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    “No mundo espiritual, cada palavra, quando velada por sua aura, é gesto que se cumpre, destino que se inscreve no real.

    – Um exorcista qualquer

    Na manhã do vigésimo oitavo dia, cumpriu-se a décima e última passagem do ciclo trezentos e oitenta e um.

    Tanto tempo… que, após seis dias de tempestades incessantes, frutos da estação chuvosa que se abatia sobre cada canto de Crea até o fim do ciclo, restou apenas uma chuva fina, como se o céu, exausto, tivesse enfim cedido ao silêncio.

    Quando a tormenta enfim se desfez nos céus, e o azul do firmamento retomou sua morada, as trevas, ocultas na escuridão, recuaram para as lacunas do mundo astral. Diante da luz divina que voltou a banhar a terra, o alívio desceu sobre a humanidade, após o peso de seu tormento.

    Mesmo que fosse breve… à beira da rodovia Denwa, onde o fluxo nunca cessava, um veículo negro, mais robusto que os demais, repousava.

    Estava a duas horas da fervilhante metrópole, a capital de Shoushin, a quem chamavam de Nova Tóquio.

    Dentro do veículo, cujas janelas de vidro fumê ocultavam o interior, repousava um jovem alheio ao mundo, mergulhado havia três horas em um sono tranquilo e inconsequente.

    Suas pernas estendiam-se para fora, enquanto o carro, destravado e de motor desligado, parecia compartilhar da mesma despreocupação.

    Entre as folhas da imponente sequoia, a maior de Aija, o continente verdejante, a luz suave de Aurora, senhora das manhãs, descia como um afago sobre a lataria, projetando sua sombra alargada no asfalto.

    Da porta entreaberta, sapatos de couro escuro quase roçavam o chão, imóveis, enquanto no interior o rádio deixava escapar um murmúrio nada incômodo para quem cedo nao madruga.

    Pelo canal Tokyo FM, uma voz feminina, madura, envolvente e urgente, irrompia no silêncio, anunciando:

    A Ordem emitiu uma nota em resposta ao governador metropolitano, Shinzo Abe. Nela consta que setenta e oito por cento dos casos sobrenaturais foram resolvidos durante a nona passagem… condenando, assim, sua fama infeliz. Mas… será que esses dados são confiáveis?

    A voz, suave como gotas de chuva tocando o asfalto, acariciava-lhe os ouvidos, enquanto o aroma úmido do ar preenchia suas narinas.

    Não importava o que dizia, para quem não compreendesse. Era como uma canção estrangeira, bela em sua estranheza, que falava do ato…

    Dúbio como a luz da manhã que, pousava delicadamente sobre seu pálido rosto, fazendo-o cintilar mais que crucifixo que trazia ao peito.

    E não era uma prata comum, mas sobrenatural, reluzindo tanto como colar quanto distintivo de sua fé e fardo.

    Irônico… pois fé alguma repousava em seu peito niilista.

    Ainda assim, o brilho emanado pela peça parecia mais digno de ternura do que ele próprio: angélico, capturava os raios celestes e espalhava reflexos cintilantes ao redor.

    Pouco a pouco, o desconforto o inquietava em meio ao sono, e dele escapou um suspiro. Mas, sendo exorcista, jamais conheceria repouso pleno em sua segunda, e última vida.

    Eternamente assombrado.

    O alarme vibrou e soou, irritantemente repetitivo rasgando o silêncio, arrancando-o à força do frágil descanso.

    Como um intervalo do ofício…

    Ainda sonolento, entreabriu os olhos e afastou-se do encosto do banco.

    A porta e a paisagem ao fundo surgiam turvas, como se vistas através de um véu. Tateou o bolso do sobretudo, mas encontrou apenas algumas moedas, que tilintaram suavemente entre seus dedos, enquanto o alarme insistente continuava a rasgar sua paz.

    Onde diabos eu larguei isso?

    Um suspiro profundo escapou-lhe dos pulmões, trazendo-o por completo à vigília. O amargor na boca denunciava o despertar de defunto, o peso das horas mal dormidas que só um cadáver sentiria.

    Ajustou os pés contra o carpete, e o gesto arrancou um lamento breve, logo seguido pelo estilhaçar de vidro.

    O pior aconteceu.

    Num instante se dobrou até enxergar entre seus sapatos, viu o smartphone caído aos seus pés, a tela despedaçada como pequenos cacos de espelho.

    Mal parecia novo… e, para agravar, o seguro não cobria a perda.

    Ah, droga… DROGA!

    Deu um tapa no próprio rosto e ergueu o olhar para o retrovisor. No espelho, a si se encontrou, meio desperto, meio perdido entre cansaço e a sombra que o trazia até aqui.

    Foi um erro me envolver nesse favor. Aqueles velhos mão-de-vaca nem me deram um único centavo! Que vida mais frustrante!

    Suspirou mais uma vez ao fechar a porta com força, quase a ponto de quebrá-la. Logo, pousou as mãos sobre o volante já gelado e fixou o olhar à frente.

    Uma luminosidade intensa irrompeu no interior, forçando-lhe as pálpebras a lacrimejar até que, pouco a pouco, a visão do exterior começou a se delinear.

    A rodovia estendia-se em linha reta até o infinito, dissolvendo-se no horizonte, como se a estrada fosse um fio que unia a terra aos céus.

    Mas Caelestia não habitava um mundo tão podre…

    Ali, carros passavam em fúria, guiados por condutores presos à única força que move o homem: o material. As rodas cortavam a estrada, espalhando a água que repousava no asfalto, enquanto todos seguiam imersos na pressa cega do instante.

    — Enfim, aqui estou… — murmurou, enquanto acionava o limpador de para-brisas.

    De volta à corrida contra o tempo, manobrou o carro, deixando o acostamento e retomando a estrada.

    Adiante, ela se estendia ladeada por árvores altas, cujos ramos entrelaçados erguiam um dossel verde, filtrando a luz em feixes quebrados… dançavam sobre o asfalto.

    O vento passava sussurrante pelas folhas, e a chuva, já mansa, compunha uma melodia discreta, trilha natural para os viajantes que cruzavam aquele caminho.

    Eu odeio isso… Sua mente sussurrava, tentando convencer a boca a acreditar.

    Apesar da paisagem tranquila e da falsa sensação de paz, não conseguia romper o elo com Kyoto, onde passara sete dias numa caçada incessante ao vil Gallael… o assassino de seus pais.

    A mão que o empurrou até este ponto.

    Expectativas despedaçadas, possibilidades mortas… tais pensamentos o devoravam por dentro.

    É deprimente! Mas é assim que vive: prisioneiro do passado, carrasco do próprio futuro.

    Assim dirigia, alheio à beleza do trajeto, e ao sentimento de retorno. O fracasso voltava a assombrá-lo, lembrando-o da existência medíocre que levava como exorcista.

    Não havia nada de revigorante nesse regresso. Mas… será que um dia, ao menos um, esse anseio se cumprirá? O destino, como sempre, preparava suas próprias surpresas.

    Continua…

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