Dica para leitura: aspas simples são para pensamentos internos, que é esse símbolo: ’
    Aspas duplas para conversa mental: “
    Travessão para falas em voz alta: —

    A primeira gota caiu silenciosa, afundando na terra seca. Depois, outra. E então a chuva veio de uma vez, grossa e pesada, como se o próprio céu estivesse desabando sobre nós. As gotas batiam nas folhas e nos galhos antes de caírem sobre nós.

    O chão, antes coberto por folhas secas, começou a se transformar em lama conforme as primeiras gotas caiam. A chama em minha mão tremulou, resistindo ao frio repentino, mas era apenas questão de tempo até ser apagada. O ar ficou denso, carregado com o cheiro úmido da terra.

    Era isso…

    O Reino de Tournand era cercado por uma cadeia de montanhas que se estendia até sua costa, bloqueando os ventos polares que vinham do oceano, do distante continente norte.

    Era algo semelhante à costa da Argentina, onde os ventos polares vinham da Antártida e, caso houvesse montanhas, causariam chuvas constantes. Graças àquelas montanhas, o vento encontrava resistência, condensava-se e subia, resultando em chuvas frequentes.

    Já do outro lado, no lado sotavento, o vento seguia sem obstáculos, criando um terreno seco e arenoso. Nós estávamos no lado barlavento, onde a chuva era uma constante.

    Lembro-me bem disso, pois meu pai sempre dizia que os ventos gelados do norte vinham para nos lembrar da imensidão daquele continente distante.

    ‘Droga, o tempo teve que fechar justo enquanto eu estava dentro da floresta e não conseguia ver as nuvens?’

    Nytheris parou ao meu lado, seus cabelos negros grudando na pele pálida. Seu olhar ficou fixo na figura à nossa frente, imóvel no meio da chuva.

    O lich não parecia se importar. As chamas que haviam pegado em seu manto foram apagadas em instantes, e agora ele simplesmente nos observava, como um predador esperando o momento certo para atacar.

    — Que azar o seu — disse ele, sua voz rouca cortando o som da chuva. — Não há saída.

    Meus pulmões queimavam. O ar úmido e o vento frio deixavam meu corpo ainda mais pesado.

    Nytheris avançou primeiro. Sua lâmina negra se estendeu, tornando-se uma espada fina e afiada. Com um giro súbito, tentou um golpe lateral.

    O lich, com um movimento suave da mão e um leve murmurar, pareceu convocar o vento ao seu redor. Um redemoinho invisível surgiu, bloqueando o golpe de Nytheris antes que a lâmina o alcançasse. A lâmina foi desviada para o lado, e o vento o empurrou para trás, fazendo-o cair de costas e escorregar um pouco na lama.

    Isso não era bom.

    Eu precisava agir. Agora.

    Ignorei a exaustão e, sem hesitar, ergui minha mão para o céu. A chuva caía forte, formando pequenas poças no chão. ‘Eu poderia tentar utilizar essa água…’

    A mana dentro de mim respondeu. Eu a senti se acumulando em minha mão. Com a visualização clara, comecei a agarrar todas aquelas gotas que caíam e também as poças de água no chão.

    A água ao redor dele se ergueu, contorcendo-se no ar antes de congelar em pontas afiadas. Lanças de gelo. Aproveitei a chuva para formar as lâminas e, então, lancei-as diretamente contra o lich, sem hesitar.

    Mas o lich não recuou.

    E novamente com um murmurar e um gesto com a mão, o ar ao redor dele se agitou violentamente, tão forte que destroçou totalmente as lanças de gelo, como se lâminas afiadas as tivessem cortado em inúmeros pedaços.

    Ele olhou para mim, e seus olhos vermelhos brilharam com uma expressão de pura concentração.

    — Interessante… — murmurou ele com um leve riso, a voz suave e segura, mas ainda extremamente bizarra, como se muitas outras tentassem se sobrepor à sua.

    Não importa o que eu fizesse, ele estava pronto. E parecia se divertir.

    Fragmentos de gelo caíram no chão. Meu coração batia contra minhas costelas.

    — Você não usa encantamentos… e manipulou as gotas de água. Inteligente. Um desperdício. Eu te vejo, garoto. Você não pertence a este mundo. Já morreu uma vez. Eu sei. Estive te observando desde que você entrou nesta floresta. Como você criou aquela coisa, hein? — O lich apontou seu dedo indicador com um anel dourado para Nytheris.

    O frio na minha espinha ficou mais intenso que a própria chuva. Pensamentos intrigantes passaram pela minha cabeça. Esse lich sabia sobre minha vida passada, ele via minha alma. Mas eu não podia me deixar levar pelos devaneios; o importante era sobreviver.

    A sensação de impotência me envolveu como uma capa pesada. Cada respiração parecia mais difícil, o peso da nossa situação caía sobre mim com a mesma intensidade da chuva. O lich não demonstrava pressa para nos matar; apenas se divertia com nossa tentativa, como se fosse um jogo.

    Nytheris se levantou, movendo-se lentamente enquanto observava a criatura diante de nós. Seus olhos estavam focados, mas havia algo em sua expressão: ele procurava, talvez, alguma brecha, algum ponto fraco que nos desse uma chance. A lâmina negra ainda estava em sua mão, mas seu corpo permaneceu rígido e tenso, como se soubesse que não havia muito a ser feito.

    Eu sentia o peso da mana dentro de mim, pesada e densa. Cada feixe de poder parecia me chamar, mas não era o suficiente. A chuva começava a diminuir, mas as nuvens ainda carregavam mais violência. Eu precisava de mais. Algo mais.

    O lich deu um passo à frente. A terra pareceu absorver seu movimento, como se a própria natureza o respeitasse.  De alguma maneira eu sentia que ele estava sorrindo amplamente, ele ergueu a mão que havia parado a lâmina de Nytheris no ar.

    — Eu esperava mais de vocês — disse ele, sua voz uma ameaça fria, sem emoção. Mas o brilho em seus olhos indicava algo diferente, uma fome, como se nos visse como meras presas.

    Fechei os olhos por um segundo, sentindo o vento gelado cortar minha pele. O que eu estava esperando? Eu já conhecia a diferença de poder entre nós e o lich, sabia que não podia lutar de igual para igual. Mas havia algo mais. Algo que eu poderia usar.

    A água que se acumulava ao nosso redor, a umidade no ar… tudo isso era uma ferramenta, uma arma. A magia da gravidade, da água, do vento. Bastava canalizar corretamente.

    Abri os olhos e apontei as palmas das mãos  para o lich. O ar ao meu redor ficou pesado, as gotas de chuva pararam de cair por um instante, como se o próprio tempo hesitasse.

    Senti a mana fluir, mais forte agora, mais fluida. Eu não reagia mais. Eu atacava. Usei a magia de gravidade para aumentar a pressão entre mim e o lich.

    O lobo do lich disparou contra mim. Nytheris reagiu no mesmo instante, cortando a distância entre nós.

    — Deixe-o, Nytheris! Retorne! — ordenei, e de imediato ele acatou, desaparecendo para dentro do meu peito. O lobo estava a apenas sete metros de mim.

    Um grito rasgou os céus quando as nuvens se fecharam mais uma vez acima das folhas. O céu, como se soubesse o que estava por vir, curvou-se para responder ao meu chamado. Relâmpagos desceram, atingindo exatamente o lobo. Eu havia mudado rapidamente a pressão do ar, criando um ponto propício para que o raio caísse. Foi um tiro no escuro, mas abriu uma brecha para fugirmos.

    As árvores mantinham-se densas de folhas, tão espessas que eu mal via o céu. Ainda assim, agachei-me rapidamente, peguei o livro do chão e, com esforço, anulei a gravidade ao redor do meu corpo usando a mão direita. Coloquei o livro sob a axila esquerda e soltei a adaga que segurava na direita.

    Conjurei novamente uma bola de pressão na mão esquerda, puxando o máximo de ar possível, e então a lancei contra o chão. Ela explodiu com um som seco, e fui lançado para o céu. Os galhos das árvores quebraram contra minhas costas.

    Sem gravidade para me segurar, passei pelas copas, subindo em direção às nuvens trovejantes. O vento assobiava em meus ouvidos enquanto eu subia. As nuvens rugiam, e os relâmpagos iluminavam a floresta abaixo. Por um breve instante, vi tudo — as copas balançando, o lich parado ao longe, o lobo caído e o chão enlameado.

    Minha mana quase havia se esgotado, mas senti a mana mundial fluindo ao redor, renovando minha energia.


    Minha subida desacelerou. A gravidade começou a me puxar de volta, mas eu não podia cair ali.

    Respirei fundo e puxei mais mana, ajustando minha posição. Usei um último impulso de gravidade reduzida para flutuar o suficiente e me distanciar do combate. Agora, só faltava escolher onde pousar.

    Meus olhos varreram o solo abaixo. Se eu caísse diretamente, o lich me alcançaria rápido demais. Até que avistei uma clareira onde a chuva batia no rio, enchendo-o ainda mais. Perfeito.

    Deixei a gravidade me puxar e ajustei minha posição no ar. O vento assobiava nos ouvidos enquanto eu descia; o impacto seria brutal se não controlasse.

    Com um último suspiro, usei a gravidade ao meu redor para desacelerar antes de atingir a água. Meu corpo afundou no riacho gelado, e a corrente me puxou com força. A escuridão da água me envolveu.

    Sem hesitar, deixei-me levar. A corrente me arrastaria para longe. Longe do lich. Longe da morte certa.
    E quando eu voltasse… voltaria preparado.

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