Capítulo 277 - Vida já não há
Já era noite, como sempre soubera, mas o tempo parecera distorcido. O firmamento, outrora tingido de um azul profundo, dissolvera-se em um estranho crepúsculo avermelhado, como se o dia houvesse retrocedido por horas.
O ar carregava o cheiro salgado do mar, entrelaçado ao fedor pútrido que impregnara a brisa. Ethan e Sofie haviam caminhado pelas margens do porto, seus passos firmes ressoando sobre o concreto rachado. A água escura refletia a luz pálida dos poucos postes ainda funcionais, tremeluzindo como se a própria cidade estivesse prestes a desaparecer — o que, de certo modo, já acontecera.
Os grupos de resistência precisavam reunir todos os sobreviventes antes que fosse tarde demais. E mesmo que tivessem ideias diferentes, já haviam conduzido muitos em segurança ao grupo liderado pelos Shirasaki. Ainda assim, restavam aqueles presos entre o medo e a negação.
— Acha que enfrentar Seiji será fácil? — Ele quebrou o silêncio, os olhos fixos na extensão do porto, onde carcaças de embarcações jazeram como esqueletos de uma era passada.
— Fácil? — Soltou uma risada seca, sem humor. — Não. Mesmo que tivéssemos três celestes ao nosso lado, ainda seria difícil. Todos que o aceitaram… eram de grau quatro a cinco. Pense bem.
O jovem suspirou, chutando uma garrafa vazia para a água. O vidro cintilou sob a luz pálida antes de desaparecer na escuridão líquida, afundando sem resistência.
— Seria mais fácil se…
— Masaru estivesse aqui!
Por um instante, um silêncio melancólico se instalara novamente. Masaru teria feito a diferença. Teria liderado, encontrado uma solução… mentira. Teria matado Seiji. Mas ele? Ele não queria. Não podia. Não estava ali. E eles precisavam continuar sem ele.
E, dando-se conta disso…
Pularam para dentro de um barco de pesca, enferrujado e afundando lentamente, onde a madeira apodrecida rangia sob seus pés. O ar ali dentro era mais pesado, saturado de morte.
E então, viram.
O pescador e sua família.
O homem ainda segurava uma faca de pesca entre os dedos rígidos, como se tivesse tentado lutar. Ao lado dele, duas crianças — pequenos corpos contorcidos em agonia. A pele enegrecida, coberta de larvas infernais que se moviam preguiçosamente, alimentando-se da carne necrosada.
Sofie recuara com um engasgo sufocado antes de sair tropeçando para fora, vomitando na borda do barco.
— Ehr… Sofie? — chamara, hesitante, ainda parado no interior da embarcação, os olhos fixos na cena grotesca.
— Crianças… Ethan… eu não aguento ver crianças mortas! — A voz dela era entrecortada por soluços e náusea. Seu corpo tremia enquanto os olhos lacrimejavam de raiva e desespero. Apertou os punhos, a respiração acelerada. — Que desgraça! Que desgraça!
Seus ombros subiam e desciam rapidamente, o rosto ruborizado pela fúria impotente. Ele a observou por um momento antes de desviar o olhar para as águas escuras. O mundo já não era mais um lugar onde inocentes podiam sobreviver.
— Calma…
— Como calma? Aquele filho da puta deveria ter ficado e tentado salvar as pessoas… — A voz ardia em ódio. — Já pensou? Morreram esperando salvação!
Enquanto falava, ele notou algo na pequena cabine — um pedaço de papel amarelado, segurado por dedos rígidos. Aproximou-se com hesitação e o puxou das mãos do morto. A caligrafia era trêmula, as palavras rabiscadas com desespero:
“Se Elum existe, ele é o pior dos demônios.”
Aquilo o atingiu como um golpe no peito. O mundo já não pertencia à lógica, à justiça ou à esperança. Mesmo ele, que tentava manter-se firme, sentiu algo dentro de si se partir. Soltou um suspiro pesado e, sem dizer mais nada, saiu de lá tão desanimado quanto Sofie.
— Muitos… do segundo ao quarto distrito, só mortos… só mortos!
— Acabou esse continente, império… seja lá como for!
— E acabou da pior forma. É irônico… — Ele sentou-se sobre uma lata enferrujada, provavelmente usada para armazenar peixes, pois ainda exalava aquele cheiro acre e salgado. — Lutamos por terras, comida, pelo ar… e agora, não há uma única alma viva para aproveitar nada disso. Quilômetros e mais quilômetros de vazio, de morte…
— “Nenhuma” é uma palavra forte… mas sim, somos menores do que imaginávamos — Ela cruzou os braços, o olhar perdido. — Enfim, não quero… pensar demais nisso. Por que não vamos ao teatro? Devem haver… mais corpos lá… — A última frase saiu carregada de desânimo.
Em mais de um dia de patrulha, haviam conseguido salvar apenas duas pessoas. O mundo ruiu ao redor deles, e, mesmo assim, precisavam continuar.
Continuar… assim como o recém-desperto e seu mestre…
Beel inclinou levemente a cabeça, observando Megumi ajoelhar-se diante dele no chão árido e rachado. O ar ao redor tremulava com o calor abrasador. A fumaça escapava do corpo exausto do jovem, enquanto ele cuspia sangue, tingindo a terra seca de um vermelho escuro.
— Já desistiu? — A voz do demônio rompeu o silêncio, carregada de curiosidade e um leve tom de esperança.
A resposta certa era apenas uma: não!
Mas ele apenas arfou, os braços trêmulos sustentando seu próprio peso. O suor misturava-se ao sangue que escorria por seu rosto. Seus olhos semicerrados encontraram os da besta.
Eles já estavam há horas naquele treino, tentando o fortalecer fisicamente.
— Você é forte para caralho! — murmurou, entre a dor e a teimosia.
Mas Beel, no entanto, apenas sorriu de lado, como se esperasse mais.
— Qual é a graça?
Franziu o cenho. Mas… mal teve tempo para pensar.
— Oras… Forte?
Um estalo ecoou no ar. Os membros cadavéricos da entidade se uniram, seguido por uma explosão repentina de energia negra. O impacto rasgou o solo próximo ao rosto e aos dedos do discípulo com uma força absurda, projetando fragmentos de rocha e poeira ao redor. Ele arregalou os olhos, sentindo a vibração percorrer sua espinha.
— Forte? — repetiu, levantando-se lentamente do lugar onde estivera sentado sobre uma rocha durante todo o treino. — Eu nem usei um por cento sequer… Ainda estou no nível de um mero fantasma. E você acha isso forte?
A morte roçou seu rosto naquele instante. Ele a sentiu, fria e inevitável, sussurrando contra sua pele como uma sombra.
— É sério isso? — murmurou.
Então, a criatura intensificou sua presença.
— Vou lhe mostrar…
Uma força esmagadora tomou conta do ambiente — uma escuridão densa que fez o ar vibrar e a terra se fragmentar como vidro. A pressão era sufocante, como se o próprio mundo estivesse desmoronando ao redor dele.
— Isso… é o que chamam de uma calamidade. Com um único dedo, posso varrer do mapa uma cidade… ou até um país. Insano, não?
A escuridão começou a se acumular em sua ponta, um breu denso e ameaçador, pulsando como um devorador de mundos.
Megumi arfou mais uma vez, levando a mão ao peito. Seu olhar vacilou para o firmamento, onde bilhões de luzes cintilavam, indiferentes ao seu treino insignificante.
— Cacete… então eu sou mesmo bem fraco… — constatou, com um sorriso amargo nos lábios feridos.
A criatura cessou…
Observou-o em silêncio por um momento antes de se sentar novamente sobre os destroços. Seus olhos desceram para os punhos calejados do jovem.
— Você… não tem resistência física nem força suficiente — murmurou, quase pensativo. — Mas há uma energia latente dentro de você. Já pensou em canalizá-la de outra forma?
O jovem ergueu o olhar, confuso.
— Outra forma? Como assim?
Já a entidade sorriu de maneira enigmática ao ouvir a pergunta, inclinando-se ligeiramente para frente.
— Já pensou em uma espada?
— Hã?
Aquilo o pegou de surpresa.
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