Capítulo 348 - Tudo é ilusão
— Yelena…?
Foi a primeira palavra a se formar em sua mente ou talvez a última que ainda ousava lembrar.
O som estava rachado, arranhando a membrana que separava lembrança e sonho.
Enquanto se refazia e se desfazia, o mundo ao redor era um amontoado de tudo e nada, como tinta ressequida ao ar… as cores lutando para existir, morrendo antes de se tocarem.
Buscava um nome.
Um som.
Qualquer eco de humanidade.
Mas nada respondeu.
Pois agora residia em Alogos, o lugar onde se cala antes de nascer.
— Isso é… morte?
Sussurrou, sentindo o próprio fôlego pesar em seu peito inexistente.
Lembranças são a manifestação primária e não a sensação da carne.
Sua indagação foi absorvida pelo silêncio líquido daquele plano.
Não era o Vazio, por mais que lá, nada resta. Nem a Completude, mesmo que ali, nada permanece o bastante para ser.
Era o meio, o entre, onde o ser e o não-ser respiram o mesmo ar, sem jamais se confundirem.
Alguns chamavam de Ponto de Ligação, mas os exorcistas como ele lhe deram o nome mais exato:
Intercessão.
A energia ao redor oscilava, o cosmos respirava por dentro de si.
Mundos inteiros pulsavam entre o existir e o deixar de ser.
— Alguém…? — tentou de novo, a voz quase infantil — Tem alguém aí?
Mas… entre alguém e um nome dito, há conformidade.
Até mesmo na ausência, há de haver ordem.
Ordem…
— Não acredito… — uma voz surgiu distante, debochada, humana — O loirinho…
O som flutuou entre dimensões como uma lembrança teimosa.
Pestilenta demais para pertencer a uma deidade nobre ou espírito demoníaco.
Era gasto, como se tivesse atravessado eras inteiras de silêncio, carregando nas sílabas o pó dos esquecidos.
— Masaru? — balbuciou, descrente.
— Depende… — respondeu o outro — Se for pra me xingar, sou eu mesmo.
A forma se desenhava na névoa, luz e sombra em um corpo imperfeito.
Mas o sorriso era o mesmo: metade ironia, metade dor velada em seu resplendor. Insuficiência, do mais suficiente em cor.
— Masaru…? Como…?
— Como o quê? — Se aproximou, apoiando a mão sobre algo que não era chão — Você não devia estar aqui, e eu muito menos. Mas a Ordem adora brincar com o impossível.
— Eu… morri?
— Depende do ponto de vista.
— Como assim?
— Pra uns, tá morto. Pra outros… transcendeu. Para mim? Tá como antes…
O silêncio retomou espaço entre as falas. A respiração cósmica vibrava sob seus pés, fazendo-o brilhar como vidro líquido.
— Onde estamos?
Masaru manteve o olhar fixo na distância, um horizonte inexistente, feito apenas de vontade.
A luz não vinha de lugar algum, e ainda assim iluminava tudo.
— Em Alogos — respondeu enfim — O ponto entre todas as palavras e o fim de todo ceticismo.
Fez uma pausa, longa o bastante para que o vazio se tornasse liturgia.
— O que sobra quando a oração termina… — ergueu os olhos, ja que era quem contempla o interior do infinito — e percebe que tocou o inimaginável.
— É… frio.
— É o silêncio, não o frio. Aqui o silêncio tem temperatura.
Sse abaixou, tocando o nada, e o respondeu em vibração.
Ondularam sob seus dedos, como se tivesse ossos, como se pudesse tremer.
— Isso não é nada — disse ele, erguendo o olhar — Nem vazio, nem escuridão. Nem ausência, nem entropia.
Ergueu o dedo, como um professor improvisado diante do caos.
— Este lugar… é a falta de matéria física e espiritual. Não há substância, nem alma, nem elo que una uma coisa à outra.
Deu um leve estalo com a língua.
— E quando não há ligação? boom… isso aqui!
— E como veio parar aqui? — perguntou, ainda tonto diante da vastidão que o cercava.
Masaru desviou o olhar, como quem ouve uma pergunta já feita mil vezes, em mil mundos.
— Tá doendo, né? — murmurou.
Nem respondeu à pergunta.
— O quê?
— Ser — disse Masaru — Você ultrapassou a roda. Assim como eu. E isso… nunca vem sem dor.
— Roda?
— A roda dos ciclos — explicou — Karma, tempo, destino… o brinquedo preferido dos deuses.
Fez uma pausa longa, deixando que o som de sua própria voz ecoasse pelas dobras de Alogos.
O espaço reagia a cada palavra como se entendesse, como se fosse um espelho vivo de suas ações e manifestos.
— Você saltou dela, Arthur… E quando se salta… não há chão pra cair, nem céu pra
O nome flutuou no ar e vibrou como um erro cósmico.
— Então o que há? Aliás…
Estreitou os olhos.
As feições de Masaru oscilavam, por um instante, o rosto parecia o de outro homem, algo entre conhecido e impossível.
— É você mesmo?
— Não o daquele dia…
— Não?
— Não que eu vá mudar.
Virou o rosto.
— Vi muita coisa… e sei de muita coisa… Dor. Lucidez. E uma saudade que nem pertence a você.
O loiro baixou o olhar.
As lágrimas flutuavam ao invés de cair, pontos de luz dissolvendo-se em estrelas mortas.
— Eu não pedi isso…
— Ninguém pede. Mas alguém sempre escuta.
— Quem?
— Nosso inconsciente — sussurrou.
— Nosso?
— O cego dos fins. O poeta do nada. Ele me marcou, não foi?
Levou a mão ao peito, onde o vazio ardia. O pregador do caos estava em seu único instante de lucidez.
— Sinto… algo vivo dentro de mim. Como se fosse um sonho tentando me usar.
— E?
— Não é sonho, garoto. É pura ressonância.
Tornava-se suave, quase fraternal.
— Ele te ancorou no mesmo ponto que eu. Intercessão.
— Nossa inconsciência?
— A Ordem…
Respirou fundo, ou tentou.
— E você… o que é agora? Servo dessa tal?
Ele riu.
— Um eco com consciência de que é eco. Mas ainda assim… continuo conversando. É o que resta de ser deus e perder o direito de existir da forma que deseja…
— Isso… é castigo?
— Não. É consequência.
— Então por que me ajudou?
— Porque? O acaso…
— Sei — cerrou os punhos — E o que faço agora?
Masaru se ergueu, os olhos brilhando como duas estrelas sedentas pelo caos.
— Escuta o nada até que ele responda. Quando o nada te chamar pelo nome, siga.
— E se não chamar?
— Então você ainda não aprendeu a se calar.
— E você?
— Eu nunca aprendi… — Virando-se devagar. Os ombros caídos denunciavam um fardo que nem o divino soubera nomear. Deu-lhe as costas, a capa espectral arrastando-se por um chão que ainda não existia — Escuta… — continuou — Vou resolver um B.O. meu em outros mundos, saca? Uns pepinos… umas pendências…
Fez um gesto vago com a mão, meio teatral, meio desleixado.
— Vê se ajuda seus amigos… sei lá… faz o que quiser.
Parou por um instante, inclinando-se levemente, e a expressão mudou — o corpo inteiro tremeu, como se algo lhe subisse do fundo da alma.
— Caramba! — exclamou, cobrindo a boca — que nojo dessa compaixão divina que eu tenho…
Riu de si.
— Sou um deus bom pra caralho, né?
Arthur o observava calado, sem saber se o compreendia ou apenas o sentia.
— Aliás… tu vai curtir um mundo que achei…
A figura de parecia se dissolver a cada palavra, como uma lembrança desbotando sob o peso da eternidade.
— Ei… — tentou chamá-lo.
Mas apenas olhou por cima do ombro.
— Ah… e não tenta entender, tá? — disse — O sentido é só outro nome pra prisão.
E com isso, começou a desaparecer.

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