Capítulo 5 – O impuro
“Pragmatismo não é crueldade. É apenas necessidade.
— Yami Yamasaki.
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De olhos cerrados, ergueu o rosto ao céu, permitindo-se um instante raro de serenidade após a tormenta.
A energia do embate ainda se dissipava, como fumaça dissolvendo-se no vento, purificando não apenas o lugar da presença maligna, mas também da sua própria marca.
O ciclo fora interrompido, e na ausência de heróis ou vilões, restava apenas um silêncio suspenso, uma paz efêmera.
Não há conflito sem agentes que o canalizem.
E suas chamas, antes vorazes, minguavam em estalos, suas faíscas ecoando no vazio até cederem, inevitavelmente, ao peso do tempo.
E não demorou para o cobrar, em visitas.
Todo aquele caos não nascera do nada; era encarnado no coração sujo que os conduzira até ali.
Enquanto desabava, mas o verdadeiro colapso sempre esteve no íntimo.
Nos que o ergueram, nos que o sustentavam, nos que, cegos, cultivaram a semente da queda ou, cientes, tramaram a própria derrota.
— Ah… o meu ginásio! — murmurou o diretor, quase desfalecendo, a voz mais carregada de lamento material do que de compaixão pelas vidas perdidas.
Esperava mais?
Uma barra de ferro despencou à sua frente, erguendo uma cortina de poeira que engoliu o ar.
— O quê…?
Arrancado de seu transe, lançou um olhar de desprezo, o som metálico ainda ecoava quando a ventania do impacto varreu suas costas, como um sopro do destino o chamando de volta à realidade.
— O quê? — entortou o pescoço — Você tá me zoando… só pode…
Enquanto do lado de fora, seus empregados, ainda atordoados, observavam em silêncio o caos, incapazes de processar o que acabara de acontecer.
Para eles, a ruína tinha cheiro de pó e ferro retorcido; para o transeunte de planos, apenas mais um corpo entre tantos já exorcizados.
— O que aconteceu? Ué, exorcizei o demônio! — Respondeu, com uma indiferença quase insultante — Que cara é essa? Tá passando mal? — completou, elevando a voz em um tom impaciente.
— Maldição! QUE CARA É ESSA? TÁ PASSANDO MAL?! — gritou, e logo então ficou em silêncio por um breve instante — Ah, esse ginásio… SEU PIRRALHO! Você tem ideia de quanto gastei nele?!
Olhos arregalados, boca trêmula, antes de explodir em fúria, o rosto tomado por uma vermelhidão quase cômica diante da destruição.
— Eu… PORRA!
Cada palavra carregava a fúria e a frustração acumuladas, até que, por fim, desabou.
Caiu de joelhos, as mãos afundando no chão destruído, sentindo a poeira e o calor ainda pulsante sob a pele.
Um lamento amargo escapou-lhe dos lábio, metade desespero, metade incredulidade, ecoando entre os escombros como a confissão de um homem que, enfim, percebia a ruína que ajudou a erguer.
— Todo aquele dinheiro… jogado no lixo! Por que fez isso comigo? Por quê?! — Sua voz ecoava entre soluços e poeira, um lamento mais de vaidade do que de perda.
Nojento…
Os dedos coçaram com a ânsia de esmagá-lo ali mesmo, um simples impulso, e tudo terminaria.
Mas conteve-se.
Talvez por desprezo, talvez por misericórdia… ou apenas por preguiça de sujar ainda mais as mãos.
Seus funcionários o ampararam, mãos trêmulas sobre suas costas, murmurando palavras de consolo que pouco adiantavam.
Nenhum deles ousou olhar na direção do exorcista.
Havia algo em sua postura, uma calma, quase soberba, que os fazia recuar, como se diante de uma fera.
— Como os alunos vão treinar agora?! — exclamou, socando os escombros com mãos frágeis, machucando-se mais a cada golpe.
Era humano demais, fraco demais.
— E o que você queria que eu fizesse? — retrucou, firme, a voz cortando o ar como lâmina. Cerrou os punhos, contendo o impulso de acabar com aquilo ali mesmo — Considere isso parte do débito que você tem com as vítimas da sua ganância.
Um breve silêncio.
— Pelo menos tenha a decência de dar os pêsames aos pais delas.
O tom ácido e cínico das palavras foi um golpe direto. Falsos lamentos cessaram de imediato.
O diretor ergueu o rosto, ainda mais incrédulo, os olhos arregalados, a respiração presa, como se tivesse sido atingido por um soco invisível.
— O quê? — sua voz tremia entre raiva e descrença — O que disse, Yamasaki? Está me acusando… sem provas?
Parou.
Por um instante, o silêncio foi absoluto.
Nem o som da chuva ousava atravessar aquele espaço.
Mas o jovem não se virou. Apenas deixou o ar escapar entre os dentes.
— Você ouviu. Afinal, não houve vítimas, certo? Considere isso apenas uma brincadeira. Não que eu me importe; já cumpri meu trabalho — sua voz era fria, quase desinteressada, como se falasse mais para si do que para ele.
Com passos firmes, começou a caminhar, relaxando os punhos e fixando o olhar apenas no caminho à frente.
— No fim, foi você quem causou tudo isso… teve sorte de que fui bem pago.
Ao ultrapassar a porta, um alívio inesperado o envolveu, como se, por fim, deixasse para trás o caos
— Mas, enfim, diretor-geral… é um adeus.
Nem mesmo os gritos desesperados do homem foram capazes de atingi-lo.
— Maldito! Maldito exorcista! — vociferava — Vou manchar o seu nome! Seu desgraçado!
As pedras que atirava ricocheteavam nos escombros, rolando até os pés de Yami.
Porém, sequer se deu ao trabalho de reagi, apenas seguiu em frente, como quem abandona não um lugar, mas um mundo inteiro.
Manchar o nome de um impuro?
Interessante…
Sem se virar, deixando que o sarcasmo das ameaças se dissipasse no ar enquanto seguia seu caminho.
Agora tinha dinheiro no bolso e uma meta simples, mundana: comprar um novo smartphone.
No trajeto de volta, deixou a mente percorrer o caminho antes mesmo do corpo.
A avenida Ie se estendia diante de seus olhos como uma linha familiar no mapa da rotina, até que, enfim, retornou ao bairro de Katakana.
Como sempre, optou pelas escadarias. Subia devagar, passo após passo, movido mais por hábito do que vontade, até alcançar o refúgio que chamava, com um certo desdém, de santuário.
Ao entrar no apartamento, o fez com um pesar.
Jogou o sobretudo sobre o sofá, o tecido pesado caindo como se partilhasse de sua exaustão, enquanto mantinha o cheque entre os dedos, firme.
Decidiu, sem hesitar, que não faria mais nada naquele dia.
Seu uniforme, impregnado pelo odor das trevas e do suor, estava imundo, mas o cansaço pesava mais do que qualquer preocupação com limpeza.
Com um gesto distraído, atirou o cheque sobre a mesa que dividia a sala da cozinha, uma bancada de mármore polido que refletia, por um instante, o brilho mortiço da lâmpada.
Sem pensar duas vezes, correu para o quarto e se jogou na cama, afundando no colchão como quem busca refúgio de um mundo que já não suporta.
E quem suporta?
Ainda de sapatos, sentiu a maciez das cobertas e o calor reconfortante que o acolhia, um gesto simples, mas que, naquele instante, parecia um milagre.
A dispersão cessou.
Os olhos se fecharam, refletindo toda a exaustão que o consumia, como se o próprio corpo finalmente cedesse ao peso dos dias sem descanso.
Adormeceu.
E o fez em paz, a primeira em mais de duas semanas de apagões e sonhos fragmentados.
Um sono tão puro que rivalizava com o ouro líquido de um entardecer pintado por Aurora.
Mas…
À medida que mergulha, é conduzido às profundezas da própria mente.
Ultrapassa as barreiras do subconsciente, uma nuvem negra se dissipa diante dele… flutuando no vazio, dissolvendo-se em um negro abissal que respira, vivo e insondável.
Gradualmente, cede, como um tecido sendo rasgado pela luz.
O estupro silencioso entre ideias, que pariu o monstro adormecido no âmago.
Diante dele, um fragmento… uma lembrança, perdida entre o tempo e o esquecimento.
Novamente, estava lá…
No terceiro dia da primeira passagem do ciclo trezentos e oitenta e um, quando a neve caiu pela primeira vez sobre a cidade montanhosa de Nagoya, após semanas de chuvas e ventanias apocalípticas.
O branco cobria o mundo, o próprio céu, fatigado de sua eternidade, pedia trégua.
Era o início de um novo tempo, um desses raros instantes em que até os deuses se recolhem para observar.
O frio toca sua face, mas o aroma daquele lugar é tão familiar.
— Esse lugar… — murmurou, enquanto o vapor de sua respiração se dissipava. Flocos de neve pousaram suavemente sobre seus ombros, derretendo ao toque de sua pele.
Diante de seus olhos, erguia-se a casa nas colinas, o lar que um dia pertenceu à sua família. Uma lembrança tanto acolhedora quanto dolorosa o atravessou, rasgando o peito.
A construção, envolta pelo manto branco e pelo silêncio das montanhas, parecia adormecer sob a vigília do tempo.
Cada janela fechada guardava um fragmento de sua infância, e cada degrau coberto de neve contava histórias que o vento parecia sussurrar de volta, numa língua esquecida… sua vida.
As luzes estavam acesas, e o carro de seu pai estava na garagem improvisada ao lado da casa.
A visão o atingiu como um soco mas envolto em ternura, memórias soterradas emergiram, misturando alegria e pesar.
Por um breve instante, um calor percorreu-lhe o peito… um lampejo de felicidade em meio ao frio da realidade.
Então, o som de pratos se partindo rasgou o silêncio.
Logo em seguida, gritos ecoaram, agudos, distantes, mas inconfundíveis.
Um segundo som, metálico, vibrou no ar. O torpor deu lugar a um arrepio gélido que percorreu-lhe a espinha. Não era medo; uma angústia, viva, que o paralisava como um veneno.
— Mãe?… Pai?… — murmurou, a voz trêmula, os lábios quase sem cor.
E diante de seus olhos, a lembrança se abriu como uma ferida… o passado voltava a acontecer, impiedoso, com a clareza de um pesadelo que não termina ao despertar.
Nunca terminou…
Seu pai, Sasaki Yamasaki, emergiu da casa em um salto desesperado.
Escorregou na neve, a camisa de lã estava encharcada de sangue. Faltava-lhe um braço, e o licor escarlate pingava ritmicamente, traçando pequenas flores vermelhas sobre o branco puro.
— Yami? Filho? Se estiver ouvindo… corra!
Sua voz vacilante entre o desespero e a coragem. Seus olhos, marejados, guardavam o brilho de quem sabe que não haverá um depois.
Mal teve tempo de reagir.
Da entrada da casa, uma presença se manifestou, Gallael, o invasor.
Sua silhueta tomou forma no ar frio, os pés afundando na neve.
Um sorriso cruel recortava-lhe o rosto, e a lâmina que empunhava cintilava sob a luz amarelada da varanda… suja de sangue, gravada com runas, vivas, como se respirassem ódio.
O contraste era quase sagrado em sua profanação: o branco, o vermelho, o aço.
A tríade do seu phobos e thanatos, a liturgia cruel daquilo que chamava de fé.
Yami nada disse — apenas sentiu o mundo desabar ao redor, o tempo se dissolver em silêncio.
Naquele instante, a divindade que restava nele morreu e em seu lugar, nasceu o exorcista.
E o príncipe das trevas, filho de Luciel, avançou com uma tranquilidade sinistra, cada passo seu era uma sentença. Seus olhos, vermelhos como brasas, queimavam a própria realidade ao redor.
Com um único golpe da espada maldita, decapitou Sasaki.
O corpo, outrora humano, dissolveu-se nas trevas, consumido até restar apenas uma massa disforme, irreconhecível.
Sangue escorreu adiante, tingindo-a mais de vermelho; a pureza profanada pelo testemunho do pecado.
A cruz prateada de seu pai, símbolo de fé e culpa, voou e caiu nas mãos do filho, agora banhadas. A segurou com firmeza, mas o toque queimava.
Era o passado o ferindo.
De novo… sua cruz em minhas mãos…
Forçou-se a engolir o nó na garganta, mas sua mente já estava em frangalhos.
Respirou fundo, recuperando a compostura, e ergueu o olhar, encarando o herdeiro do inferno.
Que imponente, ergueu a lâmina. A aura em torno dele oscilava entre o físico e o espiritual, a própria presença deformava tudo.
Sentiu o mundo ruir sob o peso do olhar.
— Prometo exorcizar-te, maldito, mesmo que a eternidade se desenrole diante dos meus olhos e eu mergulhe nas profundezas do abismo!
A fúria e a devoção de quem já não distingue fé de vingança.
Respondida apenas por um sorriso raso, que não nasce dos lábios, mas do desprezo.
Então, tudo se desfez.
A paisagem desmoronou como fumaça.
Ele caiu, um mergulho interminável em um abismo que rasgava a manifestação de seu subconsciente.
E quando finalmente tocou o solo ,
a neve se moldou sob seu corpo, fria e acolhedora, metamorfoseando-se no lençol de sua cama.
A intensidade do pesadelo ainda queimava em suas mãos trêmulas, que agora apertavam a própria garganta.
Despertou num sobressalto, o corpo suado, os cabelos grudados às costas.
Os olhos completamente negros, as veias arroxeadas sob a pele — o preço de ter olhado demais para dentro do abismo.
Enquanto o crucifixo repousava ao lado da cama, arrancado pelo próprio furor, a prata refletia o lampejo trêmulo de uma alma em guerra consigo mesma.
— Gallael…
Sussurrou, com a voz embargada pela raiva e pela culpa.
— Onde está você, seu desgraçado?
A maldição ainda o corroía.
O sonho era apenas o lembrete.
E assim seguia, dia após dia, prisioneiro do mesmo ciclo, onde fé e ódio eram as duas faces de uma mesma cruz.
Ô vida severina.
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