Capítulo 350 - Assassino de narrativas
— Maldito! — bradou Luciel do leito de seu trono, rindo da própriadesgraça — Como ele pode perder assim? A essência…
— A essência está com Alum, meu senhor — Asmael interrompeu, reverente — Se esqueceu?
— Me esqueci?
— Sim, — arfou, quase sem ar — Faz tempo… Mas esse seu plano se concretizará de uma forma ou de outra. Você pode encarnar Dádivas através de Alum, não pode?
— Posso… — um nervosismo lhe subiu à face — …Mas não acha que será perigoso?
— Tem medo de ter a essência roubada? — Asmael inclinou-se, as garras quase tocando a própria face zombeteira, oculto atrás da sombra que vestia — Como? Alum não pode ser roubado. Ele existe além dessa dimensão. Na verdade… mal consigo visualizar o que ele é.
— Nem mesmo ao vê-lo! — Se ergueu, irritado — Sua forma só pode ser entendida através da percepção de Lucis. Ela pode ver, através de sua onisciência absoluta, tudo no fluxo presente.
— Hm… — Asmael levantou-se dos joelhos, cauteloso — O que foi?
— Hã?
— Você… está diferente, desde que saiu do trono.
— Ah… — riu, tocando o próprio peito como quem encontra algo novo — Percebeu?
— Senhor?
— O único! — disse, olhando ao redor com desprezo — Que irritante… ter um corpo tão fraco!
Soltou um bocejo, como se nada ali o impressionasse.
— O-qué…?
— Não se preocupe… — estalou os dedos — Eu só vim eliminar Bezeel. Sinto que Luciel nunca iria até o fim com ele no caminho.
— Como?
— Esperava que você me dissesse — sorriu, afiado — Afinal, quem pode criar ramificações e prender outro demônio no tempo… é você.
— Já sabe?
— Já. Eu percebi ele derrubar sua infinitude de tempos. Onde o escondeu?
— Escondi? Não… — abriu a palma. Uma pequena árvore cósmica emergiu, do tamanho de um bonsai, com galhos que cintilavam como linhas de universos — Ele perdeu a essência que absorveu, então… dei camadas temporais pra ele comer. Quando absorveu o suficiente, eu criei um Multiverso de bolso. Legal, né?
— Criativo — os olhos se estreitaram — Mas desfaça.
— Tá… — Asmael o olhou pela última vez — Mas onde?
— Presente.
— Onde?
— Onde o corpo estava da última vez.
— Tá… — Suspirou, reunindo energia na palma — Dĭlábere, lūx.
Se abriu como um corte na própria espinha do tempo.
E daquela ordem, rasgada, convulsa, inevitável, renasceu o único que nunca deveria voltar.
No exato ponto onde enfrentara o Idealista, brotando como espinho da terra, o corpo esguio emergiu em pura escuridão, suas formas arrancadas do silêncio primordial.
— M… mundo…?
A voz não soou — foi sentida.
Em cada pedaço daquele plano.
Nos pares em êxtase, nos guerreiros em batalha, nos sonhadores em devaneio, nas mães em prece…
Tudo vibrou. Tudo estremeceu.
— M-mun… undo!
Ao se levantar, sua natureza sombria começou a desfazer a realidade, como tinta preta derramada sobre uma pintura que ainda tentava existir.
— Caramba! — Alum desceu do céu pousando no corpo do próprio servo como um meteorito sorridente — Você… absorveu a escuridão de bilhões de mundos! Está… terrivelmente lindo!
— I-irmão…?
Mas quando falou, a intenção assassina, selada dentro dele desde antes do verbo, se liberou como um relâmpago faminto de pura escuridão.
Alum não conseguiu desviar.
O golpe veio rápido demais.
O braço voou… arrancado no mesmo instante.
Sangue púrpura caiu aos seus pés como pequenas noites recém-nascidas.
— Você… — Ergueu o rosto, mais fascinado do que assustado — …absorveu energia suficiente para isso? Uau…
Ele deu um passo.
O ser, monstruoso, renascido, incompleto… desviou por instinto, mas não adiantou:
foi agarrado pelas costas, erguido como uma criança pelas mãos do Senhor do Abismo.
— Isso vai ser um saco! — reclamou — Você deve ser capaz… de superar aquele idiota do Luciel e a tranqueira do Asmael!
Jogou-o para cima com desprezo, simples, mas que rasgou o ar, quebrando a barreira entre mundos.
E o ser foi arremessado para outra realidade.
— Vou ter que acabar com o multiverso para te dar um fim…
Suspirou, cansado.
Como quem reclama da faxina do dia, enquanto o tecido da criação se desfazia atrás dele.
Bastou olhar para cima e já reaparecia em meio a um jogo de basquete.
O som dos tênis no chão, o apito distante, o giro da bola… tudo congelou ao redor quando o rasgo dimensional se abriu no teto invisível da quadra.
— Ainda estamos no mundo original…
Ele segurou um disparo de trevas que teria aniquilado aquela variação inteira da realidade.
A palma da mão deformou a escuridão em curva, como quem segura o dente de um animal raivoso.
Como sabia?
Aqui, a Ordem se manifestava como uma organização espiritual de basquete. Quadras sobrepostas, regras metafísicas, equipes que treinavam o equilíbrio dos mundos.
— Tsk!
— P… pai?
A voz tremeu atrás dele.
O demônio o encarava como quem vê um ponto final voltar a ser vírgula.
Ele virou o rosto devagar.
— Agora notou? Mas… Luke…
Transformou a destruição em matéria, e da matéria criou uma ponte: um arco cintilante que atravessava o espaço para outro plano.
Ele ficou à frente da abertura,
impedindo a passagem.
— Eu não sou seu pai, merda!
E então veio o som.
Um estalo surdo.
As asas.
Asas… centenas, milhares brotaram das costas do ser renascido, cada pena um fragmento do nada, cada batida uma anulação de sentido.
O ser tentou agarrá-lo, mas já caía para fora do Megaverso, arrastado por gravidades contrárias, indo além das histórias conectadas àquela.
— Alum?
Ele estava atrás. Passos lentos. Pacientes. Cruéis.
— Sinceramente… eu não quero estragar nada antes que eu seja o Deus.
O olhar percorreu o tecido infinito: Eco, 1969, O Lorde do Abismo, linhas, obras, universos, tudo aberto diante dele como um livro desentranhado.
— E você… é um problemão.
Acumulou energia na mão, o suficiente para criar OUTRO Leviel, e disparou contra o ser,
que voava entre as raízes daquela dimensão como um inseto fugindo de um incêndio.
O impacto explodiu silenciosamente, jogando-o para linhas adiante, desalinhando eras, empurrando-o para a fronteira dos primórdios.
— Agora estamos onde todas as histórias começam…
A luz atrás tremia.
— Isso… é a razão de eu odiar este mundo.
Ele saiu daquela realidade como se fosse uma vidraça, pulando sobre os cacos do universo, vendo a ficção por dentro como costuras expostas.
— Acho que esse é o limite do meu avatar…
Bezeel freava no ar. Seu corpo chocou-se contra outro multiverso: uma bolha infinita,
um cosmos fechado, que se estilhaçou com o impacto.
Mas ele emergiu do outro lado… imenso. Monstruoso. Radiante de destruição.
Sua risada rasgava as dimensões adjacentes, quebrando histórias, trincando enredos, engasgando trilhas de destino.
— Tá gostando, seu filho da puta?
Ecoou, abrindo fissuras onde nenhuma linguagem deveria entrar.
— Por que eu… to odiando essa futilidade!

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