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    No meio da rua, a noite já dominava os céus.

    Um rapaz, vestido com um sobretudo preto, observava as televisões em demonstração atrás do vidro de uma loja.

    A via estava movimentada e suja; pessoas transitavam apressadas, algumas esbarravam nele sem se importar, como se fosse apenas mais um obstáculo no caminho.

    E até era, permanecia imóvel, completamente imerso no que via.

    “As vítimas foram identificadas como Claire Dubois, Hans Müller e Kofi Mensah. Três jovens exorcistas, todos na faixa dos dezoito anos, que foram brutalmente assassinados na madrugada do dia 34… Tudo indica que tenha sido uma entidade muito poderosa, segundo A Ordem Espiritual!”

    Ao ouvir, riu de imediato e se virou para a multidão à frente.

    Vermes… se aproveitando da desgraça alheia…

    Pouco depois, uma música começou a ecoar pelas caixas das televisões.

    Primeiro, o som suave de um violão, logo acompanhado pelas trombetas que anunciavam a abertura do programa no canal sete, muito popular entre os Aijianos.

    O apresentador, um mestre em ciência, história e humor, surgiu cantarolando para a câmera, encarando diretamente o telespectador com seu habitual ar de confiança.

    “Ah, meus amigos, hoje vamos explorar o nem tão maravilhoso mundo do Simulacro de Schattenstein! Mas antes, voltaremos no tempo, há milênios atrás, quando um tal de Elumismo surgia entre os povos Axumos… Eles acreditavam que o mundo foi criado numa grande espiral, como se Elum tivesse traçado uma rota labiríntica pelo cosmos!”

    Ele pegou um giz e desenhou uma espiral na lousa, sem perder o humor peculiar que o caracterizava.

    Balançou os quadris de forma caricata, piscando para a câmera como se compartilhasse uma piada secreta com cada telespectador.

    A plateia voltou a rir, acompanhando-o.

    “E então surgiu Schattenstein, o polêmico escritor! Imaginem só, ele pegou essa história toda e adicionou um toque de conspiração. Para ele, o mundo precisava de uma ‘limpeza espiralada’! Uma ideia um tanto… controversa, não acham?”

    E então… a câmera mudou o foco, enquadrando a figura política mais controversa da época: o imperador de Shamo, Oba Adekúnlé, tristemente famoso pelos genocídios racistas contra os povos do deserto.

    O rosto dele surgiu na tela como uma sombra incômoda, arrancando da plateia não risos, mas murmúrios abafados.

    “Esse ai é pior…”

    A plateia caiu novamente na risada enquanto ele fez uma pausa dramática e ergueu uma sobrancelha de maneira exagerada.

    “Enfim e, quando foi que Schattenstein decidiu que seria o arauto dessa tal ‘limpeza espiralada’? Ah, meus caros, foi quando os Sions foram acolhidos por Regnum após uma grande tragédia. E foi aí que começaram os problemas! Schattenstein e sua família, ligados a um povo considerado ‘inferior’ aos olhos da sociedade da época… E pronto, nascia um complexo de pureza e um ódio pelo diferente digno de um vilão de novela!”

    Desenhou uma interrogação ao lado da espiral, como se estivesse desvendando um grande mistério diante da plateia.

    “E foi assim que tivemos a saga do Simulacro de Schattenstein, um guia para os ‘insanos’, segundo ele. Uma jornada por realidades alternativas que, vejam só, acreditava ser a salvação do mundo!”

    A câmera então focou no rosto expressivo do apresentador.

    “Portanto, meus amigos, antes de tentar criar um simulacro para dominar o mundo, é sempre bom pensar duas vezes… ou talvez apenas rir um pouco das ideias mirabolantes que a mente humana é capaz de conceber!”

    A plateia aplaudiu enquanto o cientista-comediante se preparava para continuar, mas seu telespectador já não estava mais ali.

    Imerso na multidão, apressou o passo, enfiando as mãos nos bolsos do sobretudo.

    Os cabelos pretos, caindo quase à altura dos olhos, balançavam, enquanto, entre os inúmeros transeuntes, alguém o seguia lentamente.

    Todos cochichavam sobre os garotos mortos, sobre a crescente oposição à Ordem e sobre a reunião marcada entre o governador e o líder da organização.

    A população de Nova Tóquio jamais estivera tão absorvida pelos acontecimentos; cada rosto escondia-se atrás de uma máscara, temendo ser afetado pela temida síndrome da escuridão.

    A claridade desaparecia pouco a pouco, e a noite assumia o domínio sobre a cidade.

    Apenas o azul profundo do céu e o cinza pesado das nuvens se destacavam contra a escuridão.

    E a cada passo, seus movimentos tornavam-se mais calculados, enquanto a multidão se dispersava rua após rua.

    Por fim, após meia hora de caminhada, ele virou em uma via escura, mal iluminada por postes que piscavam de maneira defeituosa, lançando sombras inquietas sobre o caminho.

    Parou, e seu perseguidor também interrompeu os passos.

    — O que quer? Quer me assaltar? — perguntou, virando-se surpreso ao perceber a figura sombreada, marcada por tatuagens que se espalhavam pelo pescoço — É você… Rasen?

    Os dois se encararam como se fossem fantasmas um para o outro, espectros de passados diferentes, mas ainda assim inconfundíveis em sua essência.

    — Hazan… quanto tempo, não? — respondeu, assentindo com a cabeça enquanto se revelava sob a luz trêmula de um poste.

    — É… disseram que você tinha ido para Shamo, e depois que havia se desvinculado da Ordem. Eu não entendi, mas jurava que estava morto! — Deu dois passos adiante, apenas para perceber o outro recuar — Que foi, cara?

    — Você ascendeu ao grau cinco, parabéns! Sempre foi talentoso, desde que nos conhecemos no Ritual de Passagem! — Observou os braços do antigo parceiro, cujas mangas deixavam à mostra cinco cruzes — Você será minha escada!

    Ergueu o olhar, encarando-o com uma frieza que este jamais sentira antes.

    — Topa?

    — Como?

    Apenas o silêncio respondeu.

    A escuridão parecia se fechar ao redor, e o frio se infiltrava na pele. Nada poderia ser menos reconfortante, e, no entanto, um sorriso mesquinho brilhou no olhar do Messias.

    — Está louco? Você quer… me enfrentar, cara? Sério? — Hazan deduziu, jogando um dos braços para trás, em posição defensiva — O que está pensando? Não éramos amigos? Parceiros?

    — Éramos… Na verdade, ainda somos. Por isso, eu não te matei no primeiro instante. Quero ver se estou pronto!

    A aura começou a envolvê-lo lentamente, e seu olhar passou a reluzir com a promessa da morte.

    Isso é uma brincadeira? Não… aqueles olhos… aquela postura!

    Hazan deu um passo para trás.

    — Enlouqueceu de vez? — Enquanto sua própria aura se acendia, contornando sua silhueta em tons amarelos, vibrantes como girassóis em plena Aurora — O que aconteceu? Não me diga que está seguindo Romero nessa loucura toda… Você é um iluminado? É isso?

    Juntou os pontos, incrédulo.

    — Loucura? — Enquanto a ventania agitava suas vestes. O sobretudo oscilava ao redor de seu corpo, folhas secas rodopiavam pelo chão, e o silêncio pesava sobre aquele instante de tensão — Por que a surpresa? Você é um exorcista. Não deveria aproveitar o embalo da coisa? O caos está prestes a se desenrolar… banhe-se nele!

    As palavras não faziam sentido para o desfiado, que prontamente analisou os gestos de mão do adversário.

    Em uma corrida curta, tentou agarrá-lo, mas falhou.

    Já havia previsto o movimento e saltou para trás, o olhar afiado como lâmina.

    Suas mãos ficaram afastadas, abrindo bem o peito e a guarda, mas logo ajustou o equilíbrio do corpo.

    — Ataque para matar! — gritou. Num instante, juntou as mãos com as palmas abertas. Ventos sutis escaparam como respingos do impacto, até que, em um gesto rápido, ele fechou os dedos, deixando apenas os indicadores à mostra, e disparou uma rajada cortante de ar.

    — Eu não quero te matar! — Abaixando-se no mesmo instante, sentindo alguns fios de cabelo serem arrancados pela força.

    Suas mãos tocaram o chão frio e sujo, e, sem pensar, impulsionou o corpo para trás. Executou um mortal, girando a poucos metros do chão, e conseguiu se distanciar do ataque.

    Quando parou, percebeu que a ventania de havia praticamente aberto um buraco no concreto, destruindo parte da loja que ficava à sua direita.

    — Foi você… ou um dos iluminados que matou aqueles jovens?

    Forçando um sorriso nervoso.

    A irritação pela situação latejava em sua voz, mas, no fundo, ainda não compreendia o motivo de tudo aquilo.

    — Fui eu… — Sem hesitar — Graças a eles, alcancei algo que, até então, era inalcançável para mim! No fim, não eram como você. Eles eram apenas degraus para a minha ascensão… Mas você, Hazan, é a escada que me levará ao topo! — Separando as mãos e soltando um suspiro pesado.

    — Que merda você está falando? Matou eles… Sacrificou três vidas pelo maldito Ritual? — A voz dele ressoou mais grossa e impiedosa, ainda carregando uma centelha de esperança.

    — Exatamente… o que espera que eu sinta? Culpa?

    Retrucou, a frieza estampada no olhar.

    Hazan já havia percebido esse instinto há tempos, mas acreditava que seria capaz de reprimi-lo… não mais.

    Agora, essa certeza se despedaçava, matando de vez a sua esperança.

    — No mínimo… O que eles fizeram para você? Me fala! Me fala, porra! — gritou, a fúria rasgando-lhe a garganta.

    — Nada… Deveriam ter feito?

    — Filho da puta!

    — Eu até me diverti… sabe… com a forma como os deixei. Senti a diferença de cada feitiço, e como cada possibilidade podia ser aplicada conforme o instante em que eu decidisse usá-la. Mas não tem por que discutir isso com você. Você nunca entenderá, sua mente é limitada! Não é como eu… ninguém é!

    Suas palavras soaram como uma sinfonia de indiferença e ausência de moral.

    Aos seus olhos, até mesmo um amigo, alguém que estivera ao seu lado desde os primeiros passos como exorcista, não passava de um simples degrau.

    O valor da vida? Já não fazia mais sentido para o messias… ou para o diabo.

    Assim desumanizava suas vítimas, enxergando-as como primatas, reduzidos a meros experimentos de sua ascensão.

    Não precisava arrancar-lhes as cabeças; bastava negar-lhes qualquer dignidade.

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