Capítulo 325 - Beijo a três
Novamente, aqui, novamente… em Maladomus. Mas agora, entre as ruínas úmidas do que um dia fora seu palácio.
As paredes, outrora erguidas para conter o mundo lá fora, agora cediam à invasão silenciosa das raízes. A árvore devorava não apenas pedra e a fundação, mas também uma porção do mundo imaterial — abrindo lacunas para alimentar sua essência corrosiva.
O chão estava coalhado de escombros, flores negras brotavam das rachaduras, respirando um vapor doentio que tingia o ar de um leve tom esverdeado.
— Logo não restará nada… — murmurou Asmael, os lábios rachados curvando-se num sorriso torcido.
Era ambíguo contemplar aquele lugar.
A ruína que fazia seu coração sangrar. E ainda mais angustiante era saber que já não tinha mais domínio sobre o cão que dera início a tudo aquilo.
— Pedra sobre pedra! — rosnou o tal, cravando as unhas no chão, enquanto a poeira de cal e o musgo se acumulavam sob suas cutículas — Só restarão resquícios para a humanidade se reinventar. Mas será que eles serão capazes… como nós fomos?
— Não…
Riu alto, uma gargalhada seca que ecoou pelas colunas semi-tombadas.
Seus olhos percorreram cada canto daquele antro, ávidos por enxergar, entre as sombras, um vislumbre do futuro que ainda ousava desejar.
— Aonde estão meus servos? Aonde rastejam?!
Um tremor de ar se adensou atrás dele.
Das sombras que se desprenderam da escuridão, emergiu uma entidade.
Quase humana — mas apenas o suficiente para perturbar uma mente ignorante. Os cabelos, de um azul profundo, escorriam em ondas até se enroscarem nas dobras de seus joelhos, como se o vento de um outro mundo os agitasse.
E os olhos, rubros como brasas, ostentavam íris em forma de meias-luas: eternamente crescentes, eternamente famintas.
— Naamaheel… você não fugiu…
Com um sorriso confiante, ela o respondeu.
Trajava seda escarlate, fina como pele de víbora, que escorria de sua virilha até beijar as coxas pálidas. A saia, rasgada em fendas, deixava à mostra o balanço quase preguiçoso de seus quadris. Ombros delicados, clavículas salientes, um sorriso que beirava o terno, mas nunca chegava a sê-lo.
— Para onde mais iria? Senhor… — murmurou, a voz escorrendo como mel enquanto seus pés descalços marcavam a poeira do salão — O senhor está… tão mal… tão belo, agora… na podridão.
— …Estou! E a ti, clamo: dá-me teu coração…
Ajoelhou-se, os olhos cravados nos dela, um cão diante de sua deusa.
Sua vida tinha um fio. E eram dois… dois servos…
Espera — dois?
— O meu senhor fala com tanta ternura… é quase lascivo… — sussurrou outro demônio, a voz serpenteando entre gemidos contidos — sinto meu corpo se entrelaçar ao seu… quando usa esse tom submisso…
Que surgiu surpreendendo até mesmo o Rei Luxuoso. Aproximou-se por trás, pousando a mão ossuda no ombro do mestre, enquanto a língua, bifurcada, deslizava por seu rosto.
Tinha um olho de cada cor — um dourado, outro roxo — e duas línguas, sim: enquanto uma se erguia para dentro da boca, a outra pendia, salivante, até o queixo.
Quatro pequenos chifres brotavam da testa como coroas de ossos. Os cabelos, de um branco imaculado, esvoaçavam sob o peso de um manto cerimonial, quase papal, quase herético.
— Somos… sua salvação? — gemeu, revirando os olhos, a devoção tingida de luxúria.
Não havia nada mais prazeroso do que ver seu mestre clamar por ti, um brinquedo descobrindo que, afinal, era útil.
— Baphoel… sim! — arfou, abrindo bem os lábios — Vocês estão felizes por entregar suas vidas a mim?
— Ainda pergunta? — sussurrou, inclinando a cabeça enquanto os cabelos se espalhavam pelo chão úmido como uma cortina de tinta noturna.
Observou-o em silêncio, olhos rubros de presa faminta, sorvendo cada gota de sua ruína.
E então, de repente um beijo em Luciel.
Seu corpo se moveu por instinto ao sentir o cheiro, do sangue dele, doce e acre como um veneno.
Não esperava que tivesse essa coragem.
Os dedos se cravaram na nuca do outro, puxando-o para um elo de carne e servidão que os uniu, os três, num só sopro de luxúria.
— Irmã…
Um misto de sabores… Mas era o desejo, a gratidão, a paixão e a devoção que queimavam mais forte.
Chegaram a suar, a sentir o próprio corpo latejar.
Mesmo que não fossem feitos de carne como os mortais.
— Nós somos seus únicos servos que morreriam… por você…
Seu lábio doía. Ela entregava tudo o que sentia, sem reservas. Uma lágrima escorreu do canto do olho, pena que, do outro lado, não houvesse reciprocidade alguma.
Afinal, o orgulho só sabe amar a si mesmo.
— Somos sua carne, senhor… então, pegue tudo! Tome tudo! — sussurrou ele, arfando, os peitos subindo e descendo como se também guardassem um coração — Afinal… nós amamos você!
— Eu os amo…
Ele se ergueu lentamente. Foi como assistir a um filme que parou no clímax.
Até que sua mão atravessou, de uma só vez, o peito deles. Um golpe seco, violento. Ambos tremeram, mas não cederam. Entregaram sua lealdade até o fim.
A carne aceitava a de seu agressor; as veias se enroscavam, colando-se à pele, alimentando a essência esgotada do Rei Demônio.
O Conselho das Trevas havia sido dissolvido. E acabado não por justiça… mas pela ambição mais injusta e egoísta que existe.
— Você é repugnante… — deixou escapar Asmael, virando o rosto, incapaz de testemunhar aquela profanação até o fim — Sério? Irmão… jamais imaginei que cairia tão baixo assim…
— O que foi? Por acaso isso é mais vil do que jogar sua própria filha na mesa pra salvar sua pele? — retrucou, arrancando as mãos de dentro dos corpos sem uma gota de lamento — Não existem valores… só um ideal. E pra chegar lá, vamos até o fim! Não é isso? Você já não foi ao inferno… e voltou?
— O inferno é estar entre homens… e demônios… — murmurou, mãos nos bolsos, enquanto o observava recuperar a postura, ereta e triunfante — …Mas devo estar perturbado demais com todos esses eventos… É a ansiedade, é isso! — afirmou, apertando os punhos para não socar aquele rosto nojento.
— Por que não vai conversar com Mael? — seus olhos se estreitaram, um lampejo de ironia — Eu não quero te perder… para sua ansiedade, irmão.
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