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    Após o clarão.

    Gabriel tombou para trás.

    Seu corpo foi lançado como um boneco de trapo, o abdômen brutalmente perfurado por uma lâmina negra, que cantarolava chamas em seu gume — escuras como o abismo.

    Grande demais para ser chamada de espada. Larga demais para virar só uma cicatriz. Cruel demais para ser perdoada.

    O sangue brotou em golfadas espessas, quase vinho sob a luz morna do pós-choque. Escapava com violência — com som — como se a própria alma estivesse sendo cuspida junto com o líquido.

    Um sinal de que a vida já o deixava.

    Suas costas colidiram com força contra um destroço — ferro, concreto ou carne morta, era difícil dizer.

    Os ossos rangiam como madeira velha prestes a quebrar. O ar foi arrancado dos pulmões num gemido breve, quase patético. Tudo pareceu se esvaziar — de sentido, de cor, de esperança.

    O mundo girava.

    O céu parecia derreter escorrendo em véus trêmulos sobre o campo devastado, como um quadro que chora tintas.

    Entre o tremor da visão e o cheiro metálico que invadia suas narinas feito ferrugem viva, ele a viu.

    A besta no reflexo do apagar.

    E tal o observava.

    Preguiçosamente.

    Quase entediada.

    Como quem espera o tempo apodrecer os sentimentos antes de comê-los.

    Metade de seu corpo havia sido evaporado pelo golpe anterior a esse instante, deixando um buraco fumegante, sujo, pulsante.

    Ali não havia carne, nervo ou fúria.

    Só ausência. Só o abismo que refletia.

    Ainda assim, sorria.

    Um sorriso torto, lânguido.

    Não zombava do próprio sofrimento.

    Zombava da tentativa de sentir dor.

    Então, seria amargor?

    Não havia raiva, nem triunfo.

    Aqueles olhos se estreitaram apenas — como se os sentimentos fossem um luxo longínquo.

    Uma droga para mortais.

    Ou uma farsa para os fracos.

    — Solidão… será que você sente isso?

    Retirou a lâmina negra, que se desfez logo em seguida.

    Sem perceber, já utilizava sua dádiva infernal — a capacidade de mimetizar os ataques de seus adversários.

    E a pergunta veio com uma voz rouca, quase desesperada.

    Mas não sem elegância — havia nela um lirismo, como se cada sílaba escorresse por entre dentes quebrados e lembranças ruins.

    A palavra “solidão” saiu como uma blasfêmia já saboreada.

    E agora, desejava impô-la ao mundo inteiro. Goela abaixo.

    A resposta não veio.

    Porque o que deveria sentir adrenalina… sentia outra coisa.

    Algo mais profundo.

    Mais antigo.

    Mais cruel.

    Um abraço.

    Mas não de alívio.

    De rendição.

    Um convite ao silêncio eterno, escrito em letras que só os moribundos conseguem ler.

    Eu…

    …vou morrer?

    A pergunta floresceu como um lótus na lama.

    Era a solidão o influenciando — tendo sido injetada em si, algo íntimo demais.

    Algo que o demônio fazia sem ao menos perceber: através de sua dádiva do abismo. Amplexus solitudinis.

    Seria o fim…

    E então, como um trovão anunciando o contra-ataque do mundo… ela veio.

    Um rugido rasgou o ar como uma sentença, como se um míssil tivesse atravessado mundos num piscar de olhos.

    Uma onda de calor queimou até o tempo e o ar explodiu.

    Era Elizabeth.

    — Vou enfiar essa solidão na sua bunda, seu desgraçado!

    Nada de diplomacia. Nada de compaixão.

    Só ódio.

    Cru, nu e verdadeiro.

    — Quem você pensa que é pra machucar meu marido!?

    Gozando de sua habilidade inata, ela avançou.

    Sem freio. Sem perdão.

    Um soco direto, seco, mirando o centro do crânio.

    Errado.

    Ele inclinou a cabeça por milímetros.

    E sorriu.

    Aquele sorriso maldito que antecede o caos.

    Um giro de corpo inteiro — cotovelo em arco, mirando a mandíbula.

    O ar assobiou.

    Mas só ele foi atingido.

    Estilhaçado pela fúria.

    Então ela pisou com força.

    Os músculos gritaram.

    Saltou.

    Desceu com o punho como um meteoro.

    O chão cedeu, rachando em estalos brutais.

    Mas a besta… não.

    Intocada. Intocável.

    — Não precisa disso… — rosnou, entediado, como quem recusa um prato frio.

    Deslizou para a esquerda. Ali, onde um soco cortava o espaço na velocidade da luz — quase.

    — Nada!

    Apenas o vento, roçando o rosto como um tapa que falhou por capricho.

    A cada erro, a entidade estreitava os olhos.

    Não por cautela.

    Mas por prazer.

    Aquele prazer frio, anestésico, que só nasce onde a esperança já morreu.

    Onde tudo que resta é observar a destruição… dançar.

    O ar se partia.

    As moléculas recuavam.

    Como se o próprio universo tivesse alergia ao confronto.

    Era como injetar caos nas veias da realidade.

    E isso…

    Funcionava.

    Funcionava bem demais.

    — Nada!?

    Mas ela ainda sorria. Ainda estava confiante.

    A realidade tremia. Não pela força física — mas pela intenção.

    Era como se Elizabeth estivesse escrevendo um novo idioma — onde cada golpe era uma letra, e a frase final… uma sentença!

    A cada passo, cem metros.

    Era exorcismo ao contrário — para guiar o demônio até o seu fim.

    E, mesmo sorrindo, começava a entender: aquilo não era só uma mulher. Era uma religião de ódio em forma humana.

    Encurtou a distância.

    Tentou cravar o punho no peito dele direto e sem perdão.

    Mas no sexto golpe, no sexto passo…

    O destino parou para assistir.

    O tempo engasgou, o espaço hesitou. A própria realidade fraquejou nas articulações.

    — Eu entendo o seu ódio…

    Como se comentasse o clima. Uma frase casual. De um suicida ou de um deus entediado.

    E então… pousou.

    Simplesmente pousou os pés no chão.

    Mas o solo gemeu. Como se estivesse sendo tocado pela gravidade de um planeta morto. E ela também.

    Não em dor.

    Mas em algo pior.

    Algo que nem ela queria nomear.

    Foi esmagado. Contra o chão.

    Como uma piada cuspida com força pelos lábios do destino.

    O impacto gerou um terremoto. A terra abriu a boca e gritou em silêncio. Fendas se espalharam como veias no concreto.

    Uma sombra púrpura de sangue foi projetada para trás — traçando no ar um caminho de agonia.

    Seus lábios sangravam. O corpo… mal sustentava a própria forma.

    Fratura sobre fratura.

    Músculo sobre trauma.

    — Quando…?

    — Te acertei? É… pois é — Um sorriso — Assim que ergui meus punhos!

    E quando eles colidem com o mundo, o ar treme ao redor.

    Levanta poeira — ou seja lá o que for aquilo que sobrou.

    Porque mesmo quando erra… acerta no final.

    A voz era uma serra passando por dentro do crânio.

    Era ela inevitável.

    Como o fim de um dia ruim.

    Como a madrugada que sabe todos os seus pecados e os recita de cor, um por um.

    — E não se engane… Se eu acertar… o impacto é o mesmo!

    Sim… como a solidão que o corroía por dentro. Implacável. Absoluta.

    E por isso… algo despertou.

    A vontade assassina emergiu.

    Primeiro como um sussurro.

    Depois, como um grito.

    Uma explosão de breu.

    Uma ventania espectral.

    Cada rajada trazia gritos, lamentos, exclamações de quem foi esquecido.

    Foi o que o fez emergir da queda.

    E aparecer às costas da exorcista.

    Asas demoníacas se abriram — negras, imensas. Era sua liberação máxima. Aquela que se escondia por trás do que restava de si.

    A solidão.

    O abandono.

    A exclusão.

    Agora tinham forma.

    Peso.

    Presença.

    E estavam dotados do Abismo.

    — Você…

    Seus olhos percorreram-a dos pés à cabeça. O corpo coberto por cicatrizes.

    A feição de uma fera.

    Cabelos cortando o vento como navalhas.

    A aura? sufocante.

    — Então não erra, é?

    Um sorriso insano se rasgou em seu rosto.

    Dentes à mostra.

    Cabelos se tornaram lâminas.

    E espinhos negros brotaram das costas —

    um campo de morte que florescia com prazer.

    Ela era a única coisa que o separava de se tornar algo.

    Não alguém.

    Algo.

    Alguma coisa.

    Uma presença vazia, um reflexo, um eco qualquer na memória de alguém.

    Porque ser algo, no fim das contas, era exatamente o que a solidão mais desejava; reproduzir imagem.

    Espalhar-se.

    Infiltrar-se em tudo até que o mundo inteiro fosse feito dela.

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