Capítulo 335 - Já ouviu essa piada?
Tudo ali morreu… menos ela.
As chamas devoravam ossos e pele ao redor, transformando os cadáveres em tochas.
O ar cheirava a ferro queimado e gordura humana.
E, ainda assim, permanecia — um espectro de carne viva, pele descascando em lâminas vermelhas, o olhar calmo como se fosse intocável.
As brasas não poderiam tocar quem nunca esteve ali…
Porque há existências que apenas atravessam — sem jamais se fixarem.
Lembra-se. Não há ofensa que alcance os ouvidos de um bem-aventurado que caminha entre a tênue linha entre o ser… e o sismo.
— Então… — saiu firme, rasgando o ar como um riso contido, zombando da própria dor como quem a tivesse domesticado. O sangue escorria, mas ela falava como se fosse vinho — Essa é a linha…? Que separa um feitiço divino… de uma mera expansão? — inclinou a cabeça, os olhos semicerrados, analisando o caos ao redor como quem julga uma obra mal feita — Que decepção… esperava mais daquilo que chamam de milagre.
Até a própria morte hesitou.
A foice ergueu-se, mas seu dono deu um passo para trás, como se a realidade tivesse falhado em compreender o que via.
Que demora…
Pensou Javier, os dentes trincando enquanto o sangue escorria em poças quentes ao redor do corpo.
Cada segundo se alongava como uma piada ruim.
Ele sabia… enquanto aquilo não acabasse, enquanto a presença dela ainda vivesse, não poderia se curar.
Estava preso entre o golpe e o alívio.
Agonizando.
Silencioso.
Invisível para a misericórdia.
Bem feito!
Que morresse ali mesmo.
Sem glória, sem redenção — apenas mais um esquecido enquanto a luta de fantoches continuava.
Movimentos coreografados entre feras que já haviam perdido a alma.
— Você… está com medo? — ela ousou perguntar a sua essência assassina encarnada em sua técnica final.
A morte hesitou. Mas só por um instante.
Tentou flanqueá-la, deslizando como uma sombra faminta, uma ausência que roçava o mundo em busca de fissuras para se infiltrar.
Mas tudo o que encontrou foi vidro.
Fragmentos suspensos no ar.
Reflexos.
Ecos.
Armadilhas de si mesma.
Cada fragmento devolvia um olhar diferente: raiva, prazer, piedade, loucura.
E ele… Quase disse algo.
O ser recuou, confuso, e nesse instante a voz dela retumbou.
— Não! Não é assim que se luta! — sua figura surgiu repentinamente, intacta, sentada no alto da muralha cristalina que delimitava seu próprio domínio. O fogo não alcançava. O cabelo, ainda úmido de sangue, balançava como se houvesse vento apenas para ela — Sabe que não me vencerá. Não sabe? — seu olhar desceu lentamente até a parede que os separava.
Então, sem aviso, sua cabeça foi atravessada.
Um único golpe: seco, absoluto.
O crânio partido ao meio, enchendo a lâmina com sangue quente e miolos escorrendo, pintando a própria morte com a cor da vergonha.
— Hehehe…
Mas o domínio não caiu.
Acabou…
Pensou, aliviado, finalmente soltando o fôlego preso na garganta desde sempre.
Mas era só ilusão de sua mente ansiosa.
O silêncio que seguiu não trouxe paz alguma — trouxe o som abafado do próprio coração, batendo rápido demais, como se quisesse escapar do peito.
A foice ainda pingava sangue.
O chão ainda estava coberto de cinzas.
E então, ao erguer os olhos, ela ainda estava lá.
De pé, intacta, como se nada tivesse acontecido. A pele antes dilacerada agora era lisa, os olhos, dois abismos que não refletiam luz alguma.
E não caminhou até ele — estava simplesmente ali, onde não deveria estar.
— Esperava o fim, não? — Soou doce, mas carregada de veneno — Que pena… ainda estamos só no começo.
— C-como?
— Eu… não te expliquei? — Arranhou-lhe o ouvido. Nunca estivera de fato do outro lado. Sempre fora apenas um reflexo e agora, dentro desse domínio, ela e os espelhos eram um só — Lá fora… você tocou só uma sombra minha. Aqui dentro, cada vidro é parte de mim!
O olhar do ceifador tremeu.
— Vadia…
— Prefiro puta! — Sua mão atravessou o peito dele com facilidade obscena, como se carne e osso não fossem nada além de véus frágeis de tecidos baratos — Você desperdiçou seu feitiço final por nada! — seu rosto se aproximou, os dentes manchados de sangue mostrando-se num sorriso quase infantil — Sabia disso? Você é um burro… burro!
E em um ato… retirou a mão, como se fosse nada mais que um pedaço de barro que a sujava.
Tudo se pôs fim.
O silêncio, pesado, parecia zombar.
Merda… sério que essa vadia me matou?
A mente gritava, mas os lábios já não se moviam. O orgulho, teimoso, forçava-o a sorrir por dentro.
Ehr… eu estava tão bem…
Enquanto caía, o corpo entregue ao chão, restava apenas Myazaki em pé, imóvel, com um sorriso irônico cortando-lhe o rosto.
Os domínios foram findados.
— Você é o próximo!?
Ao redor, cadáveres ainda — carbonizados, contorcidos, enfileirados como gargalhadas mal contidas pela realidade.
Ela se virou devagar, olhos afiados como disparos de fuzis, reluzindo com o reflexo de tudo o que se foi.
A rainha carmesim e o anticristo se encararam.
Dois demônios disfarçados de gente.
Dois deuses pequenos demais para caber no próprio orgulho.
E o sorriso dela…
— Já ouviu a piada de três psicopatas entrando num bar?
…Era de quem já sabia a piada antes do final.
O silêncio os cercou.
Ela ergueu o queixo, triunfante, insuportavelmente viva.
— Um morreu… outro traiu…
— E o terceiro?
Ele sorriu mais.
— O terceiro ainda não entendeu que a piada… é ele!
— Idiota!
Foi então que algo mudou.
O ar tremeu. Um estalo imperceptível — como a realidade prendendo o fôlego.
E então, linhas invisíveis caíram do além.
Finas, quase etéreas.
Como fios de marionete abandonados por um deus entediado.
Surgiram do nada e, enroscaram-se em torno do pescoço dela.
Que não pareceu surpresa.
Nem assustada.
Apenas… irritada. Como quem esperava mais de um velho conhecido que insiste em repetir os mesmos erros.
— Você poderia ser mais criativo! — cuspiu, com o olhar de quem já tinha matado mil vezes aquele tipo de truque e ainda achava enfadonho — Sério… fios de contenção? No meio do ato final?
— Você acabou de frear sua liberação! — Myazaki ergueu a voz, a sombra de um riso amargo acompanhando cada sílaba — Mas te dou os parabéns. Ele era forte… até demais! O velho vai chorar pra caramba por ter perdido seu melhor carrasco.
— É?
Ergueu os olhos.
— Eu te odeio, sabia?
— É, também te amo… — mordeu os próprios lábios até sangrar, sem piscar — …Mas a gente já sabia que uma hora isso acabaria.
— Mas? — provocou, o sorriso manchado de sangue.
O olhar do assassino não vacilou.
— Você sabe que é mais forte que eu. Está satisfeita? Sua compulsiva. Ninfomaníaca por batalhas!
Virou-se, dando-lhe as costas.
Incapaz de a encarar…
Covarde.
Odiava encarar suas próprias falhas — eram espelhos demais para suportar.
Por isso, sempre andava em frente, como se o futuro fosse um véu capaz de esconder o passado.
O que deixava para trás não era esquecimento, mas apenas reflexo do que um dia fora…
A única coisa que se importou em sua miserável vida.
— Leões se devoram, né?
— Não sei… — Quebrando a tensão — Vocês devoram os outros!
— Sabe… sentirei saudades! Sabia?
E antes que as linhas a sufocassem, inclinou o rosto, os lábios rasgando um último sorrisinho lascivo.
— Que você se foda muito, meu amor.
Foi então que ele deu um passo.
Apenas um.
Simples. Silencioso. Mortal.
E nesse instante, o fio brilhou como um adeus sem lágrimas.
Cortou-lhe a cabeça sem hesitação — nem triunfo, nem raiva, apenas a frieza de quem já matou aquela dentro de si mil vezes.
A cabeça rolou devagar, como se não quisesse cair.
E por um momento, mesmo decapitada, ainda sorria.
Deixou para trás a morte.
Na forma mais nojenta.
Mais injusta.
Mais familiar.
E naquele dia…
Três psicopatas morreram.
Um pelas mãos do outro.
O segundo por dentro.
E o terceiro… ainda não entendeu que a piada foi sempre sobre ele.
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