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    Foi tão rápido…

    Quando a consciência voltou a Leviel, o corpo já não oferecia abrigo, era um território devastado, um mapa traçado em dor e somente.

    O chão, cúmplice do colapso, negara a si: sabia germinar, mas escolhera o deserto.

    Transpassado por luz, que queimava mais do que redimia.

    E de onde veio?

    Sua mente, outrora capaz de abarcar o todo, agora se perdia no simples ato de existir, incapaz de compreender o instante que a continha.

    O limite de um ser ilimitado.

    Era um dilúvio de sentido, camadas colidindo, realidades se desfazendo umas nas outras e até o onisciente vacilou diante do caos que o próprio concebera.

    Presente!

    Pre…sente!

    Pre… se… nte!

    Até que… enfim, a consciência o encontrou.

    Possessiva, dava-lhe o que queria e o que não.

    Colapsava-lhe a mente em descargas de pura existência, como se a realidade o violasse ao tentar contê-lo.

    Empalado por todos os lados, em todos os espaços possíveis, por estrelas que caíam como lâminas,

    dilatando o tempo em mil direções e aprisionando-o em cada uma delas.

    Estava preso no infinito que ele mesmo criara, um espaço ilimitado, mas cercado por fronteiras erguidas por sua própria mão, onde até a luz, fatigada, parecia ter desistido de correr.

    Mas… como?

    O éter tem seu limite espacial e numérico.

    Números… mesmo os infinitos, são apenas conceitos confinados ao real. Mas o exorcista que o enfrentou, se fosse preciso, os dobraria.

    E assim o fez.

    Porém, sequer teve tempo de compreender, de narrar a própria genialidade, nem de provar o gosto amargo do triunfo.

    O feitiço também o ultrapassara.

    Seu próprio poder o fizera testemunha, e vítima, de algo que nem os deuses ousariam conceber.

    Desmaiou no instante em que o feitiço divino se concluiu, criando uma realidade moldada pelos próprios anseios: um mundo que nasceu e morreu no mesmo sopro.

    Bateu o rosto contra o vácuo, o calor era tão intenso que a água se desfez , mas, de algum modo, seu corpo persistia, sustentado apenas

    pela presença maldita de seu inimigo.

    E quando o Rei Demônio enfim sucumbiu, estava ali, de lábios colados à areia do deserto, beijando o próprio fim.

    Retornara, mais uma vez, ao mundo material.

    Tudo não passara de uma guerra entre entidades não adoradas, que provaram o gosto de seus próprios dons… mas nunca os dominaram por completo.

    Consegui?

    É o que restou de um coração vingativo.

    Já que… a dimensão que tocara instantes antes era impossível de descrever…

    Ele foi até onde a linha já não permitia, rompeu o limite, e o limite o rompeu de volta.

    A reestruturação foi total: cada partícula, cada traço de matéria e intenção remodelados em um único golpe, maldito e mal dito.

    O ponto de atração, o novo coração gravitacional do cosmos, tornou-se o próprio demônio.

    E tudo, inclusive o espaço, convergiu até ele.

    A luz não fugiu, precipitou-se em queda absoluta sobre o seu núcleo,

    e cada fóton o feriu, pois, sendo treva em essência, a luz o atravessava, o exorcizava, o negava.

    Era o paradoxo perfeito: a criação voltando-se contra o polo que a invocou, o fim queimado pelo princípio, e a noite… condenada a suportar o dia.

    Eterno e inalcançável era Elum.

    Apenas…

    Mas… poderia fugir, não?

    Poderia.

    Ainda assim, permaneceu vivendo o próprio fim.

    O que o manteve lutando, o que o impediu de recuar, não foi coragem, a covardia de abandonar aquilo que, em sua dor, ainda o fazia sentir-se vivo.

    Uma entidade imaterial, presa ao material.

    Pecado? Ou milagre amável da contradição?

    Mesmo à beira da extinção, lutava não por vitória, mas por negação, negar o fim, negar o medo, negar a fuga que lhe era natural.

    Porque, no fundo, sabia: quem abandona o que o torna vivo, já morreu muito antes de cair.

    Mas caiu…

    E quando a queda terminou, os olhos se abriram pela segunda vez.

    Estava cercado de águas serenas, onde o som das ondas embalava o ar como um sussurro amoroso.

    A areia sob seu corpo era viva, morna, acolhedora… quase maternal.

    — Isso…? — murmurou, sem saber se ainda sonhava.

    — Não! — respondeu a voz suave que repousava em seu ombro. Um sábia de asas claras que o fitava, as garras firmes sobre suas escamas como um abraço — Mas é um final feliz…

    — Feliz?

    — Você… — disse, aproximando-se até que seus olhos cor de mel encontrassem o vermelho do demônio, tingindo-o de azul — Está onde sempre quis. Não foi por isso que se sabotou? O que viu… o que o deixou profundamente infeliz?

    — Vi… — Após um longo silêncio, curvando as costas. Suas unhas se enterraram na areia, e ao lançar os punhados ao mar, viu os grãos se dissolverem como pecados antigos — Vi a falta de sentido no mundo… do que adianta ser eterno?

    — Mas?

    — É… será que fiz o certo?

    — Não há certo… Há só saudade, amor… e as escolhas. Se você está onde ama ou sente falta, isso é o que importa. Não interessa o que este mundo te ofereça… tua mente sempre te trairá e te trará aqui.

    Uma praia.

    Água tranquila.

    E eu.

    — E isso vai durar quanto tempo?

    — Tempo? — o pássaro tentou rir, fugindo de seu ombro e pousando mais à frente, suas garras afundando. Em dois pulos graciosos, virou-se para encará-lo, o vento brincando com suas penas douradas — Tempo mede coisas que passam… e isso aqui não passa. Você tem todo o tempo do mundo!

    — Ou seja… morri.

    — Não! — De imediato, abrindo as asas com força, o vento salgado se espalhando em volta — Morrer é espiritualmente impossível. Você apenas foi… desfeito.

    Deu um pulo em direção a ele, o canto se tornando mais suave, quase melancólico.

    — Sua consciência está além de ser uma marionete de Alum. Você se perdeu quando se fundiu à Transformação das coisas, mas não percebeu, não é? Tornou-se um conosco.

    — Um? — Ao tentar olhar para as próprias mãos, viu raízes que o prendiam ali… mas havia paz nelas, a satisfação de, enfim, pertencer a algo — Então… pertenço a este mundo?

    — Pertence… mas nunca foi de lá. Apenas… nunca enxergou quem era em sua essência.

    — Tem razão — suspirou, o olhar perdido no horizonte — Eu só vi o fim.

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