Capítulo 35 - O dormitório de mistérios
Uma cama de solteiro pela esquerda do dormitório amparava Nikko.
— Rrrrnnnn… Zzzzz… He hiii… Rrrrnnnn… Zzzzz…
A expressão relaxada e alegre denunciava que a garota navegava no estágio mais profundo do sono, provavelmente vivia um dos melhores sonhos que sua mente ousaria criar…
— Não precisa se preocupar com o tom de voz, com certeza Nikko não irá acordar agora.
Quando Akemi passou pela porta, sentiu um cheiro fresco e levemente adocicado no ar.
“Que cheiro peculiar, é algum sabonete de garotas?”
O dormitório possuía um formato retangular, mas as paredes brancas curvaram-se suavemente ao fundo, acompanhando a arquitetura arredondada do edifício. Uma ampla janela acompanhava a parede à frente de ponta a ponta e mostrava a vastidão de uma noite escura e silenciosa sem uma mísera estrela no céu.
À esquerda, Nikko dormia largada em uma cama solitária, e à direita, um beliche simples e sem proteções dominava o canto.
Bem ao lado do beliche, na parede à frente, uma cortina branca, meio amarrotada e fechada, pendurava-se de uma haste curva, improvisada como um trocador.
Já no chão, um tapete preto refletia a única luz presente vinda da lua, solitária em sua vigilância celestial. Seu brilho pálido se espalhava pelo quarto, dando ao ambiente um clima de tranquilidade…
Akemi estava paralisado, seus olhos ficaram presos pela escuridão lá fora, que parecia puxá-lo para algum lugar distante.
A ausência de estrelas e o silêncio absoluto exerciam um fascínio impossível de resistir…
— Ei, tá fazendo o quê parado aí? — Miya apareceu no campo de visão do rapaz, seu braço esquerdo sustentava roupas vermelhas e dobradas, enquanto sua mão esquerda estendida oferecia um pequeno saco de papel kraft1 — toma.
— Oh — Akemi despertou-se da hipnose — o que é isso?
— Taiyakis2, são da Nikko, mas não tem problema você comer esses. Tem um monte nas gavetas dela.
— Gavetas? — indagou Akemi, pegando o saco de bolinhos.
— Cada dormitório tem três criados para cada aluno — Miya apontava para móveis de madeira sob a janela, levemente curvos como a parede em que encostam — nossas maletas, roupas e outras coisas estão ali. A da Nikko está à esquerda, a minha à direita, e a sua no meio. Pode dar uma olhada quando quiser. Enquanto isso, vou colocar as minhas roupas de dormir… — Com o kit de roupas dobradas, ela começou a ir ao trocador à direita.
“Caramba! Esqueci que poderia usar um pijama aqui… Dormir com esse gakuran não deve ser nada confortável, pelo menos não estou fedendo… Mas isso não vem ao caso agora, o que está acontecendo não parece nada certo.”
— O-olha… — Akemi estava receoso — isso tudo não é meio… perigoso?
— O que é perigoso? — perguntou Miya, ao fechar a cortina. Sua silhueta aparecia difusa pela transparência da cortina fina, e naquele momento, apenas sombras de movimentos representavam a troca de vestes.
— A gente já conversou sobre isso. O Marechal Ichikawa… ele não me quer perto de você, imagina perto da própria família dele.
— Bom, foi a Nikko que me reservou este dormitório para nós três antes mesmo de perguntar se queriamos, se ocorrer algum problema, a culpa é dela.
— Você acha mesmo que jogar a culpa nela daria certo? Aquele diretor é sinistro! Ai, caramba… E se ele estiver nos escutando agora?
— Fique tranquilo, não está.
— Como você pode ter tanta confiança nisso? Até parece que não viu o que ele pode fazer.
— Eu vi sim, e outra, é somente ele quem protege toda a ASA.
— … Sozinho?
— Toda a academia está ao alcance dele. Nada escapa daqueles olhos. Afinal, sabemos bem que ele é o próprio vento. Confesso que para ele estar entre nós neste exato momento não custaria nada.
— Eu tô mesmo entre malucas… — sussurrou Akemi, de mão na testa — não podemos nos dar o luxo de causar problemas maiores, se continuar assim, jogaremos tudo isso fora. Temos que tentar arrumar algum jeito de convencer a Nikko de cortar essa ideia. Além do mais, Miya, eu e você mal nos conhecemos pra nos arriscarmos desse jeito um pelo outro…
— Então — a cortina foi aberta, e um olhar neutro à janela foi revelado juntamente das novas vestes: um pijama de gola alta, vermelho intenso, ornamentado com flores douradas. Cabelos, livres das presilhas de chamas, caiam lisos sobre uma testa — precisamos nos conhecer melhor.
“Essas roupas… são tão diferentes… MAS O QUE ELA QUER???!!!”
— Ahm… Nos conhecer melhor?
— Sim, será melhor para a nossa confiança — Miya depositou o seifuku usado sobre o móvel próximo.
Akemi continuou confuso. — E… como você quer fazer isso?
Com um giro simples e gracioso, a garota dirigiu-se até a escada do beliche. — Vá nesta cama de baixo. Ficarei na de cima — quando colocou o primeiro pé descalço no degrau de madeira, seu olhar voltou-se como o de uma predadora que marcou território. — Nem tente me contestar… — Assim, ela segue subindo.
— Ah, ok…
Com o saco de taiyakis entre os dedos, o garoto tirou os tênis pretos, e ao se aproximar do beliche inferior, puxou o cobertor para o lado e sentou-se, inclinando os ombros um pouco para trás na tentativa de encontrar uma posição confortável com os pés no chão. “Todas as camas daqui são tão boas assim?”
— E então — disse Miya, escondida no beliche de cima — conta aí sobre você — sua voz doce soou curiosa e travessa.
— Sobre mim? — indagou Akemi, abrindo o saco de bolinhos.
— Até agora só conheço seu lado tímido e desajeitado. Quero saber quem é você de verdade, de onde vem.
Palavras eram procuradas enquanto um taiyaki recebia a primeira mordida. — Bom… como posso começar…? Eu nasci em outra cidade, que por sinal, é bem perto de Toryu.
— Sério? Onde?
O rapaz hesitava, o momento em si o trazia um peso indesejável. — … Mushi…
— A cidade de descarte?! — A revelação surpreendeu.
— Sim…
O silêncio imperou por um instante; um detalhe que gerou surpresa e empatia.
— … Como você vivia lá?
— Era uma cidade humilde, todos os moradores meio que se conheciam, mas… eu era muito tímido. Nunca me aproximei de ninguém.
— Nem dos seus pais?
— Eu nunca vi o meu pai, e a minha mãe… ela… faleceu no meu parto…
— Ah, Akemi… eu… Desculpa por perguntar. Eu sinto muito.
— Tá tudo bem, de qualquer jeito era impossível eu conhecê-la… diferente do meu pai…
— E quem cuidou de você?
— Meu avô, por parte de mãe. Ele… bem, a gente já discutiu inúmeras vezes, mas é a pessoa mais importante da minha vida. Me criou como filho. Foi ele quem me deu o nome… Se bem que ele poderia me dar um melhor, não?
— Ei! Aposto que ele escolheu com muito zelo. Não desmereça a criatividade do seu avô. Tenho certeza que ele só quis o melhor pra você.
— Também penso assim. Por mais que ele fosse contra os meus maiores desejos, ele fazia de tudo pra me proteger e dar a melhor educação. Só que de onde eu vim, era difícil ter uma vida decente no futuro, parecia que tudo era quase impossível, não dava pra sonhar alto. Mas agora eu estou aqui… — O jovem abaixou a cabeça, refletindo suas lembranças.
— … Akemi… — A escuridão do dormitório tornou a voz mais densa, quase solene.
— S-sim?
“O que será que ela quer agora? Esse tom me dá um mal pressentimento…”
— … Você sempre foi trivial, não é?
“O QUÊÊÊÊ???!!!” O garoto sentiu o estômago revirar. “M-M-MA-MAS EU NEM CHEGUEI A FALAR NADA! COMO ELA CHEGOU NISSO?!”
— E-ei… Miya, do que você tá falando? He-hehe… — Uma risada fraca acompanhou o engasgo com a própria ansiedade. Parecer descontraído tornou-se impossível no instante em que o suor frio escorreu, flagrando o nervosismo estampado no rosto.
— Não adianta disfarçar. Me diga logo, sim ou não?
Akemi deixou o saco de bolinhos de lado, deitou de lado na cama, cobriu-se e ficou encarando a parede. Ele sentia um nó de emoções confusas: tristeza, vergonha, até mesmo um toque de revolta.
— Akemi?
— … Sim… eu era trivial até poucos dias atrás. Como descobriu?
— Bom, a cidade de Mushi poderia ter sido uma grande metrópole, sabe? Igual a Toryu. Mas séculos atrás, Mushi acabou perdendo toda a sua comunidade áurica para Toryu, a sede do império na época. Ideais fascistas e preconceituosos surtiram efeito até que 100% da região imperial fosse composta pelos áuricos mais poderosos, assim consolidando Toryu como a capital de Asahi. Mas agora, mesmo que o governo tenha mudado e boa parte dos não áuricos consigam ter uma vida melhor, nada disso foi o suficiente para mudar drasticamente o rumo das coisas. Enquanto Toryu abriu portas para triviais, Mushi ficou tão marcada que até hoje não há um único áurico que viva lá.
Deitado, Akemi sorria sem graça. — Acho que me entreguei só de falar que vim de lá, né?
— Para ser honesta, entrar num combate de auras sem ter nenhuma confiança em suas habilidades é impensável, o fato de você ter nascido em Mushi só me faz perguntar ainda mais se você é realmente áurico há muito tempo.
— Eu não sei explicar o que passou na minha cabeça naquele dia…
— Era claro que você estava perdido na luta. Entretanto, suas expressões diziam uma coisa, mas seu corpo tinha outras vontades. Mesmo quando você se rendeu, algo dentro de você ainda queria lutar, seus instintos gritavam por aquilo, enquanto sua mente… bom, ela não estava nem um pouco preparada, certo?
Incapaz de responder imediatamente, Akemi processava os comentários com atenção, e se revirando para olhar as tábuas de madeira que suportavam o beliche acima, refletia. “Ela fala com tanta convicção sobre mim, mas ela não parece nem um pouco errada… É óbvio que ela sabe de algo a mais do que eu.”
— Realmente, alguma coisa agia por conta própria, não sei se é certo dizer que eram instintos, mas algo além disso, minha aura parecia querer me proteger.
— Às vezes, em momentos cruciais da nossa vida, a aura age por conta própria, isso se chama cataclisma áurico. Emoções como medo, alegria, tristeza e ódio podem fazer com que percamos o controle de nossas energias áuricas, e a chance de um desastre acontecer se torna bastante alta, principalmente quando nossas habilidades estão bem aprimoradas. Para sorte de Nihara, você claramente era um iniciante.
Akemi ergueu o tronco da cama e novamente ficou sentado, sua mente estava ainda mais confusa. “Cataclisma áurico…? Já ouvi o significado disso antes.”
— Você quer dizer que, se eu tivesse experiência, eu poderia ter vencido?
— Não exatamente. Só quero que entenda uma coisa, a aura é uma extensão de você, e ela pode te proteger, mas o verdadeiro crescimento vem de você. Quem tem o maior potencial de evoluir e aprender novas habilidades é você, a aura por si só não tem tanta capacidade comparada ao seu usuário.
Akemi não absorvia bem o que Miya disse, eram tantas informações que ficou difícil conceber a realidade do mundo áurico. Seu cerne ainda era de um simples trivial. — … Eu não consigo entender, você fala como se ela tivesse vida… — Vup! — Oh?!
Miya surgiu de cabeça para baixo, pendurada na borda da cama de cima, com o rosto a centímetros de Akemi, que arregalou os olhos ao ver a expressão risonha e um tanto quanto provocativa da garota. As mechas pretas e rubras se misturaram, pendidas como uma cascata de magma vermelho. — Você realmente não sabe de nada, né? — perguntou ela, com um sorriso astuto; seus olhos se apertaram levemente, quase se fechando.
O rapaz ficou sem reação por um tempo, chegando a pensar que viver em uma comunidade áurica sem conhecimentos básicos poderia ser tão perigoso quanto andar entre leões; mas, por fim, passou a mão na nuca e riu da situação. — Hehe, é… Acho que ser formado em uma escola para não áuricos não vai me ajudar num lugar como este.
— Fique tranquilo, dará tudo certo! Vamos te ajudar.
— E teremos tempo pra isso?
— Claro! Mas agora não é hora, tá muito tarde. Amanhã a gente começa.
— Amanhã…? Caramba! — Akemi colocou as mãos na cabeça — o que terá amanhã?!
Um sorriso meio foi a resposta. — Hihihi, não é nada com o Yura, você não vai desmaiar de novo. Agora durma!
Vup!
Miya desapareceu no beliche de cima, deixando Akemi sozinho na imensidão de seus pensamentos.
— Eh…? Espera! Você nem me falou sobre você! Eu tenho muitas perguntas!
— Rrrrnnnn… Zzzzz…
“É sério isso?!”
- Saco de papel kraft: um invólucro simples e robusto, feito de papel marrom natural de textura ligeiramente áspera; normalmente usado para guardar alimentos.[↩]
- Taiyaki: um doce asahiano em formato de peixinhos, um bolinho feito com massa semelhante a waffle, tradicionalmente recheado com anko (pasta de feijão doce).[↩]
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