para falas em voz alta: —
Capítulo 87 — Anotações
A sensação de estar limpo novamente era maravilhosa. Flügel saiu do banheiro, a pele ainda úmida e fresca do banho, e vestiu as roupas limpas que Nytheris lhe entregou durante o banho. A camisa e a calça de linho, simples e macias, eram um alívio bem-vindo depois das vestes rasgadas e sujas de sangue que o incomodavam tanto. O cheiro de sabão se misturava ao ar pesado do quarto, onde a penumbra da noite já se instalara.
Nytheris ainda estava sentado na beirada da cama, encarando a própria armadura suja no chão. Ele mal se moveu quando Flügel saiu do banheiro, a tensão silenciosa entre eles ainda pairando no ar. Seus dedos brincavam com a ponta da toalha, uma ação que traía a inquietação que a sua postura rígida tentava esconder.
— Minha vez. — a voz de Nytheris ecoou no silêncio, grave e pensativa. Ele se levantou, pegando a própria toalha. A armadura suja ficou no quarto, um lembrete do caos da batalha que havia se encerrado.
Flügel assentiu, entendendo o seu familiar. Ele sabia que Nytheris não falaria sobre seus sentimentos se não fosse pressionado depois de ser repreendido, e que a raiva, a possessividade e o medo eram parte de quem ele era. Flügel já tinha percebera que não poderia mudá-lo, mas sim o ajudar a controlar esses sentimentos.
— Quando terminar, vamos jantar. Estou morrendo de fome.
Nytheris apenas assentiu em resposta, antes de entrar no banheiro e fechar a porta. Flügel sabia que ele demoraria um pouco, então pegou uma pena e tinta e sentou-se na cadeira.
Ele abriu seu caderno de ideias e anotações, um ritual que havia começado há quase um ano, esperando pacientemente o seu amigo. A tensão havia diminuído, e a promessa de uma refeição quente e de uma noite tranquila fez com que ele se sentisse um pouco mais leve.
Ele começou a anotar as coisas que aconteceram durante o dia, um hábito que se tornara vital para ele. Usando sempre a sua língua materna de sua antiga vida, ele registrava perguntas, pensamentos sobre acontecimentos e suas opiniões sobre eventos.
Se alguém de sua família visse, ele poderia simplesmente dizer que estava aprendendo uma nova língua, e ninguém além dele e Nytheris conseguiriam ler. Era uma escrita complexa, um segredo só deles.
Ele ponderou se deveria ou não escrever sobre o seu sentimento estranho, aquela fome por exercer sua força sobre outras criaturas. No final das contas, quem fosse ver aquele caderno seria apenas ele e Nytheris, e ele não tinha nada a esconder de seu familiar. Mas o medo de ser visto por Nytheris como algo do sedento por sangue, se tornava real.
‘Apesar de não ver uma utilidade para isso agora, eu deveria tentar aprender ou estudar sobre o que o Lich foi capaz de fazer com aqueles Goblins, e como ele conseguiu exercer seu poder sobre eles. Muitas coisas podem se mostrar úteis mais para frente, e quanto mais conhecimento tivermos sobre nossos inimigos, melhor será.’ Ele suspirou, enquanto pensava nas palavras certas para escrever.
‘Também devo tentar descobrir se esse meu desejo de matar é algum efeito colateral das poções de refinamento que tomei ou alguma coisa mudando em meu psicológico, com o meu reconhecimento da minha própria força. Sendo um ou outro, isso não é algo bom. Não quero virar um louco por batalhas e sangue, isso deve subir um pouco na minha lista de prioridades.’ O pensamento de ser consumido por essa sede o aterrorizava. Ele tinha medo de perder o controle.
‘Tenho algumas teorias novas. Deuses e Guardiões existem nesse mundo, assim como a possibilidade de conseguir moldar a realidade ao seu bel-prazer. Assim que cheguei a este mundo, a primeira entidade que eu encontrei disse que a minha existência já foi destinada a outra era e que eu não poderia morrer.’ Sua mente começou a ficar submersa em pensamentos enquanto ele anotava eles com uma velocidade treinada.
‘Talvez, seja por isso que eu retorno. Se realmente for isso, posso estar sendo controlado por alguém ou algo a todo momento. Até mesmo para estar escrevendo neste exato momento. Espero que eu esteja errado, quero ter controle sobre a minha própria vida. Mas pensar sobre isso agora não faz sentido, pois caso seja isso, não posso fazer nada por enquanto e talvez nunca. Sendo sincero, prefiro não saber que estou sendo manipulado.’ Ele fez uma pausa, reorganizando seu mar de pensamentos.
‘Essa não é a minha única nova teoria.’ Flügel hesitou, a ponta da pena pairando sobre a folha. A teoria seguinte era a mais perturbadora de todas, e colocá-la no papel parecia torná-la perigosamente real. Ele mergulhou a pena na tinta e, com uma caligrafia firme e precisa, começou a escrever.
‘Minha segunda teoria é que os “Guardiões do mundo” e o Lich não são entidades opostas, mas sim dois lados de uma mesma força. Severus, a besta sagrada do império, representa o poder da ordem; ele vive para manter o mundo seguro de ameaças catastróficas, pelo menos é o que dizem os livros. Enquanto o Lich é a personificação do caos, da destruição e da morte. Talvez o mundo precise de ambos para manter o equilíbrio, uma espécie de ciclo da natureza.’
Ele parou por um momento, a pena pairando sobre o papel.
‘O que me leva a pensar… o que sou eu nesse equilíbrio? Meu ser pertencendo a outra era, pode ser um catalisador para um poder que os dois lados desejam controlar.’
‘Minha capacidade de usar todos os elementos, a força que se manifesta, o calor que irradia do meu peito… eles podem ser ecos dessa força, uma chama que ainda não escolheu um lado.’
A frustração de suas perguntas sem resposta se misturou à tinta em sua pena.
‘Eu quero saber o porquê aquelas entidades dizem que eu tenho que aprender com meus erros. Sinto que elas querem que eu fique mais forte, e eu estou tentando o meu máximo para conseguir isso, mas eu não estaria seguindo ordens deles? Estou confuso. Preciso de respostas.’
Ele parou de escrever, os dedos apertando a pena com tanta força que ela estalou levemente. A porta do banheiro se abriu. O som da água que antes corria deu lugar ao silêncio. Nytheris saiu, envolto em uma toalha limpa, o cabelo negro pingando. Ele não parecia mais tenso; a raiva havia sido lavada, deixando para trás apenas uma calma serena.
— Sinto muito por ser rude — Nytheris murmurou, a voz suave e sincera. — Você tem razão. Precisamos dele.
Flügel sentiu um alívio imenso. Ele fechou o caderno, guardando-o com cuidado.
— Está tudo bem. Eu entendo. Mas se ele te irritar de novo, tente não encará-lo como se ele fosse uma presa — brincou, um sorriso surgindo em seu rosto.
Nytheris sorriu de volta, um gesto genuíno e reconfortante. Ele criou roupas para si mesmo e ambos se dirigiram para a porta. A fome de Flügel, por enquanto, era apenas por comida.
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