Passos esmagam o gramado com sutileza. Estreitando-se por entre as sombras das árvores, alguém observa a passagem de um bando de criaturas que costumam surgir à noite.

    “Andarilhos… Mortos reanimados com a força do Gewissen ressentido. São… seis.”

    Olhos dourados à espreita detalham a forma e a quantidade de inimigos.

    Conforme a perspectiva se aproxima, se trata de Raisel, Yurgen, Carmen e os gêmeos Lila e Lavi. 

    À frente, o mestre e o discípulo mantinham a guarda alta enquanto a mulher presta a proteção das crianças poucos passos atrás.

    Com um gesto de mão, o velho arqueiro sinaliza que o perigo passou.

    Logo, basta prosseguir com cuidado contra os perigos notívagos.

    一 Vovô, Andarilhos por perto significa que eles tão indo pra direção do vilarejo, né?

    一 Sim. A Ruína tá atraindo eles… Não relaxe. Esse foi um pequeno grupo, mas às vezes eles se movem em blocos.

    O cochicho entre ambos deixa Raisel um pouco apreensivo. Afinal, eles não possuem armas no momento.

    Agarrados em Carmen, Lila e Lavi estão trêmulos de medo, mas a presença materna consegue pelo menos acalmá-los um pouco.

    一 Não se preocupem… Ray e o Yurgen vão defender a gente… Qualquer coisa eu dou uns catiripapos no que sobrar~

    De modo descontraído, a mulher sorri enquanto acaricia os mais novos.

    Por sorte, a noite de hoje não está tão fria. Contudo, o clima piora pouco a pouco.

    Em alguns minutos, eles chegam no destino temporário: uma caverna.

    一 Por enquanto, vamos descansar um pouco aqui.

    Como bem notado por Yurgen, as crianças não aguentam o ritmo de caminhada durante uma madrugada inteira. Fora isso, elas também poderiam sentir fome e sede.

    Devido ao cansaço, Lila e Lavi adormecem escorados em Carmen que também se ajeita contra a parede para aproveitar a pausa.

    一 Ray, vem cá.

    Com o chamado do velho, ambos continuariam a conversa do lado de fora do abrigo.

    一 Que foi?

    一 Eu disse que vamos encontrar Imoriel, mas pra você agora é impossível.

    Ao dizer isso com os braços cruzados e encarando o outro seriamente, o homem encara o jovem.

    Raisel, por outro lado, até pensa em questionar a afirmação, mas permanece em silêncio.

    一 . . .

    一 Pra acelerar o seu desenvolvimento, eu vou te ensinar o meu Schaltung.

    Com aquelas palavras, o garoto se surpreende e retruca com certa apreensão.

    一 Mas isso-

    一 Sim. Você ainda não tem um Glanz… Eu sei dos riscos, mas é a única alternativa.

    “O vovô tem o Glanz de Aquila… O Schaltung tá ligado com a relação entre a energia de alguém e a benção da sua Constelação… Fazer um Schaltung sem ser um Constelado é…”

    Relutante, no fundo Raisel sabe que ainda pode ter chances de ser abençoado futuramente, mas abrir mão do tempo e escolher um destino ainda mais incerto… É uma decisão difícil.

    Por outro lado, Yurgen observa a hesitação do rapaz.

    Cada segundo na indecisão para responder, indica que o menino não está pronto. Afinal, quanto mais nebuloso está o seu ente como um todo, menos densa e convicta a sua energia estará.

    Em um respirar profundo, o discípulo ergue a cabeça e vem a traçar o seu caminho.

    É a única opção, não é? Vamos fazer isso… É o único jeito de salvar a Raquel, o Kali e quem mais estiver preso lá dentro.

    Com um sorriso breve, o velho sente orgulho do amadurecimento dele mesmo que de modo ligeiro.

    一 Senta e vira de costas. Vou mostrar quais são os pontos e você tenta replicar.

    Na fala de Yurgen, os dois se preparam naquele gramado.

    O experiente arqueiro se concentrou e encostou o palmo direito sobre as costas do rapaz.

    一 Esvazia a mente… Sente a sensação e as fisgadas. De um ponto ao outro, o Schaltung vai se conectar.

    Raisel fecha os olhos e relaxa o corpo.

    A energia prateada do outro começa a invadir o espaço interno, fluindo como linhas retas em curvas específicas que não param de se mover.

    A cada dobra, mesmo que mínima, causa uma pontada em regiões distintas no corpo dele.

    Na mente do rapaz, o caminho das retas e pontos se torna cada vez mais claro.

    A imagem de Aquila é memorizada pelo menino com exatidão.

    Sem perceber, naquele estado de meditação, ele move o próprio Gewissen naquela entidade.

    一 Ray, acorde. Temos que ir.

    Abrindo os olhos com lentidão, o ambiente está mais escuro.

    As nuvens antes em transição contra o brilho da lua, agora a tamparam por completo. Pelo visto, se passaram algumas horas.

    Entretanto, por algum motivo, as coisas ao redor parecem estar mais nítidas.

    Audição, visão, paladar, olfato e tato. Os sentidos do garoto estão muito mais afiados, mas surpreendentemente, a mente dele não parece sobrecarregada.

    Ao se levantar, o corpo dele também ficou mais leve.

    Encarando o próprio palmo, a mudança imediata o deixa animado. É como ir da água para o vinho.

    “Então isso é ter um Schaltung… Será que se eu recebesse um Glanz, a sensação seria parecida? Não. Esquece essa ideia. Eu já gravei o símbolo de Aquila no meu interior… Praticamente ocupei o espaço que eu teria após receber um Glanz.”

    Raisel aperta os punhos e volta a caminhar.

    Na dianteira junto com o avô, a retaguarda é protegida por Carmen que, como anteriormente, posicionou-se como guardiã das crianças.

    Conforme adentram mais fundo naquela floresta, relâmpagos rugem e trincam as nuvens e o céu.

    O clarão, seguido do estrondo, assusta Lila, mas Lavi permanece mais próximo para acalmá-la.

    Um pouco mais tranquilizado após tudo aquilo, o mais alto dos trigêmeos iniciou uma fala:

    一 Tia Carmen… Você tinha perguntado o que aconteceu com a gente lá no vilarejo… Quando a luz caiu, a mamãe e o papai tentou levar a gente pra longe. Mas a força da explosão engoliu eles…

    一 A gente concentrou nossa energia pra se levantar e tirar os pedaços que caíram em cima de nós, mas assim que fizemos isso, aquelas pedras vieram na nossa direção…

    O Kali foi mais rápido do que eu consegui pensar. Ele entrou na frente daqueles cristais que brilhavam, mas a energia que tava em volta dele era muito mais brilhante do que as pedras…

    A fala do menino é carregada de culpa e de tristeza. Repleta na dor da impotência, de perder alguém que amava tanto.

    O irmão preso nas Ruínas não era tão inteligente, não era tão genial, mas foi capaz de ser mais valente do que qualquer outro.

    Era impossível para os gêmeos não se emocionarem. Lila soluça em choro conforme anda. Relembrar disso é como aceitar a realidade.

    Lavi não chorou. Ou melhor, não permitiu que as lágrimas escorressem.

    Entendendo o papel de sacrifício do irmão, agora é a vez dele assumir um pouco daquela coragem para si.

    Por outro lado, Raisel genuinamente sente raiva ao escutar isso. Não era justo.

    Eles estavam em paz. As crianças ou qualquer um que estivesse lá, ninguém merecia aquilo.

    Yurgen permaneceu indiferente. Os olhos dele, focados no agora, não questionam o passado.

    Já Carmen os acolhe com o olhar.

    一 Kali é um garoto muito especial… A Raquel também. Ela fez uma barreira pras pessoas que estavam perto da gente se protegerem… Mas isso atraiu os cristais.

    一 Antes deles atingirem todo mundo, ela tomou a frente com uma proteção pra si. Só que não foi o suficiente…

    O som dos passos de Yurgen e Raisel cessa. À frente, chamas azuladas indicam a presença de mais daquelas entidades.

    Em sussurros com o discípulo, eles discutem uma análise e uma estratégia.

    一 Andarilhos de novo… O número total deles deve ser bem maior do que eu imaginava… Já fazem três horas desde o grupo que vimos mais cedo.

    一 Se for assim, vai ser difícil passar por esse tanto sem ser notado. O que a gente faz?

    Questiona o garoto.

    一 Vamos fazer o plano de isca… Eu vou trazer eles pra uma direção, nisso você passa com os outros e vai até próximo de Fyodor.

    一 Caso apareça algum no seu caminho, acho que com o Schaltung de Aquila, você deve conseguir lidar com eles… 

    Ao ouvir aquilo, Raisel desaprova com um suspiro pesado.

    一 Você não tem condição de despistar tantos inimigos, vovô… Sua ferida vai piorar caso você use muito as suas forças.

    一 Eu consigo fazer o papel de isca, é mais seguro você ficar perto da senhorita Carmen.

    Obviamente, a preocupação de Yurgen é com o neto. Apesar disso, não restou argumentos para debater com o pirralho. Ele tinha toda razão.

    一 Tá bom… Mas toma cuidado. Deve ter um líder entre eles julgando pela quantidade…

    一 Fica tranquilo… A gente se reencontra perto de Fyodor então…

    O velho acena com a cabeça.

    Raisel então se esgueira por entre as árvores e começa a se afastar do grupo.

    “Preciso abrir caminho… Quando me afastar bem, vou elevar meu Gewissen pra alertar eles…”

    Quanto mais se distancia, mais chamas azuladas aparecem. É um grande grupo, cerca de cem divididos em blocos de seis como visto anteriormente.

    Os estrondos dos relâmpagos se tornam mais constantes.

    As primeiras gotas de chuva caem e, repentinamente, a energia dourada do garoto explode como um incêndio perante o início do plano.

    Imediatamente pelas proporções da elevação da energia, todos os Andarilhos próximos conseguem ver aquele ponto de luz.

    Os monstros espectrais se direcionam para lá como bestas famintas. 

    Carregando variados tipos de armas, tendo variados tamanhos e formas humanoides, o som da vasta marcha se assemelha a tambores da morte.

    De olhos fechados e em pé, Raisel não se sente assustado. Pelo contrário, ele está prestes a colocar as suas frustrações, lamentações e tristeza em seus punhos.

    “Só ter um Schaltung não vai me fazer mais forte… Eu preciso ir até o meu limite… Eles precisam de mim.”

    O olhar determinado do rapaz ganha destaque. Cintilando, esses olhos transmitem uma ardência capaz de transformar as gotas de chuva em vapor.

    O primeiro golpe vem sorrateiramente por baixo como uma serpente rastejante, mas o perspicaz arqueiro salta e consecutivamente esmaga a cabeça do monstro que ardia em chamas.

    “Um…”

    Com o começo do confronto, Yurga e os demais partem.

    一 O irmãozão Ray… vai ficar bem?

    A voz de Lavi toma destaque com uma preocupação.

    Carmen aceita o silêncio para si. Ela não consegue imaginar quanta dor aquele menino sentia…

    Por sua vez, Yurgen responde com autoridade:

    一 Vai… Ele é o Ray.

    Com as curtas palavras, Lavi e Lila sorriem brevemente. A memória de ver as costas daquele rapaz durante uma certa situação lhes enchia de esperança.

    A chuva se intensifica.

    Em meio a lama e aos cadáveres pútridos, há alguém que caminha encharcado rumo ao restante dos inimigos.

    O antebraço passa sobre a testa retirando a água que escorre em sua feição.

    Com manchas pretas do sangue dos seus inimigos por todo o corpo, Raisel se prepara para voltar ao combate.

    Mais uma vez, a energia dourada pulsa e os Andarilhos partem.

    Ao esquivar do ataque do monstro que porta uma espada, o garoto não só decepa os braços da criatura na sequência usando as mãos, como empunha aquela arma para si e decapita o inimigo.

    “Esses golpes de espada são lentos… Os ataques dele eram muito mais rápidos…”

    Flechas voam em sua direção, mas são interceptadas antes mesmo de se aproximarem completamente: cortes de energia finos como linhas viajam separando esses projéteis e o arqueiro morto-vivo.

    “Um bom arqueiro nunca se revela durante um disparo…”

    Em meio a um relâmpago, a sombra de uma grande criatura logo atrás aparece. O estrondo causado pelo trovão camufla o baque de uma grande clava sobre o chão.

    Todavia, ao abaixar do lamaçal, aquele inimigo já estava com o braço dominante decepado.

    “Raquel…”

    No outro clarão, a lâmina em brilho dourado desfigura o monstro numa fração de segundos.

    “Raquel…”

    Uma grande bola de fogo azulada desce dos céus prestes a acertar o garoto, mas é fatiada em duas enquanto as explosões proporcionam um vácuo pela área.

    “Raquel…”

    Com as labaredas atrás de si, o Andarilho feiticeiro é finalizado com a espada fincada no seu crânio após um arremesso.

    Arrastando a clava do inimigo derrotado, o caminhar de Raisel nunca mudou de direção. Ele apenas avançava.

    Naquela tempestade, o garoto consegue visualizar uma chama púrpura. Vestindo uma armadura negra e uma espada na cintura, não havia dúvidas, aquele é o líder.

    Entretanto, ainda resta um oceano de pigmentos azulados.

    O menino cerrou os dentes. O grito proferido não foi silencioso, mas sim camuflado pelo corte de um trovão.

    A energia dourada agora já não pulsa. Ela está firme próximo ao corpo do rapaz como um véu.

    Em clarões e mais clarões vindo do céu, aquele conflito não parece terminar.

    Raisel começa a arfar.

    Com o corpo coberto por lama, os restos dos adversários e o próprio sangue, ele finalmente chega de frente contra a nobre criatura.

    Ela é enorme. Talvez maior do que Yurgen. A espada desembainhada e fincada ao chão, sinaliza que ela o espera.

    Em um sorriso, o jovem arqueiro recolhe uma espada largada por um dos Andarilhos já derrotados.

    Na distância de quinze metros entre eles, a chuva diminui a sua intensidade.

    Um respiro profundo decreta o início do confronto.

    O Líder ataca de longe ao simplesmente empunhar a arma com as duas mãos.

    O gesto de preparo da postura engatilha um corte vertical ascendente ao retirar a lâmina do solo. A destruição é tamanha ao ponto de causar uma ruptura evidente naquele cenário.

    Com dificuldade, Raisel se jogou para o lado, mas a criatura já havia se aproximado. A lâmina do cavaleiro desceu, mas a do rapaz veio a subir.

    O conflito puro entre as energias proporcionou um vácuo luminoso no contraste entre roxo e dourado pelo cenário.

    Contudo, o menino leva a pior ao ser repelido para trás e colidir as costas contra uma árvore.

    No outro instante, o morto-vivo vem a golpear horizontalmente e o mero balanço levou consigo muitas árvores, mudou o curso da chuva naquele momento e pulverizou com as suas chamas o que sobrasse daquele corte.

    A energia do jovem desaparece.

    Em um instante de guarda baixa, o cavaleiro percebe a presença física do guerreiro atrás de si.

    Ao virar-se com rapidez, o morto-vivo foi capaz de desviar do ataque fatal e terminar apenas com um braço decepado.

    Entretanto, com precisão e habilidade, contra-atacou no mesmo momento em que foi golpeado.

    O solado da armadura atinge a barriga de Raisel, que é fortemente empurrado para trás ao ponto de deslizar pelo chão deitado e quebrar árvores nesse processo.

    Ainda sim, a lâmina desgastada finca contra o chão e serve de apoio.

    O jovem se ergue. Os lábios? Repletos de sangue. O corpo inclina-se para a derrota, mas o olhar jamais sai daquele adversário.

    “Ele é muito mais forte em tudo… O único golpe que eu consegui acertar foi usando a brecha ao diminuir a minha energia e ainda assim ele desviou…”

    O cavaleiro reanimado caminha lentamente até o garoto, passando por todo o rastro de destruição, enquanto a grande espada resvala pela terra.

    “Parece que o único jeito é atacar com tudo…”

    Sorrindo, ele toma uma posição com a espada empunhada com ambas as mãos na vertical à frente.

    A chuva finalmente para por completo.

    Nesse momento, a criatura parte em arrancada.

    Próximos um do outro, o golpe cortante usando o único braço restante decai na diagonal contra Raisel.

    Em um único movimento defensivo, ele concentra toda a energia na lâmina enquanto executa um passo para a direção do ataque.

    A postura do garoto se compacta para o lado mantendo a arma rente ao ombro. Desse modo, as costas da espada desgastada bate contra o fio da grande espada do cavaleiro.

    Todavia, com o gesto de comprimir o corpo, o poderoso corte roxo desliza pelo armamento e segue contra o chão.

    一 Te peguei… Cavaleiro maldito…

    O ataque do Líder foi tão poderoso que uma fenda se abria por trás do humano e seguia erradicando o que estivesse no caminho.

    Ainda assim, o jovem desgastado e ferido não só resistiu ao golpe, como foi capaz de criar uma abertura perfeita usando da própria falta de destreza por parte do oponente ferido.

    Um único golpe subiu após um passo firme.

    O assobio de um corte dourado alcançou os céus.

    O Andarilho mais poderoso é dividido ao meio.

    A primeira luz do luar após a tempestade aparece.

    Sorrindo, Raisel quase desmaia, mas dessa vez os joelhos não cedem.

    A grande espada daquele cavaleiro é levada como espólio e o menino permanece no trajeto até Fyodor enquanto os passos não oscilam.

    A lua? Quase desaparecendo. O céu pouco a pouco se tornava celeste.

    Nos arredores da planície, Yurgen, Carmen, Lila e Lavi aguardavam.

    一 Yurgen… Ele-

    一 Espera mais um pouco. Eu sei que ele vai voltar.

    Com o estalar de um galho, a figura de Raisel se revela no alto dum morro contra o sol nascente.

    O velho é o primeiro a notar. Os olhos do experiente arqueiro se arregalaram como nunca. Carmen franze as sobrancelhas e paralisa.

    Usando a grande espada como apoio, passos curtos são dados. O garoto? Irreconhecível manchado em tanto sangue escuro e lama.

    As crianças haviam adormecido, mas Carmen e Yurgen presenciaram algo que nunca eles iriam esquecer…

    A visão de uma estrela solitária que se torna mais luminosa a cada segundo.

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