Capítulo 46 - Os iluminados, parte 1
Ao despertar, Jarves ergueu o rosto de uma cama adornada por lençóis escuros, tingidos por um profundo matiz de desesperança.
Seus olhos exibiam o cansaço que se instalara em sua expressão, enquanto o odor nauseante impregnava seu peito mais uma vez, como um lembrete persistente de sua desolação.
Talvez pela derradeira vez… Ao pé da cama, repousava sua mala como testemunha silenciosa de suas jornadas.
Não era para o oeste; era, todo dia, o drama de se perder em seu próprio peito.
Estava vestido como se tivesse adormecido à espera de um chamado, envolto em um sobretudo acinzentado que obscurecia sua figura, conferindo-lhe a aura de um médico em prontidão, e usava uma calça azul desbotada.
O quarto que o acolhia não era seu; seus olhos se confrontavam com uma coleção de quadros antigos, testemunhas mudas de uma vida distante.
Entre eles, um retrato de um casal idoso, cujos rostos permaneciam ocultos pela passagem do tempo, perdidos no emaranhado de mofo que corroía cada fotografia impiedosamente.
Apenas seus trajes simples e o gesto eternizado de mãos entrelaçadas os identificavam. Era o espectro do passado, a presença que assombrava os recônditos de sua alma, corroendo-a lentamente.
— Até breve… — sussurrou, fitando-os.
E com um movimento do corpo, virou-se, sentindo o peso da exaustão no coração, mas arrastou-se até ficar de pé.
Agarrou a mala firmemente e desceu a escada, a madeira rangendo sob seus passos como se estivesse prestes a se desfazer, cada ruído ressoando pela casa vazia, ou melhor, por aquele cemitério.
Passo a passo, avançou até estar do lado de fora, onde um táxi o aguardava, arrancando-lhe um suspiro profundo de alívio ao vê-lo.
Alívio por sair dali, medo de sair dali.
E o motorista, absorto em seu smartphone, esperava, com uma melodia descontraída fluindo do aparelho. Ocasionalmente, soltava uma risada inaudível para o rapaz.
Que sem pressa, se aproximou do táxi e colocou a mão no bolso, retirando a nota de mil ienes que Milk lhe dera antes de partir.
Com um leve toque, bateu no vidro.
— Jarves?
Sua voz soou abafada, e o motorista, após um momento de surpresa, girou a manivela para baixar o vidro, olhando para ele com curiosidade.
— O que disse?
A música estava alta, parecendo vir de algum vídeo de comédia — algo além de sua compreensão.
— Ehr… Este é o táxi que pedi? Sou o Jarves…
— Ah, isso! Isso mesmo! Entra aí, garoto — o respondeu, praticamente ignorando-o enquanto voltava a atenção para a tela, soltando mais uma risada — Caramba… esses caras são bons!
Enquanto ele revirava os olhos, abria a porta e entrava, sentindo-se constrangido. Observou cada centímetro do veículo — velho, com cheiro de mofo e bebida — algo familiar, nunca sentira o perfume das flores, apenas o odor dos homens.
Quando colocou as mãos no volante e acelerou, a viagem seguiu em silêncio — pelo menos em termos de conversa.
O motorista permanecia entretido com seu smartphone ao lado do volante, rindo constantemente… só sabia rir.
E, felizmente ou infelizmente…
Após cerca de meia hora, chegaram ao distrito de Gou. Ele desceu em frente ao prédio, aliviado por sair daquele carro. O tempo parecia nublar; hoje seria um dia típico de chuva.
Mas nada o torturaria mais do que a alegria daquele cara…
— Outro cara? — perguntou o loiro, o mesmo que estava conversando com Milk na praia.
Desta vez, parecia bem mais à vontade: usava uma camisa de verão aberta, exibindo o físico impecável, e uma bermuda florida.
— Ehr…
Quando o jovem olhou para baixo, reparou nos chinelos de dedo.
Outro palhaço… pensou, desviando o olhar, meio sem graça.
— Você também é um… cavaleiro?
— Sou, isso mesmo! — Estendendo o braço. Uma tatuagem de serpente se enrolava do bíceps até o pulso — Prazer, Alexander!
— Jarves… — Apertando sua mão, os olhos se medindo.
De repente, uma voz suave — mas firme como o som de uma espada desembainhada — cortou o momento.
— Cheguei atrasada?
Era a garota convocada. Ela os fitava com a confiança de sempre: postura ereta, as mãos afundadas nos bolsos da calça, exalando aquela marra feminina que podia intimidar qualquer um.
— Uau… E quem é você, princesa? — soltou o loiro, provocando, um sorriso de canto nos lábios.
— Halyna. — Sem pestanejar, o olhar fixo nele — Você deve ser o Alexander, certo?
— Uhum… — Cruzou os braços, claramente interessado mas, convenhamos, o que não chamava a atenção desse metido a garanhão? — E aí, tão gata assim… quero até sobrenome. Hehe!
Ela ergueu uma sobrancelha, um sorriso gelado se formando.
— Boyko, rapazes…
— Depois disso, o dia até parece… mais bonito.
O outro pigarreou, tentando disfarçar o constrangimento. Enquanto isso, o descarado mal se dava ao trabalho de parecer contido.
— Ehr… dizendo assim, até parece que estamos aqui pra brincar…
Sentia-se deslocado entre aquelas duas personalidades tão intensas — e tão diferentes da dele.
— E não estamos? — rebateu o loiro — Eu gosto de garotas altas… sabia?
— É mesmo?
A moça arqueou uma sobrancelha, aproximando-se sem hesitar. A postura firme, quase desafiadora, e o leve sarcasmo na voz deixavam claro que intimidação não fazia parte do vocabulário dela.
— E quem disse que isso é problema meu? — retrucou, num tom cortante, parando bem ao lado dele.
Os dois ficaram frente a frente, tão próximos que quase podiam sentir a respiração um do outro.
Tinham praticamente a mesma altura, mas a diferença de porte era gritante — Alexander parecia um brutamontes ao lado dela, mas ela exalava tal confiança que o deixava menos intimidador do que gostaria de admitir.
Que estranhos…
Jarves se aproximou da porta e, apressado, apertou a campainha ao lado da maçaneta.
— Vamos sair logo daqui. As pessoas podem começar a estranhar… não acham?
— Estranhar? O quê? Cara, eu tô praiano! — Tentando soar descontraído, mas sem conseguir arrancar nem um sorriso dos dois.
— Não tô falando do que você veste… cara! Mas, ehr… você é muito extravagante.
— É bem um imbecil na verdade, mas enfim… o garoto tem razão — Ela se aproxima de Jarves, enquanto as pessoas à volta fazem questão de não chegar muito perto, nem encará-los por mais de um segundo.
— Nhã…
Ele tenta girar a maçaneta, mas nada. Uma… duas vezes… na terceira, para, respira fundo para conter o nervosismo e encara os dois, sem jeito.
— Ehr… eu…
— Nós entendemos. — A mão dela pousou em seu ombro, num gesto quase reconfortante.
E Alexander riu, já escorado na parede.
— Deve ter ido ao mercado, sei lá… Só relaxa, garoto.
Não demora muito e eles chegam a trocar olhares estranhos, daquele tipo de “né…” silencioso que ninguém tem coragem de pôr em palavras… até que Milk aparece, descendo as escadas.
Usa um sobretudo preto e uma calça de cós baixo. Aproxima-se da porta, abre-a devagar e fica cara a cara com os três.
— Vieram mesmo… olha só…
Quebrou de vez aquele clima de brisa da manhã, mesmo que o céu estivesse cinzento.
— Pois é… você não me deu muita escolha convidando daquele jeito…
O loiro mordeu o lábio após falar, o que o fez revirar os olhos.
— Nojento… — suspirou, ignorando o encarar — Vamos entrando pessoal?
— Certo… — responderam Jarves e Halyna ao mesmo tempo, avançando assim que ele se virou para subir a escadaria, com Alexander logo atrás.
Com as mãos na cintura, fingiu que estava sério.
— Lugarzinho… — murmurou, lançando um olhar em volta.
— Então… Milk, né? Do que se trata esse chamado? — perguntou ela, evitando encarar o lugar por muito tempo; o toque gritava em seu peito.
— Vão passar o plano pra vocês e, provavelmente, fazer algumas perguntas. Não posso garantir nada… mas, dependendo do humor deles, isso pode ser angustiante ou tranquilo. Certo?
— Deles? — Jarves engoliu seco — Perguntas?
— É, Romero e Rasen… ehr… perguntas pra conhecer vocês, eu acho!
Enquanto, passava pelo apartamento de Kwawe, que os observava com uma expressão fechada — fruto das latas de cerveja que tinha virado só pra segurar a ansiedade.
Intimidador o suficiente pra ninguém ter coragem de passar.
— Calma, é só o Kwawe…
— Puff… — bufou Alexander.
Assim que passou na frente deles, tomou a dianteira sem hesitar — e ainda devolveu a encarada, firme, como se fosse um desafio silencioso.
— Cara feia pra mim é fome! — resmungou Alexander, rindo sozinho.
Os outros vieram logo atrás.
— Idiota…
Disseram os quatro em uníssono. Agora o grandalhão também subia logo atrás, fazendo a madeira velha estalar sob o peso.
Quando finalmente chegaram, Milk se adiantou e interrompeu os dois, batendo de leve na moldura da porta.
— Coff… coff… Eles já chegaram! — disse Milk, lançando um olhar rápido pelo apartamento. Algo parecia fora do lugar, talvez a última peça para tudo finalmente começar — Cadê o Antonio?
Sua expressão ficou mais séria.
— Ah, ele disse que bebeu demais e tá no banheiro! — respondeu o messias, tirando a mão do ombro da cabeça por trás daquilo tudo. Os dois estavam de frente para um quadro, sapatos já limpos, enquanto observava tudo com uma expressão convencida — Entrem! Por favor!
Com certeza, na mente esnobe dele, todos ali não passavam de servos. Era assim que via até mesmo Romero.
— Certo… vamos, gente — disse, entrando primeiro e se posicionando atrás da poltrona. Jarves, ainda um pouco tímido, encostou-se na parede ao lado do quadro. Halyna foi até a janela, parando ao lado de Kwawe. Já o loiro ficou parado na moldura da porta, como se não fizesse questão de entrar de imediato.
O instante em que vão entrando é acompanhado por um silêncio quase solene, interrompido apenas pelo eco dos últimos passos no ambiente.
— Bem… eu não conheço nenhum de vocês — começa o líder, lançando um olhar firme para seu servo mais leal e depois para Rasen. Ele reúne as palavras nos lábios, como se as moldasse com cuidado — Como o Milk já disse, nosso plano é mudar este mundo… Que já está podre, sem chance de salvação. Mas a pergunta não é o que queremos fazer… e sim como vamos fazer. Não é isso?
Ele não espera apresentações, tampouco confirmações.
— Sim… — responde Kwawe, de braços cruzados, atraindo de imediato a atenção de todos. Sua expressão é séria, o dedo tamborilando no próprio braço.
— Enfim, como eu e Rasen discutimos, nosso primeiro movimento será um ato terrorista! — Puxando todos os olhares para si. Ele desliza a mão pela mesa, produzindo um ruído agudo que corta o silêncio — O plano é invadir o prédio administrativo da Ordem, no distrito de Katakana. Se vocês realmente estão nessa, espero que estejam preparados… porque vamos cometer um massacre!
Ao ouvir, a inquietude tomou conta de Halyna, enquanto um sorriso forçado se formava no rosto do loiro. Milk segurou a poltrona com força, como se buscasse se ancorar ali. Já Kwawe, Rasen e Jarves pareciam se animar com a ideia.
De seis corações, três batiam ansiosos por vingança… ou talvez só por puro sadismo.
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