A Terras das Chamas, parte 1
No apagar do século XIX, a tarde se desfazia sobre o topo fumegante de colossos milenares, enquanto a luz, filtrada por fendas entre nuvens espessas, tingia o céu com o tom quente das brasas. O complexo vulcânico de Meilí expelia seu vapor cálido por rachaduras tão antigas quanto a própria terra.
Onde o chão parecia respirar e o fogo era mais do que um elemento, um idioma de convicção e herança amplificava a aura ígnea de um povo que se formava entre fuligem e clarões desde o primeiro choro da vida até o último sopro da morte. Sangue, quando corria, vinha quente demais, mas sem queimar o corpo calejado de um meiliano.
No coração urbano, por entre sete vulcões vigilantes que resguardavam uma bandeira carmim hasteada à altura do sol poente, HuoZhong, a Capital Vermelha, mantinha suas muralhas em pé. Eram muralhas de pedra fundida que protegiam construções alternadas entre o ébano e o pinho em seus telhados curvos.
Monges de olhares ausentes e vendedores gritando números se misturavam a moradores de túnicas elegantes e crianças que brincavam com os punhos em brasas. Contudo, entre risos e preces, existiam portas jamais cruzadas por olhos civis. Em salões de basalto polido e aroma de pólvora, o império discutia sua ruína.
Apesar das cerimônias religiosas e dos poemas sobre harmonia, Meilí ouvia os tambores da guerra que vinham das sombras do norte e do leste.
O Rio Dourado trazia mais que espelhos do céu: levava rumores. E naquele fim de tarde, generais e o Império Meiliano não falavam sobre paz.
Falavam de Asahi.
Falavam de Medved.
Falavam sobre o que lhes restava contra aquelas forças crescentes.
A produção de carvão fora dobrada. O salitre abastecia os armamentos recém-projetados. Em campos abertos, oficiais áuricos treinavam o controle de explosões com os olhos vendados. Até os monges haviam voltado a guerrear e sujar os corredores dos monastérios com pegadas em brasa.
Ordens levaram caravanas a se movimentar, soldados a marchar, e o brasão da folha flamejante a brilhar no peito de cada uniforme bordado à mão.
Nas fronteiras, olhos de superiores observavam o horizonte dourado do mar.
Meilí sentia a aproximação, não do início de uma guerra qualquer: do fim de uma era.
Nos salões laterais da Corte Celestial, um conselho se reunia em silêncio. Entre uma mesa redonda tomada por pergaminhos e mapas riscados com traços vermelhos, o clima entre aqueles que vestiam túnicas de cores variadas era outro: menos marcial, e mais paranoico.
— Asahi se moderniza com velocidade… indigna… — sussurrou um dos acadêmicos, ajustando os óculos na ponte do nariz para disfarçar a ira contida — suas escolas adotam saberes ocidentais. Seus exércitos seguem táticas europeias. E com todas essas características, seus olhos agora miram Seorim.
A informação era de conhecimento de todos os presentes. A dúvida era sobre o que deveria ser feito.
— Seorim… a península ao lado… — iniciava um senhor de corpo robusto, seus olhos nem se abriam direito e sua voz era tão lenta que parecia arrastada pelo tempo — estamos falando da nossa irmã de sangue desde os tempos antigos e protetorada por afinidade… se é que isso ainda existe. Devemos interferir?
Outro mais novo tomou a palavra com seu autoritarismo. — Além de melhorarem as suas técnicas e seu destaque em habilidades áuricas inovadoras, os asahianos aumentaram o número de combatentes e pretendem cruzar o mar em poucos dias. Quando o fizerem, não teremos sequer metade da força para pará-los se não respondermos à altura. Por sorte, eles ainda estão em menor número. Tomaremos nossas fragatas e conquistaremos território nos mares. Se mantivermos as batalhas sobre as águas infinitas, conseguiremos preservar a paz entre o nosso povo… mesmo que nos coloquemos em desvantagem contra um adversário tão qualificado em alto mar.
O silêncio determinou o fim do tópico…
Do outro lado do império, ao norte do mapa e mordendo o flanco das fronteiras de Meilí com suas presas congeladas, Medved estendendo seu frio sob o manto da diplomacia, já havia tomado terras o bastante para que fossem conhecidos como o maior território do mundo. Tratados? Todos cuspidos com ameaças. Acordos? Quebrados após guerras patrocinadas por nações que nem falavam a língua do povo.
A humilhação do Tratado de HuoZhong ainda ardia. Terras haviam escorregado pelos dedos imperiais sem um único combate.
Silencioso até então, um monge, abalado pela perda de lugares sagrados, desprendeu a sua voz embargada da dor espiritual que sentia. — Não se esqueçam que Medved já ergue fortalezas na nossa margem e traz consigo uma enxurrada de estrangeiros… Eles continuam chegando e fincando suas bandeiras onde antes nós orávamos. Nossas origens não podem ser descartadas a troco de nada que a preserve!
As palavras do monge, embora roucas, haviam batido como martelo sobre as sinetes de cera que selavam a omissão do conselho.
Um general, envolto em fardas que há muito não viam batalhas, pigarreou. O som seco ecoou nas tábuas, acusando sua covardia. — Fincam bandeiras… — repetiu para si — hu hu hu… Fique tranquilo, respeitável monge, pois nós fincaremos estacas! Assim talvez possam sentir o gosto amargo de atravessar a terra dos dragões com as botas sujas de neve.
Um dos eunucos fazia anotações na tentativa de acompanhar os rumos que o discurso tomava. A atmosfera ganhava cor durante o espelhar da tinta sobre a seda molhada. Pela primeira vez em décadas, a ideia de “resposta” parecia mais real que os mantos amarelos da diplomacia.
Mesmo dentro das muralhas, a lealdade oscilava. Os cortesãos vacilavam entre reforma e tradição. Rebeliões internas ainda assombram a população. A Revolta TaiPing deixara feridas profundas demais, e na província de YunNan, já floresciam comunidades devotadas à cultura nogluniana, desenvolvendo pessoas que jamais se curvariam à qualquer corte de sua terra natal.
A década parecia um ponto de ruptura para o Império Meiliano que, de pouco em pouco, sangrava.
Todavia, mesmo cercada por nações que abandonaram suas tradições em nome do progresso militar, Meilí não era ingênua, e sabia que Asahi preparava um império próprio — um novo tipo de império, um que unia honra com sangue, espírito com aura, aprendendo mais, e respeitando menos.
Também era de conhecimento que Medved não invadiria correndo; invadiria aos poucos, ao passo de trilhos, acordos e enganos.
E isso era o suficiente…
O chão dos vulcões ainda respirava, a memória da chama era o que os mantinha de pé. Porque mesmo um império ferido pode reacender, se for jogado de volta ao magma. E quando o mundo tentasse apagá-los de novo, não haveria diplomacia que segurasse.
O que o mundo chamava de ameaça… Meilí conhecia por desafio…
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.