Dica para leitura: aspas simples são para pensamentos internos, que é esse símbolo: ’
Aspas duplas para conversa mental: “
Travessão para falas em voz alta: —
Prólogo — O Último Fragmento de Luz
O céu era um vazio impenetrável, sem estrelas, sem lua, sem esperança. Apenas um véu negro e opressor que engolia tudo em sua escuridão sem fim. O ar carregava o cheiro metálico de sangue seco e o peso de incontáveis ossadas enterradas sob as areias negras.
Ele caminhava. Seu corpo estava coberto de feridas cicatrizadas e roupas esfarrapadas. Suas botas surradas afundavam na terra fria, deixando pegadas que logo se perdiam na poeira movediça. Seu braço esquerdo estava envolto em tiras de couro improvisadas, uma tentativa de conter a dor de uma fratura mal curada.
Não havia magia ali. Nenhuma chama para aquecer o corpo, nenhum vento para carregar sua voz. Apenas o som de sua própria respiração e os passos solitários que ecoavam naquele mundo morto.
A única proteção contra o frio cortante era sua túnica negra, puída e esburacada, como se houvesse atravessado séculos de desolação. O tecido fino pouco fazia para barrar o vento gelado que mordia sua pele, mas, mesmo assim, ele caminhava. Pois, apesar de tudo, algo permanecia com ele. Cravado em seu peito, uma presença pulsava—sombria, inabalável. O único que nunca o abandonou. Um fardo e uma âncora, impedindo-o de tombar na terra e simplesmente desistir.
Ele parou diante de uma carcaça retorcida. Um monstro gigantesco, ossos emergindo da carne ressequida, garras que pareciam lâminas partidas. Fora uma batalha difícil, como sempre era. Flügel pegou sua espada improvisada — uma lâmina serrilhada, roubada dos restos de outro cadáver — e enfiou-a no crânio da criatura, certificando-se de que estava morta.
Seus olhos vazios encararam o horizonte distante. Aquele mundo era um túmulo sem fim. Mas ele não morreria ali.
Ele ainda tinha algo a fazer.
Ele ainda precisava voltar.
Flügel respirava pesadamente, cansado. Ele se sentou sobre a fina areia cinza que pintava o solo rachado. Ao seu redor, havia muitos ossos de criaturas mortas há muito tempo.
A presença que ficava constantemente em seu peito deslizou para fora, formando-se em um homem esbelto, de cabelos negros que chegavam até as costas. Seus olhos eram tão negros quanto o breu. Sua pele era tão pálida e opaca que parecia maquiagem.
— Eu cuido disso agora, Flügel. — O homem se abaixou ao lado de Flügel, pegando a espada feita do osso de alguma criatura daquele mundo.
— Fique atento, Nytheris… — Flügel se deitou, com as costas no chão, olhando para o céu bizarramente sem nada. Respirava com dificuldade, seu corpo surrado tendo que cicatrizar e curar-se sem a ajuda de magia de cura.
— Tudo bem. — disse Nytheris, com o cenho franzido, olhando para Flügel com preocupação. Ele se virou para a besta caída, uma criatura humanoide, mas deformada.
Aquela coisa era uma monstruosidade de carne ressecada e ossos expostos. Sua figura maciça e desproporcional parecia desafiar a natureza, com garras quebradas e músculos atrofiados. O corpo era marcado por cicatrizes e rachaduras profundas.
Nytheris foi rapidamente cortar a carne do titã, retirando principalmente a dos bíceps. A carne era inchada e esticada, totalmente nojenta e grotesca, porém, era a única coisa que Flügel tinha para comer ali.
Depois de pegar pedaços generosos do bíceps do gigante, Nytheris olhou para Flügel. Sua aparência estava deteriorada. Seu corpo estava mais magro, mas ainda mantinha um pouco de músculos.
Nytheris olhou para além de Flügel. Atrás dele, estava a pequena mochila que veio com ele para esse mundo. Nytheris rapidamente caminhou até a mochila e a pegou, guardando a carne do titã.
Ele voltou para o lado de Flügel.
— Terminei, Flügel. — disse, abaixando-se atrás de Flügel para ajudá-lo a se levantar.
— Ótimo… — disse Flügel, abrindo os olhos e vendo o rosto de Nytheris de cabeça para baixo, pois Nytheris estava às suas costas.
Ele se sentou com cuidado. Seu corpo inteiro doía, e cada movimento exigia muita força de vontade. Ele simplesmente gostaria de ficar deitado ali e dormir, mas sabia que não podia.
Nytheris agarrou Flügel sob as axilas, ajudando-o a se levantar do chão. Ele entregou o osso que Flügel usava como espada, retirado da vértebra de algum monstro morto.
Flügel também colocou a mochila nas costas e ficou parado, olhando para Nytheris, enquanto usava o pedaço de osso como bengala.
— Eu posso te ajudar, Flügel. Deixe-me ir na frente… — Nytheris implorou, sua voz abafada pela frustração. Já não suportava mais estar confinado dentro de Flügel, impotente diante das batalhas que o jovem enfrentava, sem poder sair para protegê-lo e lutar ao seu lado como sempre.
Flügel se manteve impassível, seu olhar distante, fixo no vazio à sua frente. Ele não desviou os olhos, nem sequer deu espaço para uma nova insistência.
— Não. Entre logo. — A voz de Flügel foi curta, sem chance de contestação, e sua decisão estava selada.
Nytheris estalou a língua, frustrado, mas não houve tempo para mais nada. Como um reflexo, ele se deslocou rapidamente para a mão direita de Flügel, subiu por seu braço, até chegar ao peito do jovem. Ali, parou, bem no centro de seu coração. Esse simples gesto, essa conexão, trouxe um alívio imenso a Flügel, que sentiu o peso da solidão diminuir um pouco. Era como sempre fora: Nytheris dentro de seu peito, a sensação de não estar completamente sozinho, algo que Flügel precisava agora mais do que nunca.
Com passos pesados, Flügel começou a andar, seus olhos vagando por um mar de ossos e carcaças que pareciam se estender até o infinito.
Flügel caminhou. Apesar de terem se passado horas, não havia nenhum sinal do sol nascer. Tudo naquele mundo era sombrio.
Algo começou a entrar no campo de visão de Flügel, era uma floresta. Não estava tão longe, provavelmente no máximo a dois quilômetros de onde ele estava. Ele só não a havia visto antes porque não havia uma única fonte de luz naquele mundo.
Ele continuou indo em direção à floresta. Cada vez parecia estar mais perto. Quando estava a cerca de 200 metros, ouviu algo parecido com um grito:
— Grarrrk!
Olhando para a fonte do grito, viu um enorme verme cor de areia. Sua boca era imensa, cheia de dentes afiados e finos, formando um tubo.
O verme tinha patas iguais às de uma centopeia sob seu corpo massivo. Ainda estava com parte do corpo dentro da areia, então Flügel não sabia seu tamanho real.
— Porra! — Flügel começou a correr. Seus pulmões doíam. Não apenas os pulmões, mas todos os músculos de seu corpo.
— Ele entrou dentro da areia novamente, Flügel. — Alertou Nytheris.
A garganta de Flügel doía, mas ele conseguiu chegar à floresta. Estava tonto de fome e sedento, mas não parou de correr.
Havia uma montanha à frente, e Flügel sentiu uma estranha urgência de correr para lá.
Ele chegou perto da montanha e encontrou uma fenda entre as rochas. Sem pensar duas vezes, enfiou-se na escuridão da caverna. O verme de areia ainda estava lá fora, mas algo dentro dele dizia que seu destino estava à frente. Mesmo no breu absoluto, continuou a descer, sentindo a pedra fria sob seus dedos machucados. Ele não sabia o que encontraria lá embaixo. Mas, naquele mundo sem esperança, qualquer coisa era melhor do que a superfície.
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