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    — E por que isso te importava tanto?

    A pergunta ecoou em meio ao breu que tentava a envolver, cortando o silêncio tenso que antecede o caos.

    Era um teatro.

    Ela sumiu de vista por um instante, como um borrão na penumbra, e reapareceu com um grito, desferindo um chute veloz contra a entidade.

    Mas ele desviou com um movimento quase preguiçoso, como se previsse tudo desde o início.

    Cada um fazia seu papel.

    Ahn? Minha perna…

    Ela se moveu por vontade própria…

    Esse pensamento emergiu em sua mente, desconcertada.

    Mas antes que pudesse contra-atacar, desapareceu novamente, instintivamente, quase como se sua alma tivesse recuado antes do corpo.

    E reapareceu a metros dali, ofegante.

    — Porque… isso vai além de um jogo, não acha? Estamos em lados opostos… mas não somos inimigos de verdade…

    Não?

    A verdade era amarga, mas pertencia apenas a ele e à sua realidade. E, no fim, qual vontade própria tinham os demônios?

    Nenhuma…

    O livre-arbítrio era um dom reservado aos que tinham a pele quente e a alma viva.

    — Você é hipócrita! — por isso rosnou, derrapando no chão com os dedos cravados no concreto para frear.

    — Eu? Não! Não nesse caso!

    — Então o que somos?! O que vocês querem com tudo isso?!

    — Somos peças — respondeu, agora com a voz pesada, quase resignada. — E eu? Eu não quero nada… Você ainda não entendeu, não é?

    Uma aura negra começou a se formar em torno de suas mão, densa e viva, pulsando como um coração. A energia crescia de forma colossal, distorcendo o espaço ao redor com sua presença opressora.

    Seu acúmulo de breu era imensamente capaz de aniquilar mundos inteiros — uma energia corrosiva, que sussurrava o fim em cada partícula física e metafísica.

    E ainda assim, havia um requinte sombrio em sua forma, como se aquela escuridão tivesse sido moldada pelas mãos de um rei demônio: refinada, controlada, bela em sua monstruosidade.

    — Não existem demônios unidos por um ideal… — continuou, com os olhos semi-encobertos pela sombra. — Mundo perfeito? Grrr… isso só existe na mente delirante de um. No fim das contas, o que nos diferencia? Somos todos servos eternos… a menos que sejamos exorcizados!

    De repente, a escuridão em sua mão sumiu num estalo abafado. Como o fim de seu desabafo, seco, sem direção ou alvo recíproco.

    Em um piscar de olhos que, desapareceu.

    E, como um reflexo, apareceu atrás dela — nas mãos de uma sombra surgida da própria sombra da celeste.

    Estava marcada, e por isso, mesmo que estivesse a todo vapor, não iria ser para sempre, párea.

    — Não há esperança…

    Foi devastador.

    A colisão entre os corpos gerou uma onda de energia que distorceu o ar.

    Por sorte — ou talvez azar — a resistência espiritual absorveu parte do impacto, transferindo os danos apenas para ela.

    Ainda assim, o golpe cumpriu seu objetivo.

    — Não dá pra ver nada…

    Ethan sentia a pressão daquele embate queimar sua pele. Todos eles sentiam.

    Não estavam preparados para aquilo.

    — Será… será que ela está bem? — murmurou Nataly, a voz trêmula. Não conseguia pensar em outra coisa.

    Ela segurava o choro com dificuldade.

    Um redemoinho de névoa surgiu onde o ataque fora lançado, e, lentamente, o corpo da exorcista emergiu dali — frágil, ensanguentado, os olhos ardendo de dor.

    Metade do abdômen estava destruído. O sangue escorria em filetes escuros, e os lábios, trêmulos, mordiam-se para conter o grito.

    Tripas… mas sua aura não tremia. Pelo contrário — irradiava ainda mais luz.

    — Se descuidou… — murmurou ele, como um veredicto frio e definitivo.

    Seria o xeque-mate mais mórbido de sua existência. Um encerramento silencioso, cruel… inevitável.

    Mas—

    — É mesmo? — A voz dela soou fraca, porém firme, e seus olhos brilharam com uma lucidez repentina. Lá estava: sua outra mão, intacta, surgindo entre o véu de neblina e sangue. — Não me subestime… eu ainda sou uma exorcista!

    Ou… talvez, apenas a carcaça de uma.

    Seu corpo, destruído por fora, agora brilhava com intensos raios azulados — como se eletricidade transbordasse das ruínas de sua carne.

    Negligenciava a própria vida.

    E se movia com a urgência de quem já aceitara a morte. Mas precisava aproveitar cada segundo restante.

    Teria dez… Tic, tac…

    Não havia hesitação, apenas propósito — um tom febril nos olhos, marca de quem trocava tempo por impacto.

    Cada movimento era uma ferida mais e mais aberta, cada avanço, uma oferenda.

    Queria deixar o seu… para que houvesse um futuro.

    — O que acha disso? Acha isso glorioso para meu fim?

    Restava nove…

    Sua presença era viva, flamejante — como se a morte tivesse se tornado apenas mais uma arma em suas mãos.

    Tudo graças à sua Matriz Bilinear.

    Através de sua técnica inata, reformulou a própria equação corporal.

    Reestruturou ossos, redesenhou tecidos, reconectou canais astrais. Não apenas se recriou fisicamente — remodelou sua anatomia espiritual. A vida esvaía-se, sim, mas agora o motivo se tornava claro: cada célula, cada fragmento de alma, fora reprogramado como uma nova fórmula de combate.

    Oito.

    E antes que a entidade sequer pudesse reagir, novamente desapareceu — um lampejo, rápido demais para ser seguido.

    — Você é maluca… — murmurou, virando-se com lentidão, como se já sentisse o inevitável.

    Se sou uma peça…

    Sete.

    — Sou… a mais maluca! — sua voz explodiu por trás, vibrante, incendiada.

    Seis.

    — Então vou mudar esse jogo!

    Carne e sangue púrpura jorraram — densos, frios, vibrando com a corrupção que nele habitava.

    Sua mão atravessou o abdômen do ser com precisão… mas com o peso de uma coalizão de planetas colidindo. O impacto reverberou pela espinha como um trovão, e o mundo pareceu ceder por um instante.

    Cinco.

    — Me sinto… me sinto incapaz…

    Quase levantou os braços em rendição.

    Mas ao redor, suas sombras — tão vivas quanto ela, forjadas da própria essência — irromperam dos flancos. Lâminas espirituais, negras como o vazio entre galáxias, cravaram-se profundamente nela, prendendo-a num abraço de dor inevitável, recusando-se a deixá-la recuar.

    Quatro.

    Era um selo feito de desespero, sacrifício… e convicção.

    — Fez tudo isso só pra me acertar? — zombou, entre tosses e o gosto metálico da própria essência.

    Três.

    — Você não é burro a esse ponto…

    Então ela sumiu.

    E, como um espectro inevitável, reapareceu em seu ponto cego — o último espaço ainda não tomado pela dor.

    Dois.

    — Não sei o meu papel… nem o seu… não sei o que tentou me dizer… não sei se vai cumprir ou não. Só sei que vou morrer, mas… obrigado! — e desapareceu com a última palavra.

    Ali, onde estivera, eclodiu uma explosão negra — silenciosa no início, como um suspiro do abismo. Depois, brutal. Uma onda de energia que deformou a matéria e quase exterminou tudo ao redor.

    Mais rápida que o pensamento da entidade. Que tentava, em vão, remodelar suas sombras para encerrá-la antes que virasse o jogo.

    Obrigado…?

    Repetiu, a voz embargada, as mãos precatórias tremendo.

    O desespero começava a infiltrar-se sob sua pele como um veneno.

    Cadê sua calma?

    Sua certeza?

    Onde estão os olhos que enxergavam tudo de cima, como um deus entediado?

    — Por me dar uma chance! — ecoou a voz dela, etérea, mas firme, como um sopro carregado de eternidade entre as ruínas do mundo.

    Um.

    Então… é isso que chamam de amor e propósito?

    Suas mãos se tocaram — não com força, mas com significado.

    Era o decretar de um ato final, um juramento antigo, silencioso, que reverberava entre os dois como um sussurro. Algo que ela prometera a si quando ainda era apenas uma jovem insegura, que se via como uma geleira: imóvel, fria, incapaz de se moldar — mas que, no fundo, sempre esperara pela luz que nunca veio… ou achava que não viria.

    Será que vão se lembrar de mim? Daqui a um tempo… droga!

    Dinda me importo tanto com isso… há tantos porquês… tantas vozes que nunca responderam…

    Seu pensamento ia contra suas falas finais.

    Será que vão lembrar de mim…? Ainda me importo tanto com isso…

    Desistia com bravura.

    — Extensio Energetica: Activatio Simplex Bilinearitatis! — proclamou, a voz rompendo o ar como uma lâmina embebida de decisão.

    Naquele instante, algo fundamental mudou.

    Zero.

    Ele engoliu a indagação, tão humana sua reação.

    E então… tudo se tornou silêncio.

    O calor da batalha se dissolveu.

    O caos parou de gritar.

    As sombras não obedeciam mais.

    Havia um peso novo — ou talvez, a ausência de um.

    Como se o universo respirasse, por fim, em paz.

    Suas células, uma a uma, retornaram ao estado estático do físico. Seu corpo, antes guiado por abstrações de energia e fé, agora era apenas carne, osso… e fim.

    Mas o que havia sido feito… não podia ser desfeito. Nem apagado. Nem ignorado.

    — Já era… — sua confiança veio como um sussurro. A criatura tentou… um golpe desesperado, instintivo, vazio de propósito mas nada surgiu. — Você… — arfou, os olhos arregalados, encarando o vazio onde antes pulsava sua essência.

    Nenhuma sombra o acompanhou.

    Nenhuma maldição o seguiu.

    Seu poder havia sido… negado?

    Não. Era mais profundo.

    Ele havia sido anulado.

    — Me venceu… e nem disse na minha cara! — gritou, entre dentes cerrados, o peito se regenerando lentamente, com espasmos de um orgulho ferido.

    A cortina… fumaça tóxica negra… dissipava-se.

    O ambiente ao redor fora desintegrado, desfeito pelas leis que ela mesma reescrevera.

    E então, sorriu — um riso doído, amargo, rendido.

    Assim que a viu.

    Lá estava.

    De joelhos quebrados ao chão, o corpo arqueado, os olhos fechados.

    Morta. Mas como venceu?

    Bem… algo foi anulado.

    Algo que estava contigo em sua essência.

    Algo que nunca soube que podia perder.

    — Minha benção… — sussurrou, por fim, como se experimentasse a palavra pela primeira vez.

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