Índice de Capítulo

    A madrugada caía sobre o Bambuzal de Arashi, somente o vento atravessava os imensos bambus. O ar tinha um cheiro forte de vegetação e areia úmida, mas nem o mais sensível dos sentidos captava o som de animais.

    Nada se movia, nem insetos, nem aves, nem folhas.

    Tudo estava em silêncio, porém, era um silêncio temporário: uma missão precisava ser executada.

    Algo sorrateiro passou entre os bambus: um vulto, rápido como uma lufada de vento, mal perceptível… depois outro, mais um, e mais outro… duplas, quintetos, dezenas. Uma sequência de sombras que preenchiam a noite com seus olhos atentos passavam entre saltos rápidos e aterrissagens silenciosas.

    O clã Bakurou estava em ação.

    Ninguém se perguntava sobre a moralidade da missão, não havia tempo para isso; o que importava era terminar o serviço o mais rápido possível, suas vidas estavam em jogo, e para sobreviverem, um homem precisava ser encontrado e morto em um lugar tão vazio que o fato de existir vida nas redondezas parecia mentira.

    Mas o bambuzal sabia da verdade: sua extensa área jamais esteve completamente vazia, ela tinha um rei…

    Uma pedra lisa sob uma lâmina rangia levemente conforme o metal deslizava, afiando uma arma que possuía anos de história e milhares de mortes. Um ritual sem pressa, sem propósito imediato, mas necessário como a respiração. 

    Uma pele usada como roupa carregava a memória de um tigre, uma carcaça que outrora viveu e caçou servia de vestimenta sobre os músculos de um espadachim agraciando sua paz com o simples afiar de sua katana. 

    Porém, uma presença que não pertencia àquele lugar ali estava, tão imóvel quanto as raízes abaixo da terra.

    A própria pedra sendo usada para amolar a espada, refletia o brilho das centenas de olhos. Eram muitos, estavam próximos, e ainda assim, não o atacavam.

    O homem enfrentara enxames furiosos e incessantes, conhecera a selvageria de primatas, mas aquilo? Aquilo era diferente. A presença que o cercava não pressionava com o terror animalesco, nem rugia como as bestas que costumava abater. Era contida, observadora; e não, não era áurica, um detalhe entendido pelo ronin que viveu tempo suficiente entre os áuricos para conhecer a energia que exalavam, ainda que sem senti-las como eles próprios a percebiam.

    Estava claro: os olhos na escuridão não eram de meros observadores, eram de iguais. Mas então, por que não atacavam? Por que permaneciam nas sombras, apenas olhando?

    A lâmina parou. A pedra, antes tão útil, parecia o altar onde um sacrifício deveria acontecer.

    Sem olhar para trás, o homem ergueu-se devagar; o vento passou de novo, cabelos longos e escuros balançaram.

    A noite sempre escondeu segredos, e naquele bambuzal, onde o tempo entre o ontem e o amanhã permanecia silencioso, havia expectativas… e onde olhos brilhavam na escuridão, haviam histórias esperando para serem contadas…

    — Ôe! Homem da pele listrada!

    — …

    — Tu és o ronin trivial que vem matando áuricos e desbalanceando a fauna desta área?

    — …

    A-m, líder… Eu acho que ele não está ouvindo.

    — … Ele está, sim.

    — Mas ele não reage!

    — Pois é, o que faremos agora?! Esse cara é sinistro!

    — Deixem disso, olhem pelo lado bom, pelo menos ele tem costas largas e um cabelo lindo, não?! Deixa eu chegar perto dele, líder?!

    — Silêncio todas vocês! Irei na frente. Mantenham-se alertas.

    O som da areia macia recebendo um novo corpo espalhou-se pela floresta, e embora não desse para notar diferenças visuais na escuridão ecoante, o foco estava lá: entre o brilho de olhos atentos.

    — Por que você vive aqui? Onde conseguiu esta katana? Por que tira a vida de seres inocentes e culpados?

    — …

    — Nem mesmo é possível achar insetos pelas redondezas, sabe o tanto que isso é perigoso? — Sorrateiramente, a líder foi exposta da escuridão, revelando assim suas roupas de shinobi ajustadas às duas espadas cruzadas nas costas. — Você … me escuta…?

    O homem virou-se, e ao encarar por alguns instantes, a postura firme da mulher tomou cautela.

    — Hmm… — Para ela, o rosto dele não era como imaginara: não era uma fera nem o assassino descrito pelos rumores.

    Os olhos do ronin refletiam algo inesperado: havia um brilho de fascínio, como se estivesse diante de algo que não encontrava há muito tempo. O que ele via? O que ele pensava? Nenhuma das mulheres sabia, mas uma coisa era certa: não interessava o que os boatos diziam, havia uma pessoa perdida ali, uma pessoa que precisava ser encontrada.

    Mas antes de tudo, precisava-se entender e saber por que um homem tratado como uma lenda assassina na comunidade áurica estava agindo de forma tão suspeita perante um grupo de kunoichis camufladas e claramente perigosas.

    A líder deu um passo à frente, a areia sob suas sandálias de madeira afundou um pouco. 

    — Você… é mudo?

    Uma expressão de leve confusão desenhou-se no rosto masculino, era como se aquela palavra nunca fosse escutada.

    He he he! Eu sabia que um homem desses não poderia ser tão mau! Olha essa cara de quem perdeu a janta!

    Isso tá me cheirando a problema… E se ele estiver nos enrolando? 

    — Foco, vocês! — A líder cortou as conversas paralelas, mas não desviou os olhos do alvo; algo na expressão dele a incomodava. O homem estava desnorteado? Ou aquilo fazia parte de um sentimento mais profundo? Essas perguntas estavam sendo caçadas pela que aproximava passos até um desconhecido. — Não há mais seres por aqui, como você vive sem comer carne? Está com fome? Está com frio? Precisa de uma casa?

    — …

    — Você… está com me-

    A katana foi preparada.

    — Oh, você não quer que eu chegue mais perto. Tudo bem.

    “Talvez eu tenha me precipitado em aparecer desse jeito. Se esse indivíduo executou todas as vidas áuricas que pisaram neste lugar, então ele não é brincadeira. Não me sinto ameaçada, mas preciso mostrar que não sou hostil.” 

    Ainda que a distância entre os dois estivesse espaçada, o clima estava tenso. Ninguém mais falava. Não obstante, todos estavam atentos.

    — Você… é-

    Subitamente, um vulto veloz, acompanhado pelo som cortante de algo pesado e rígido rasgando o ar, irrompeu por entre as folhas.

    A única fora das sombras olhou para o lado e viu uma grande pedra voando em sua direção; com certeza, se fosse acertada, sua cabeça seria explodida em milhares de pedaços, mas isso não foi problema por conta de dois fatores: o primeiro, o objeto seria facilmente desviado pela shinobi; o segundo, ela nem precisou desviar.

    O homem, com sua katana e velocidade impressionante, partiu a pedra em dois antes que ela acertasse a mulher. Certamente, foi um ato heróico, e talvez, o primeiro que fez na vida.

    Os dois lados da pedra passaram pela mulher e arrastaram-se na areia.

    Todos continuaram quietos.

    “Ele… me defendeu?” A líder observava a feição séria do homem que olhava para os bambus à procura de onde o ataque veio. “Bom, acho que ele não é mais uma ameaça.”

    — Hohohoo — uma voz rouca com um sotaque estrangeiro que puxava o R surgiu entre as sombras, bem abaixo dos olhos que antes observavam acima, mas que naquele momento, haviam sumido — não esperava que triviais poderiam ser tão rápidos!

    “Não vejo as minhas garotas… Onde estão?! O que aconteceu com elas?!”

    — Quem está aí?! — indagou a líder.

    — Calada, inferior. Sou eu quem faço as perguntas aqui. O que kunoichis estão fazendo atrapalhando a minha caça? São enviadas de Tokugawa?

    — Não damos informações para rostos ocultos, apareça!

    — Hohohoo… Tudo bem, você venceu. Mas não vá achando que sou tão bonzinho — saindo da escuridão, um homem velho, com cabelos grisalhos e uma farda bege e medalhada, deixou à mostra todas as suas cicatrizes na cara, uma cortando seu olho esquerdo de cima a baixo, outra acentuando um sorriso em sua bochecha direita. Era um shihai caçador de recompensas.

    “As outras não aparecem, o que aconteceu com elas? Não… talvez seja nada. De qualquer forma, não posso perguntar. Confio nas minhas irmãs.”

    — Sei que somos tratados como inferiores por vocês, mas não é bom subestimar presas quando se está em menor número. Se eu fosse você, não nos desafiava.

    — Hooohohohooo! Entendo… entendo! Estar cercado por triviais cujas habilidades são um grande mistério, eu estou sabendo disso. Mas você não concorda que assim as coisas não ficam mais divertidas?!

    “Este velho está louco, ou talvez muito confiante. Quero muito dissecar esta farda dele para desvendar pra quem ele trabalha!”

    — Então, pretende nos atacar mais uma vez.

    — Atacar? De novo? Não, não, não, eu não ataquei, só chamei a atenção. Os que irão atacar desta vez, serão todos vocês — o velho abriu os braços, estava decidido a aceitar qualquer aproximação — andem, suas fajutas! Estou ansioso para descobrir o que triviais podem aprender sozinhos! — Ele permanecia de pé, seu sorriso cortado projetava uma confiança inabalável. Mesmo sozinho, não parecia minimamente preocupado, muito menos amedrontado.

    Foi nesse instante que uma das sombras moveu-se.

    HAAAAIIIYAAA!!! — Sem hesitação, uma kunoichi, com uma lâmina curta refletindo um brilho mortal, descia das alturas enquanto cruzava a escuridão da noite, pronta para partir uma cabeça ao meio.

    Mas o chão respondeu antes que a lâmina pudesse encontrar carne: em um único instante, o punho do homem ergueu-se com força, um pilar de pedra irrompeu do solo com violência e atingiu a barriga da kunoichi no ar. O impacto fez o corpo da mulher dobrar como um boneco de pano antes de ser arremessado de volta para a escuridão do bambuzal.

    Aliviada, a líder então percebeu que suas iguais apenas se afastaram. — Ufa, elas estão bem.

    Outras sombras saltaram do alto das árvores e avançaram, lançando shurikens e kunais em várias direções que buscavam o mesmo paradeiro. Durante os ataques à distância, haviam as que tentavam criar brechas para ataques corpo a corpo.

    Mas o velho não estava interessado em brincar parado, seu pé cravou-se na terra, e em um piscar de olhos, um muro de pedra ergueu-se ao seu redor, bloqueando os projéteis. No momento seguinte, pedaços de rocha vindas do chão foram lançados do solo como tiros de canhão em todas as direções; kunoichis foram acertadas e outras forçadas a saltar para evitar o impacto.

    — Ele está nos lendo! — gritou uma delas, recuando para a segurança das sombras.

    Todas já esperavam resistência, mas aquilo era outro nível. Além da força bruta de um guerreiro experiente, o velho também tinha a percepção aguçada de um jovem.

    Mas as sombras não desistiam.

    Uma emergiu de trás, sua curta lâmina visava a nuca do homem. Outra surgiu lateralmente, investindo com um chute direto nas costelas. Uma terceira deslizou pelo solo, buscando acertar um golpe rasteiro. Mas nada tocou o velho. Com um repentino giro agachado, seus pés passaram sobre a areia, e rapidamente, uma barreira circular bloqueou todos os ataques e criou uma nova proteção que escondia o seu próximo movimento.

    Cada ataque das kunoichis foi previsto, muitas foram feridas e tiradas de batalha, algumas em bom estado hesitavam atacar novamente, mas era certo que todas recuaram.

    O velho não se ocultou à toa, e o pior de tudo: ele sequer ofegava.

    — Tsc — a líder cerrou os punhos — ele não está lutando para matar… — sua mente formulava um novo plano. “Esse shihai não está nos tratando como caça. Se quisesse, já teria esmagado nossos corações e arrancado nossas cabeças com essa aura pedregulhosa. Mas não. Esses golpes servem para afastar, desorientar, incapacitar, e causar dores desnecessárias para quem já poderia estar morto. Pode ser que isso signifique uma abertura…” — Lâminas de duas wakizashi1 brilharam ao serem sacadas. — Certo, vamos ver do que este velho é capa-

    Entretanto, o homem colocou sua mão à frente da mulher ao lado e impediu o avanço.

    — … O que você quer?

    — …

    — Ah, entendi. Você quer ir sozinho, não é? — As wakizashi foram guardadas. — Haaah, você parece bastante egoísta. Mas se está tão confiante em enfrentar um áurico, vá na frente. Saiba que estaremos atentas e observando, assim como costumamos fazer. 

    O ronin não respondeu, não porque não tinha algo a dizer, mas porque sua língua nunca conhecera a necessidade das palavras; o silêncio era seu idioma, e naquele instante, o vento balançava as frestas dos bambus como uma língua mais expressiva do que qualquer uma falada por humanos.

    As pedras que se erguiam como muralhas desceram suavemente, como se cedessem à presença do homem que não falava. O velho shihai sorriu, o sorriso de quem sabia o que estava por vir. — Eu estava esperando por você. Ouvi suas histórias… sei de onde vem.

    O ronin, que até então não demonstrava emoção alguma, abriu mais os olhos por um breve momento. Uma faísca de surpresa, tão ínfima que desapareceu no segundo seguinte, mas não passou despercebida pelo shihai.

    — Então acertei — assentiu o velho, sem precisar de confirmação — um homem perdido que se veste das mortes que causou. Você veio do sangue dos samurais esquecidos, da aldeia onde guerreiros áuricos forjaram suas lâminas e seus ideais.

    O ronin permaneceu imóvel, mas sua lâmina tremeu levemente na bainha, como se os ossos de seu pulso, contra sua vontade, reagissem ao que ouvia.

    — Seu mestre… um homem forte e lendário, com aura de metal que dava vida à uma lâmina recém-forjada. Este samurai lutou ao lado de Yukimura, defendeu o Castelo de Ousaka, e morreu de forma digna no campo de batalha, deixando assim um legado para os seus seis filhos, um deles, recém-nascido.

    O ronin poderia ter fechado os olhos e se perdido na memória, mas não o fez. As palavras do velho eram apenas uma confirmação do que ele já sabia. Seu pai, “o homem forte”, assim como desejava, tornou-se uma lenda. Mas o que aquilo significava para ele? Nada, nenhuma lembrança reconfortante, nenhum orgulho, nenhum remorso, nenhuma felicidade, apenas um nome enterrado no passado, um nome que não mudava o que ele mesmo virou: um homem que só tinha o propósito de eliminar todos os áuricos à sua frente. 

    Sem um resquício de hesitação, o ronin rapidamente avançou com sua katana desgastada.

    A lâmina que aprendera a matar sem o peso da emoção, guiada apenas pelo instinto e pela necessidade, seguiu um movimento limpo e sem desperdício.

    Mas o velho não recuou.

    Os muros de pedra podiam ter descido, mas ele era um shihai; e se o homem diante dele era um tigre, ele era uma montanha.

    A espada tentou ataque veloz, certeiro; o velho shihai ergueu um braço; rochas subiram de onde não havia nada; o ronin girou no último segundo, evitou o bloqueio e redirecionou sua lâmina para o flanco do ancião; mas os pedregulhos se moveram com ele. Cada passo dado pelo velho moldava o terreno, cada gesto fazia pedras agirem. A katana do ronin encontrava resistência não na carne, mas em paredes rígidas que surgiam no exato momento do impacto de qualquer golpe fatal.

    — Você luta bem — disse o velho, movimentando apenas uma mão com a tranquilidade de alguém que há muito dominou sua própria força — mas sua espada atua nas mãos de um ser humano limitado, isso a torna previsível… Só que… — O velho franziu o cenho, aquela era uma luta diferente. Ele já enfrentara triviais antes, triviais furiosos, vingativos, desesperados; mas aquele homem era um vazio ambulante, um assassino que não lutava por raiva ou justiça, apenas por propósito: matar áuricos… E isso, o tornava perigoso. “Preciso derrotá-lo logo.”

    1. Wakizashi: espada curta usada como secundária pelos samurais, e primária pelos ninjas.[]
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