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    “Olhei para trás e encontrei o vazio; então para frente e vi o mesmo.

    Foi então que a verdade caiu sobre mim: não me cercava… eu era o vazio.

    ✧ ✞ ✧

    Após uma jornada de duas horas e meia, em que seus olhos conheceram apenas a mata cerrada que ladeava a rodovia, enfim alcançou a selva de pedra.

    Os arranha-céus, que uma hora antes mal se insinuavam no horizonte, agora se erguiam plenos, como colossos de vidro e aço, projetando sobre a terra suas sombras majestosas.

    E a entrada daquele apanhador de sonhos era vigiada por uma estátua de bronze, já marcada pelo tempo, de Shikibu Oto — fundador da metrópole, figura central de sua história, emblema do império e guardião da sede oficial da Ordem dos Exorcistas.

    Um homem, afinal, como tantos outros, que um dia sucumbirá às ternas saudades, quando nada restar senão poeira.

    Por enquanto…

    O monumento, já com vinte ciclos de idade, erguia-se imóvel, dividindo a estrada em duas vias, a saída e a entrada.

    — E aí, velho…

    Ao encarar mais uma vez, que, ironicamente, tornara-se a figura humana mais próxima em sua vida desde a orfandade.

    Seus avós… parentes… todos estavam dispersos na imensidão deste mundo, vivendo suas vidas e viver, afinal, custa tempo.

    Tempo que passa após esse breve reencontro, e certo do pouco que ainda tinha seguiu adiante, tomando a da direita e por fim entrando nas mazelas da sociedade. Conduzia pela ampla avenida que levava ao centro, e logo percebeu: tudo permanecia como sempre fora.

    À medida que avançava pela maior das metrópoles e mais deprimente, o cenário se fechava, mergulhando em trevas.

    Ficando em desfoque.

    O ar carregava o odor de mofo, enquanto a chuva insistente erguia uma cortina líquida que turvava sua visão. A paisagem, antes tingida pelo verde das árvores, dissolvia-se no cinza opressivo do concreto.

    Era como atravessar um limiar, conduzido pela estrada até a morada dos pesares.

    Nada o cativava, como sempre. O jovem sequer percebia as belas nuances de cinza que se derramavam sobre a pólis. Dirigia tentando afastar da mente o peso do sobrenatural que tanto lhe corroía.

    Aos poucos reduziu a velocidade, notando que a maioria dos comércios permanecia fechada, embora a movimentação fosse intensa, fervilhante, agitada.

    As pessoas transitavam com o olhar vazio, arrastando nas posturas cansadas o fardo de suas vidas. A chuva, amarga ao paladar, perturbava qualquer ilusão de sossego. Como ratos, pareciam todos condenados à mesma gaiola.

    Batalhando apenas pelo direito de talvez existir.

    Ao seguir pelo esgoto a céu aberto; sem nome, sem forma, apenas odor, uma energia sombria começou a serpentear ao seu redor, colando-se à lataria.

    Envolvente, insidiosa.

    Que insinuava-se em seus olhos como uma sombra que respirava apenas para dizimar a calmaria.

    Tal como a prostituta que surrupiava os prazeres dos infiéis.

    Era quase impossível resistir ao chamado que puxava sua alma, arrastando consigo também os sentidos.

    E, ao mirar com mais atenção, distinguiu manchas escuras nas auras que cercavam as pessoas, uma melancolia inquietante que se desprendia delas. O ar parecia saturado de exaustão e frustração, pairando como um vírus invisível, contaminando os próximos e perpetuando um ciclo interminável.

    Sentimentos persistentes alimentavam a escuridão, pavimentando o caminho para um mundo ainda mais sombrio. O fardo era tão pesado que desviou o olhar, preferindo fixar-se na estrada diante de si, onde parou lentamente diante do sinal vermelho.

    O mundo dos homens ainda o fazia curvar-se às regras.

    Até que uma inquietação o dominou enquanto seus dedos tamborilavam no volante.

    — Azaael…

    Cerrou os punhos, a ponto de quase parti-los.

    — Azaael?

    Mordeu os lábios até quase fazê-los sangrar.

    — Demônio… por que o silêncio? Maldição! Em Kyoto você não me deu um segundo de paz… e agora? Qual é o problema?

    Enquanto aguardava, uma sombra se delineava no banco traseiro, uma silhueta masculina envolta em trevas, fluida como chamas crepitantes.

    Era uma visão etérea, nascida do vasto imaginário de sua mente.

    — Sentindo saudades, é? — ironizou a sombra.

    E, embora fosse apenas uma projeção, a figura exalava o fétido odor de enxofre, o mesmo que, desde tempos antigos, se dizia pertencer aos filhos das trevas eternas.

    — Hã?

    — Ué… cê tá berrando meu nome igual uma desgraça. Fala aí, pirralho, o que tá querendo?

    — Você tá estranho…

    — Tô nada!

    — Tá…

    — Nada… para de viadagem!

    Esse era Azaael, o “temido” rei-demônio, um dos sete. Expulso do sombrio reino de Maladomus, o purgatório em si, por tentar usurpar o trono de seu irmão, segundo os inúmeros mitos. Agora, condenado à errância, vagava entre os condenados.

    — Chega disso! Você nunca consegue ficar quieto! — resmungou, pegando uma bala de menta no porta-luvas — Por que seria diferente agora?

    — Hm…

    Bateu as garras no queixo, teatral, como se tivesse encarnado um filósofo em pleno domingo.

    — Sabe… não tenho muita inspiração.

    — Que diabos! Se prefere o silêncio, fique à vontade! — rosnou, a impaciência acelera como seu carro quando o sinal abriu.

    — E o que você queria, afinal? Que eu comprasse um smartphone novo pra você?

    Sabia de tudo: o que via, o que sentia, o que sofria… e o que vivia.

    — Ah, vá se ferrar!

    — Então me deixe em paz. Vá conversar com estátuas, se precisa de companhia, moleque irritante!

    Apenas bufou, resignado.

    E o silêncio se impôs entre eles, um acordo tácito, uma trégua breve no campo de batalha de suas vozes.

    Como um bom soldado após a guerra.

    Seu destino era sua fortaleza e para lá seguiu.

    ✧ ✞ ✧

    Chamado de Quarto Distrito, Katakana erguia-se em arranha-céus luxuosos, com luzes que cintilavam indiferentes até mesmo sob o dia. Era um santuário para os que buscavam a solidão, e ele compreendia isso melhor do que ninguém.

    Suas relações restringiam-se a contratantes e clientes, todos orbitando sua vida de exorcista.

    O sobretudo era tudo o que restara, sua existência foi resumida àquele manto.

    Mas seria injusto… afinal, tudo o que possuía vinha dele.

    E, entre tão poucos privilégios, ao menos esse ainda lhe restava.

    Estacionou atrás do prédio e tomou a escadaria de emergência, esquivando-se de qualquer contato humano.

    Degrau após degrau, seis dos treze andares se consumiram sob seus passos, até que enfim alcançou o corredor estreito que o conduziria a seu ninho.

    Brilhava com o piso de mármore branco, refletindo seu rosto cansado, resultado do trabalho impecável da equipe de limpeza, generosamente recompensada por seus serviços.

    Era o lema do lugar: apartamentos com serviços. Nada havia de melhor para um preguiçoso.

    Em poucos passos, alcançou a porta do número 36, a última antes do elevador. A madeira mostrava sinais de desgaste, com lascas soltas, e a tinta preta já se desfizera em um tom pálido de cinza.

    A escuridão cobrava seu preço do mundo.

    Ao erguer os olhos, deparou-se com uma placa pendurada em prego:

    Por favor, apareça ou entre em contato com a gerência para resolvermos o problema da porta!

    – Assinado, o síndico.

    — Porta? Sério?

    Suspirou, irritado, ao reler pela enésima vez. Aquilo já não era novidade.

    — Poxa… eu tinha jurado que me livrei disso na semana passada.

    Sem perder tempo, arrancou-a e a jogou no corredor.

    Pensou em alguém sem paciência? Ele era mais!

    — Olha só, o que você me faz passar… — Enquanto enfiava as mãos nos bolsos — …Só pela irritação, eu quebraria esse maldito contrato!

    Gordo, filha da puta! Passou pela sua mente, como a pergunta sem resposta que veio em seguida: Eu poderia matá-lo, não?

    Vasculhou o bolso até encontrar o cartão, a chave do apartamento e aproximou-o do painel digital. A porta deslizou automática, detendo-se ao alcançar a abertura exata.

    O mundo já ostentava celulares sem botões e portas automáticas, mas ainda carregava as mesmas questões de quando os homens caminhavam nus pelo paraíso.

    Enfim… Finalmente em casa…

    A luz se acendeu instantaneamente com seu primeiro passo, revelando o estado em que deixara o apartamento… a toalha ainda largada sobre o sofá, travesseiros espalhados pelo chão, a TV adormecida na tela de descanso após dias ligada… e, ao fundo, o som constante do chuveiro ecoava desde a entrada.

    — Vou dormir por dias… foda-se!

    Mas a tranquilidade durou pouco. De repente, o telefone fixo, mudo desde o dia em que comprara o apartamento, começou a tocar. O som insistente se espalhou pelos cômodos, era um intruso rasgando sua paz que ele acreditava possuir.

    Merda… basta eu chegar que começa!

    Seguindo o fluxo cotidiano, atravessou a cozinha; a frigideira usada dias ainda repousava sobre o fogão. Pelo corredor, passou rápido diante da porta do banheiro, desligando o chuveiro, e entrou no quarto. No criado-mudo, ao lado da cama desarrumada como só a de um adolescente saberia estar, encontrou o telefone e, ao lado, a coleção de remédios, aliados contra o transtorno bipolar.

    Hm… já faz uma semana que não me aproximo disso…

    Com o olhar perdido em pensamentos, pegou o telefone de modo quase automático, os dedos enredando-se no fio espiralado, tão semelhante a um arame de caderno.

    — Alô? O que precisa?

    A lembrança terna o arrastou de volta à um jantar distante… mas ao mesmo tempo, a voz do outro lado o empurrou para a desagradável dádiva do presente.

    — Yamasaki, aqui é Hidetoshi Nakata, diretor-geral da Academia de Esportes de Hiragana. Tentei te ligar mais cedo, sem sucesso…

    — Ah, diretor Nakata… quanto tempo… Tive alguns imprevistos.

    — Sem problemas, garoto.

    — Enfim, sobre o que se trata?

    — Bem… aqui na academia estamos enfrentando aparições. Seres horrendos, segundo os alunos. Alguns atletas chegaram a ser atacados… Mas não há vítimas fatais!

    — Atacados? Mas sem vítimas? — desviou o olhar de um lado para o outro — Pode ser apenas uma aterrorização recém nascida. Se não conseguiu matar ninguém até agora, é sinal de que ainda está fraca…

    — Exatamente! Isso é o que o relatório de identificação mencionava — Carregado de entusiasmo, apesar da gravidade dos fatos.

    — E ele terminou?

    Cruzou os dedos, ansioso.

    — Não! Não quero um exorcista qualquer… não dessa vez.

    A breve centelha de animação apagou-se de imediato.

    — Tem que ser você!

    — Por quê?

    — Sobre isso… Sei que não é o tipo de serviço usual para um exorcista com suas habilidades, mas a academia valoriza quem já nos ajudou antes. Por isso, peço… não, imploro que nos apoie nessa situação!

    — Entendo… bem…

    Sua mão tateou o bolso, mas afundou no vazio. Nada.

    Droga! Como pude esquecer!?

    O ruído intermitente da chamada pulsava em seus ouvidos, acompanhando-lhe os pensamentos.

    Não tenho escolha…

    — Garoto?

    — Tô aqui… — ficou em silêncio por alguns segundos, mas sem arriscar dançar com a paciência do homem — Bem… me espere. Quando as aulas se encerrarem, eu vou até aí, e então combinamos os valores, certo?

    — Certíssimo! — Quase saltou da poltrona do outro lado da linha — Aguardo sua vinda à minha sala após o expediente. Muito obrigado!

    Deu para ouvi-la, suplicando por socorro.

    — Até então…

    — Eu…

    Por fim, desligou. Bem na cara do contratante. Pessoas quase tinham sabor, e aquela, em especial, era agridoce.

    — Idiota…

    Desviou o olhar para o espelho fixado na porta do guarda-roupa, bem à frente da cama.

    Segurava o telefone com ainda mais desânimo, afastando-o do rosto, como se até o aparelho fosse um fardo.

    — Que foi agora, pirralho?

    — Ah, Azaael… — Se não fosse Yami, eu diria que foi um susto — Mal chegamos e já vamos voltar a trabalhar… Ser exorcista parece mais complicado do que ter um emprego comum! — resmungou ao próprio reflexo, antes de guardar o telefone e ouvir o ‘bip’ seco que selou a chamada.

    Continua…

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