Capítulo 305 - Fim indigno, mas libertador...
— Por que está chorando, Zuri? Você não é mais uma garotinha… — disse um velho, olhos calejados como pedras sob a aurora, pele negra como o ébano queimado pelo tempo, mãos em frangalhos que pareciam feitas de casca seca. Vestia um chapéu de palha desbotado, torto pela idade e pelos ventos. Estavam em meio à colheita — ou melhor, ao que sobrava dela: uma terra rachada, cruel, ressequida como os lábios dele, e um jumento magro que mal conseguia manter-se em pé, a sombra de si.
A enxada em suas mãos tremia, mas não pelo esforço — e sim pela raiva contida de gerações.
— Mas… — a pequena, os olhos grandes como estrelas já há muito tempo mortas, a voz ainda tingida de esperança, — por que não posso chorar?
— Porque sua mãe morreu por ser fraca. Veja seus irmãos… eu… estamos vivos. Assim como Nṯr canta: aos fortes, o amparo. Pois, na falta de lágrimas nos olhos, concedo a força! — disse, pela enésima vez, como se cada palavra fosse uma pedra lançada para esmagar a emoção.
Era a doutrina.
Era a tradição.
Era a maldição.
A mesma que derrubou gerações e impôs uma guerra étnica eterna: a fé.
Aos homens, nunca foi salvação — mas arma.
Para oprimir, para dizimar.
Digo “homens”, pois a fé, assim como a verdade, jamais se curva à compreensão daqueles que apenas desejam controle.
Por fim, a jovem ouvia aquela prece que queria o fim de seu coração.
Não era gritada.
Não era suplicada.
Era como veneno escorrendo pelas frestas dos lábios daquele que ela chamava de pai.
Fraca…
Fraca!
FRACA!
— Então era essa a merda que me travou por toda essa vida? — murmurou, agora adulta, mordendo os próprios lábios com tanta força que o gosto de sangue invadiu sua língua. Viu a cena diante de si como se fosse uma pintura antiga, rachada… um espectro preso no tempo. Um vendaval ergueu a poeira, o passado e os gritos sufocados.
E então, os rostos: Nataly em prantos. Yoshida, silencioso, olhar perdido. Sofie e Ethan… até eles. Os que ela julgava insensíveis demais para se importar com a morte… também choravam.
— Idiotas…
POR ESSES FRACOS QUE EU MORRI?
Sério?
Vão mesmo lamentar a morte de alguém tão falsa como eu?
A voz rasgava a própria garganta como vidro.
Não gritava para o mundo que deixava para trás — gritava para dentro, onde tudo apodrecia há anos.
O que deixei para eles?
O que eu fiz por eles?
Imagens despedaçadas passavam diante de seus olhos: um sorriso forçado, uma promessa quebrada, uma ausência nunca reparada.
Qualquer um teria feito o que eu fiz… qualquer um…
— Eu não sou especial… — sussurrou, afundando-se no chão vazio daquele espaço mental. — Nunca fui. Nunca serei.
Lágrimas caíram-lhe ao rosto — quentes, pesadas, libertas.
Mas… aquilo não era um purgatório.
Nem o limbo de sua existência.
Uma luz suave envolveu suas costas, como um afago que ela nunca recebeu.
— Que clichê… — disse, num tom de desprezo irônico, fechando os olhos. Um lapso se seguiu. Um silêncio tão absoluto que parecia um mergulho.
Seria o paraíso?
— Qual é, Elum… o que eu fiz pra merecer essa bosta de paraíso? Fui tão covarde… não fui eu…
— Você foi forte… antes… e depois… — disse uma voz doce, familiar.
Ela virou-se. E ali estava.
Ela mesma. Com dez anos. Os pés sujos de barro seco, os olhos marejados, mas firmes.
— Quê? Do que você sabe, pirralha? — riu com amargura. — Nessa época… você ainda mijava na cama…
Uma risada.
O sorriso era tênue, mas o suficiente para congelar o ar.
A figura diante de si — a sombra distorcida de um ser que não podia ser tocado — olhou para si mais velha com um olhar que não era de julgamento. Era de compreensão.
— Do que tá vendo graça? — resmungou, com os dentes cerrados. — Isso é… fraqueza!
Fraqueza.
A palavra que a persegue.
Que a moldou.
Que a definiu.
A sombra sorriu — e o sorriso não era zombador.
Era um reflexo das próprias dúvidas que habitavam no âmago de sua alma.
Um espelho de tudo o que temia, mas não ousava admitir.
— Você é forte… Não se esqueça disso… tá?
Era ela mesma.
Como aquela criança do passado.
A mesma frase. As mesmas palavras.
A voz que ressoava nas paredes de sua alma, tentando ressuscitar algo que acreditava ter perdido.
Ela era a raiz.
A base de tudo.
Era o que restava quando tudo ao redor morria.
Fechou os olhos, o peso daquelas palavras caindo como um fardo sobre os ombros.
A luz que a envolvia começava a pulsar — lenta, constante — como se tentasse reacender o que julgara perdido.
Ela sempre pensou que a fraqueza era algo impiedoso. Algo a ser banido, esmagado, escondido.
Mas ali, naquela sombra, algo estava diferente.
A fraqueza não a havia destruído.
Ela a havia esquecido.
E essa era sua verdadeira punição.
Não ser capaz de se lembrar de sua própria força.
Era um reflexo.
Uma verdade que ela tinha tentado enterrar:
A força não estava na ausência de dor, mas na capacidade de suportá-la, de crescer nela.
Então abriu os olhos novamente. O vazio ainda estava lá,
mas a sombra — não estava mais sozinha.
— Então… o que faço agora? — murmurou, quase inaudível, como se tivesse encontrado finalmente uma pergunta que merecia ser feita.
A sombra a observou, silenciosa.
E ela sentiu que, talvez, a resposta estivesse em algo mais simples do que jamais imaginara.
E estava.
Já estava liberta.
Sua alma, enfim, se desprendia —
não como fuga,
mas como retorno à sua essência.
Ascendia ao campo de batalha, onde o corpo jazia imóvel, enquanto o caos seguia desenfreado.
Mas como luz…
No horizonte da guerra, o demônio escapava dos ataques com brutalidade e leveza — como um animal ferido que ainda se agarra à fúria para sobreviver.
Será que encontrou seu propósito?
Se perguntava, de algum lugar dentro de si — ou além.
E, enquanto feixes de luz cruzavam os céus como lâminas divinas, sentiu algo…
No peito.
Como se o toque de um sentimento esquecido ainda ecoasse.
Mas era a luz rasgando sua pele.
Será que encontrou uma resposta?
E então — sumiu.
No ápice do caos.
No instante onde vitória e ruína se confundiam.
Do nada.
Derrotado… mesmo tendo vencido.
Mas deixando para trás um rastro de ódio espesso, quase tangível.
O tipo de presença que não desaparece — se infiltra.
Reapareceu a quilômetros dali.
Arrastando os pés.
Cada passo, um lamento.
Em um milésimo de segundo…
Um instante tão pífio que nem o tempo se incomodou em registrar.
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