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    Sem a parte de cima do gakuran, Akemi encontrava-se deitado na maca central da clínica branca, seu frágil torso exposto revelava a pele marcada por cicatrizes de relâmpagos avermelhados parados no tempo; as linhas finas e irregulares continuavam cruzadas até os braços, traçadas por uma força elétrica que deixara sua assinatura permanente.

    De pé ao lado da maca, Masaru observava as marcas; sua mente trabalhava em silêncio. 

    Kurori, por sua vez, mantinha-se próxima e de olho no corpo do rapaz; no brilho de suas retinas incomuns, havia algo mais profundo e predatório do que só uma curiosidade médica.

    — Essas cicatrizes apareceram após o seu acidente, Aburaya? — perguntou Masaru.

    Akemi assentiu, evitando os olhares; ser visto sem camisa não era de seu costume.

    — Um acidente capaz de deixar tais marcas na pele… Apenas um áurico com habilidade de absorver tamanha energia poderia sobreviver.

    Kurori soltou uma risada suave e um tanto zombeteira. — Huhu, marcas superficiais não interessam, o que importa está abaixo da pele, e isso, eu posso ver perfeitamente.

    Akemi demonstrou seu desconforto em palavras. — O-olha, você tem certeza de que o que está olhando não é estranho? Devemos mesmo seguir com isso?

    — Fique relaxado, garotinho, não irei te machucar, prometo ser rápida — a doutora puxou as luvas pretas, o estalo do látex ecoou. — Então, posso começar?

    Akemi hesitou por um momento, mas mudou de ideia. — Ok…

    Kurori mirou a região acima do umbigo do deitado, e com seus olhos anormais, penetrou além da pele, analisando o interior daquele corpo magricelo. — Interessante.

    O que era visível a deixava intrigada: os órgãos e ossos, assim como a pele que ela não conseguia observar, estavam marcados por padrões semelhantes aos raios, e entre tudo, o núcleo áurico.

    Masaru observava quieto, aguardando o diagnóstico da especialista. — O que vê?

    — Uma esfera pequena, inerte, sem detalhes abrangentes, mas luta para manter um brilho tênue ativo, algo que talvez se conecte a fontes incandescentes. Parece estar em seus estágios finais.

    Akemi gelou. “E-estágios finais…? Ouvi o mesmo da instrutora Hisako antes do último desafio… e é por isso que estou aqui. Mas…” Suas mãos que apertavam o lençol da maca já nem sentiam o tecido. — O que isso significa?

    O conselheiro fez valer o seu papel. — Um núcleo áurico é o centro de tudo em um provido de aura, ele é a estrutura onde a energia pode ser sintetizada, armazenada ou retransmitida para ou pelo corpo. Pense nele como o coração espiritual de um áurico. Sem ele, não há aura. Sem aura, não há manifestação.

    — Então… eu realmente tenho um?

    — Ao que tudo indica, sim. Mas preste atenção: para um retrator, o núcleo não é só um reservatório, é uma fornalha, onde a energia não só é armazenada, ela é queimada, condensada, transformada, e quando ativada, despeja aura em quantidades exorbitantes, o suficiente para desafiar as próprias leis da física… — a expressão do homem escureceu — mas essa compressão tem um preço: requer equilíbrio, controle. Se o núcleo for forçado antes da hora, ele trinca. Se trinca, começa a vazar. Se vaza, esvazia. E se esvazia… se desfaz.

    — Entendo. Isso é o mesmo para todos?

    — Negativo, os núcleos diferem conforme o tipo áurico. Dobradores têm núcleos pequenos, são práticos, dinâmicos, pouco expansivos. Emanadores, têm núcleos medianos, estáveis, confiáveis. Mas os retratores… Esses têm núcleos enormes, bolsas dimensionais que fervilham em aura condensada.

    — Correto, porém, o deste aqui mal ocupa o espaço de uma noz — Kurori apontou para o jovem, que em seguida, sentiu algo esquentar na garganta.  

    — Mas… se ele é tão grande assim, como o corpo aguenta? Não atrapalha? Quer dizer, se o núcleo fosse do tamanho do estômago, não empurraria os órgãos?  

    Masaru negou com um leve balançar de cabeça. — Não estamos falando de algo físico no sentido literal, e sim, manifestações energéticas e ancoradas ao corpo, mas que existem num plano intermediário entre o real e o espiritual. É como as manifestações áuricas que você vê comumente em batalhas — ele virou-se e deu alguns passos lentos pela sala enquanto soava didático. — Em momentos críticos, quando o áurico está em risco ou em pleno ápice, seu núcleo se expande, crescendo como garras e manifestando-se por inteiro. É aí que o poder se amplifica e a aura torna-se uma arma.  

    Silêncio.

    “Então, minha aura passou esse tempo todo adormecida, e agora que começou a escutar meu próprio coração, pode estar sumindo sem ter feito parte de mim direito”, Akemi fechou os olhos por um instante enquanto os fatos encaixavam em sua memória. — Querem dizer que sempre fui um retrator?  

    — Desde sempre. Só que… defeituoso — comentou Kurori.

    A informação caiu como um raio direto no centro das inseguranças daquele que contemplava o teto. — Eu fiz os testes. Todos. Desde criança. Ninguém nunca me disse quem eu era… Quem eu podia ser…  

    — Áuricos são identificados aos cinco anos, no máximo — continuava a doutora — é a janela final de desenvolvimento do núcleo. Quem não apresenta nada até lá, é considerado trivial. O que ninguém considera, é que alguns núcleos podem adormecer, fechar-se, e enganar até os melhores diagnósticos.

    — Eu vivi como trivial… quase vida inteira… sem ser um.

    — E agora vive como um áurico prestes a retornar a ser um trivial — completou Kurori.

    — O que eu posso fazer para salvá-lo?

    — A resposta não virá com você deitado aí e pregado a esse rostinho de quem viu a morte. Quer saber como reacender essa fogueira que apagaram dentro de você? Levante-se.

    Neutro, Akemi abriu os olhos, porém, de forma esperançosa, seus olhos cintilaram. 

    Figurativamente, um fio de energia esquecida ameaçava estourar de volta.

    O rapaz se sentou na maca. — Então… qual é o próximo passo?

    — Descobrir como o seu núcleo é alimentado — respondeu a doutora.

    Mas sem que ela pudesse se aprofundar, Masaru cortou o momento. — Na verdade, já temos um palpite — ele aproximou-se, parando ao lado da mulher; seu olhar continuava direto no pupilo. — Aburaya se sente energizado ao entrar em contato com o calor das chamas. Eu testei há pouco. Inclusive… ele não sofre nenhum dano ao ser exposto a elas.

    — Hmm… então foi isso que eu senti perto da minha sala… um calorzinho inesperado e agradável. Se a fonte dele realmente for essa, então… isso muda muita coisa — Kurori deu um passo à frente, mais interessada no enigma do que nunca. Seus olhos correram pelo tórax de Akemi como quem lia algo escrito ali. — Mas o que me intriga não é o fato de você se alimentar do calor, e sim, o de não ser queimado por chamas áuricas. Isso não deveria ser normal para alguém que não sabe usar aura. Talvez seja sua barreira astral agindo…

    Imperceptivelmente, a quietude começava a construir tensão sem precisar de vento batendo em cortina nenhuma.

    “Barreira… astral? Já ouvi esse termo antes… acho que Minoru foi quem mencionou, mas ninguém explicou nada, aliás… nem tínhamos tempo.”

    — O que é uma barreira astral?

    — A barreira astral é uma camada energética exclusiva dos áuricos. Ela não é visível a olho nu, nem palpável. Serve para proteger o corpo do usuário de auras que possam lhe causar danos, tanto externos quanto internos, como uma armadura invisível.

    Masaru aproveitou a deixa. — E assim como o núcleo, essa barreira também reage aos elementos. Pode ser mais forte ou fraca dependendo do tipo de aura do indivíduo. Por exemplo, um usuário de água geralmente desenvolve uma barreira mais resistente a auras líquidas, névoas, gelo… contudo, o fogo vira seu maior inimigo. No seu caso, garoto, a eletricidade é de certo modo uma derivação do fogo, sendo assim, sua barreira astral deve ser altamente resistente às chamas.

    — Mas mesmo assim — completou Kurori, cruzando os braços de novo —… ficar completamente ileso? Sem bolhas, carbonização ou nenhum arranhão sequer? Isso ultrapassa o normal.

    “Então… é por isso que me sinto estranho quando estou quente? É isso que meu corpo quer o tempo todo?”

    Masaru agora andava pela sala, as mãos cruzadas às costas, a voz pensativa.

    — A verdade é que… sua barreira não parece ter sido moldada por treino, nem aprimorada por batalhas. Está aí desde o início. Isso me leva a crer que sua origem é… genética.

    — Olha só, e não é que você tem um bom ponto — comentou Kurori, com ar de quem queria agradar.

    — Uma barreira astral que te protege de combustões internas é a prova de que o corpo dele já sabia desde o nascimento que teria que lidar com energias perigosas… mesmo antes mesmo dela despertar.

    Akemi olhou para os dois, sentindo-se um fóssil recém-descoberto por arqueólogos interessados até demais. — Mas se é genética… de quem eu herdei isso? Meu avô é trivial, e eu… nem conheci meus pais. Será que…

    — Huhuhuuu! Parece que sua origem é um mistério que te fará cavar fundo, garotinho.

    Masaru permanecia sério, observando, mas parecia pensar além, calculando as possíveis variáveis na mente. — Sua mãe ou seu pai, quem sabe sua avó, tanto faz, um de seus antecessores com certeza carregou algo parecido. Mas se isso foi escondido de você por tanto tempo, certamente foi proposital.

    A atmosfera da sala esfriou com o peso das palavras. Akemi sentiu o coração apertar, experienciando um fio invisível enroscando-se em volta de seu peito, puxando devagar. “Proposital…” Essa palavra ecoou em sua mente como uma batida de tambor. Ele pensou no avô, em conversas estranhas que sempre terminavam rápido demais, em perguntas que recebiam só um sorriso amarelo, ou um desvio de assunto. Frases do tipo “Isso não importa agora” ou “Um dia você vai entender”, era sempre assim, sempre terminava ali, e Akemi, por mais que se sentisse incomodado, nunca insistia de verdade. Talvez por medo da resposta, talvez por preguiça da frustração, talvez por achar que não fazia tanta diferença. Mas que naquele momento, fazia… e como fazia.

    A mente do jovem fervilhava: nomes, imagens, sensações embaralhadas, um labirinto de suposições se formava — sem mapa, sem entrada, e nem saída. Mas Akemi respirou fundo. “Não. Não agora.” Ele cerrou os olhos por um instante e ergueu o rosto. “Se eu me perder nisso agora, não volto mais.” Sua expressão se firmava. — Vocês me fizeram lembrar de momentos… estranhos. Coisas que nunca entendi. Mas agora não é hora de cavar sem uma pá. Quero saber o real estado do meu núcleo áurico. É isso que me importa agora.

    Kurori deu de ombros. — Bom, vejo que você tem um último brilho de energia pra decidir quem você quer ser: um trivial… ou um áurico com história pra contar.

    Akemi fechou os punhos, focado. — Fico com a segunda opção.

    — Então… Queime.

    — … Queime?

    — Faça o seu corpo lembrar o que ele é. Coloque-se diante da sua origem. Do fogo. E veja se o núcleo acorda, ou implode.

    Masaru completou: — Certo, essa é a única aposta que temos. Pois, bem, começarei então. Lembre-se de dizer o que sente, Aburaya. E você… informe-nos o que vê com esses olhos amaldiçoados.

    — Uuh, como gosta de mandar. Ok, farei como solicitado.

    “Então é isso. Ou reacendo esse fogo… ou viro cinzas de uma vida que nem comecei direito.” Pela primeira vez, aquele rapaz frágil de olhos tímidos encarou os dois adultos com a postura de alguém que no fundo já tinha escolhido encontrar o verdadeiro eu.

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