Capítulo 16 - O messias
A algumas quadras do hospital, um jovem emergiu da multidão, sua expressão tão cadavérica quanto a de um zumbi, impondo-se no meio da calçada. Caminhava com os olhares presos em si, imerso em pensamentos, enquanto as olheiras profundas denunciavam sua falta de sono.
Seus lábios secos pareciam sussurrar murmúrios, e seu surgimento interrompeu o frenesi do vai-e-vem das pessoas, todas ainda assombradas pelos eventos recentes. Corriam em direção a um futuro incerto, sem saber como terminaria mais um dia de suas vidas.
Viver sob a fragilidade da normalidade é assim.
Salvação… Será que cada alma agitada pelo término de sua vida acredita nela? Perguntou-se, enquanto recebia mais olhares curiosos, que se fixavam em seu pescoço tatuado com a estrela do amanhã, envolta em chamas.
Representava o dia prometido, cravado em sua pele: o dia em que Elum punirá os maus e coroará os bons, conforme os preceitos do Elumismo.
Vestido com um terno escuro, parou diante do prédio à sua direita, cujas paredes estavam cobertas de manchas de mofo e vidros amarelados pelo tempo, muitos deles quebrados.
Com uma calma que contrastava com o caos, retirou o smartphone do bolso. A tela brilhou, exibindo a imagem do mesmo. Ele havia finalmente chegado ao seu destino.
— Certo…
Por um momento, encarou-o, mas logo seu olhar se perdeu no horizonte. A construção foi ofuscada pela falta de foco de sua vista, e o som ao seu redor pareceu desaparecer. Apenas aquela paisagem o preenchia: os céus de Aija eram belos, mesmo com a maldade impregnando o ar.
Tal amargava o café todas as manhãs…
E mantinha-se assim, até que o silêncio foi quebrado pelo som de uma porta se abrindo. A madeira velha rangeu ao ceder ao movimento, e seus olhos recaíram sobre o rapaz que surgiu.
— Finalmente! — Sua expressão era arisca. Vestia uma saia preta até os joelhos e uma blusa listrada, claramente feminina, e o encarava com um olhar peculiar. — Ele te espera há um bom tempo, Rasen… Não conhece a palavra “pontualidade”? — completou; sua recepção era um sorriso debochado, que trazia consigo um olhar carregado de desprezo.
Odiava-o, talvez por ser o favorito de seu senhor, ou por ser um imbecil, e, ainda por cima, a paixão platônica.
— Que porra de roupa é essa, Milk? Já está se preparando para decolar, é? — gracejou, o cinismo e o preconceito estampados em seu rosto.
— Decolando? — Sua mão desceu do peito até o colo, e ele ficou emburrado. — Idiota! Você é tão irritante! — franziu a testa.
— Já se irritou, garotinha?
— Vá se foder!
— Ui… está de TPM, é?
O comentário o deixou ainda mais furioso.
— Talvez, palhaço.
Num impulso, parou de gracejar e avançou, empurrando-o com força antes de recuar apressadamente para dentro do prédio.
— Palhaço? Não sou eu quem está com pó na cara!
— Ah, tinha esquecido como sua voz consegue ser irritante…
— A minha? Olha a sua, de gralha! — respondeu, enquanto desaparecia no interior.
Seguiu em frente, seus passos firmes ecoando contra o chão desgastado. O interior do prédio era repugnante; um cheiro acre de urina de rato impregnava o ar, e os papéis de parede que antes cobriam as paredes da escadaria haviam se desgastado a ponto de quase desaparecer.
Que lugar horrível…
Lucidez! É seu único comentário para o pensamento dele.
— Ei!? — meio emburrado, resmungou diante das injúrias e, ao dar as costas ao maldito, percebeu os olhares curiosos da multidão que vagava pela calçada. — Que foi? Imbecis! — Fechando a porta com força.
Virou-se, encarando-o para subir a escadaria.
Esse tal Messias é um idiota!
Enquanto sua pária desbravava o covil das serpentes, não havia segredos a serem desvendados, tampouco instruções a serem dadas. O prédio, embora imenso, era terrivelmente funcional.
Conforme subia, alcançou o segundo andar, onde se deparou com duas portas: uma aberta à direita e outra trancada à esquerda. Foi então que seus olhos captaram a figura de um homem robusto, desferindo golpes precisos contra um saco de pancadas; os pés se moviam com a destreza de um lutador profissional.
Shamariano? Deduziu, enquanto o déjà vu o envolvia ao observar a pele negra do homem, marcada por um brilho quase mítico. Seus olhos castanho-escuros reluziam intensamente, como brasas vivas, a cada movimento. Cada soco desferido sacudia o apartamento; força implacável que parecia capaz de derrubar o próprio ar à sua volta.
Eram socos como os de Mike Tyson, mas carregados com a força de toneladas, capazes de pulverizar matéria com um único impacto.
Esse titã, imerso em seu treino, estava sem camisa, um físico impressionante, digno de um fisiculturista esculpido à perfeição.
O som de seus pés, incessante e irritante, ecoava pelo ambiente como se ele estivesse sobre um piso de madeira recém-encerado. Movia-se como uma pantera em plena caçada, feroz, extraindo o máximo de si.
Era um contraste gritante com o ambiente ao redor: um colchão velho e maltratado no chão, enquanto uma TV trêmula, apoiada de forma precária sobre um banco, balançava perigosamente a cada impacto.
Ele utiliza energia espiritual, mas não a imbui em seus golpes. Talvez esteja fortalecendo seu corpo internamente. Que interessante!
Para os olhos técnicos do ocultista, um amante das artes místicas, o espetáculo transcendia o interesse.
— Quem é? — Lançando um olhar para trás, encarou o rapaz que se aproximava, meio emburrado.
Com um ar de desdém, puxou um batom de tom malva do bolso, aplicando-o nos lábios. Um suspiro escapou de sua boca, carregado de exaustão, como se a presença do suposto messias já fosse um fardo, mesmo que ele tivesse acabado de chegar.
Sem se dar ao trabalho de olhar diretamente para ele, desviou o olhar para o homem que continuava a treinar, deixando o batom cuidadosamente sobre um banco ao lado da porta.
— Ele não te contou, não é? — Cortando o silêncio, avançou em direção ao lutador, os passos decididos. Estalando os dedos no instante em que parou. — Sr. Kwawe!? Por favor, pode me dar sua atenção? — chamou com firmeza.
Que imediatamente, no meio de um recuo, interrompendo o golpe, girou a cabeça para fitá-los de lado.
— O que foi? Trouxe minha Wald Bräu? — Com um tom descontraído, enquanto agarrava uma toalha pendurada na cadeira atrás de si. Passou-a pelo corpo oleoso de suor; seus músculos brilhavam à luz.
Sua respiração estava pesada, evidência de horas de treino.
Treinava desde o momento em que acordara. Dedicação e foco pareciam esculpir seu caráter tanto quanto seu físico. Era um pilar físico-humano, mas havia algo mais. Rasen, atento, notou as runas espalhadas por sua pele, cravadas como marcas, símbolos de um poder dormente à beira de despertar.
Intimidava o pobre rapaz.
Que homem!
Seus lábios se comprimem, soltando um suspiro baixo.
— Esqueci, desculpa? — respondeu, de maneira quase displicente.
O homem inclinou o pescoço para o lado, emitindo um estalo seco.
— Ta!
Foi direto, talvez até seco demais. Infelizmente, ele não é o seu foco…
— Bem… Este é o nosso messias, de quem o senhor Romero falou… — meio sem jeito, enquanto se afastava para abrir espaço. O recém-apresentado avançou com passos firmes, seus olhos estreitando ao encarar o grandalhão, como se houvesse uma inimizade antiga entre eles.
— Ah, então este é o tal… — comentou com um tom de provocação, caminhando em direção a ele também.
E Rasen, mesmo sendo um homem alto, teve que inclinar o pescoço para cima, acompanhando a estatura imponente do lutador. Kwawe estava a dois degraus acima, o que só amplificou sua presença intimidadora.
Ele deve ter quase três metros…
Esse foi seu pensamento enquanto ele, lentamente, compreendia que estava cara a cara com o Messias.
— Sou, por quê? Estava curioso? — devolveu; sua voz estava firme, sem recuar diante da afronta.
Os punhos do gigante se fecharam com força, e seu peito se estufou como o de um galo-de-briga pronto para o confronto. Tal tensão no ar era insuportável, como se ambos fossem dois predadores à beira de atacar.
— Estava!
— Por quê?
Que climão… Isso está certo? Que caras são essas? Milk se angustiava. Pensava que fosse a rivalidade masculina, mas… Estava mais para um jogo de exibição.
— Como foi visitar as minhas terras?
A frase saiu leve da boca do grandalhão, acompanhada por um sorriso quase desafiador.
O quê!? A pergunta ecoou em sua mente e, perplexo, levou a mão ao próprio rosto, estapeando-se como se tentasse confirmar que aquilo era só um sonho.
— Shamo? Ah, foi bem… quente… As pessoas lá são bem diferentes…
— Lá, a Aurora castiga durante os duzentos e setenta dias de cada ciclo!
— É…
Com indiferença, desviou o olhar após a resposta e começou a recuar em direção à porta, dando-lhe as costas no meio da conversa.
— Ei, já vai mesmo? — O segurou pelo ombro, impedindo-o de sair. — Quer dizer… E as mulheres? — Seus olhos estavam fixos, enquanto colocava a outra mão na cintura, esperando uma resposta.
Aquilo estava indo ladeira abaixo…
— Mulheres? Bem… bonitas… — respondeu, com uma voz carregada de uma calma quase desinteressada. Mas essa calma se transformou em irritação em um instante, quando balançou os ombros para se libertar das garras do homem.
Nada, porém, o ofendia mais do que aquelas palavras. Bonitas? Só? Era ultrajante ouvir aquilo, especialmente para um patriota nato como ele.
Mas, por sorte, a razão estava além de suas expectativas.
— Ah, tudo bem, depois falamos…
— Certo — O observou por um momento antes de lhe dar as costas novamente.
O garoto parecia um pouco sem jeito, mas o grande sorriso em seu rosto denunciava o quanto estava à vontade na situação, como se aquele ambiente fosse seu terreno familiar, após a saída de sua pária.
Já o tal, antes de olhar para o topo, onde mais dois andares o aguardavam, parecia imerso em seus próprios pensamentos. Seu TDAH era seu maior inimigo, tornando impossível manter uma conversa que não estivesse no auge de seus picos de interesse.
— É… Depois falamos mais — comentou consigo mesmo, caminhando de volta ao seu posto, encarando o peso novamente.
Era como fazer sala para uma visita que não fazia questão.
Enquanto subia degrau por degrau, ansioso por encontrar aquele que o levaria ao triunfo, o único que acreditava em seu potencial, ele refletia sobre quem o chamava de messias. Mas o que isso realmente significava?
Não falarei por agora!
Se contente com uma virada de cena…
Alguém descia a grandiosa escadaria que dava acesso ao templo do clã Shirasaki com pressa. Era a garota de cabelos vermelhos, a mesma que havia conversado com o tal impuro na loja de smartphones. Já havia descido quinhentos degraus, como um carro cortando a estrada; sua expressão séria refletia a urgência da situação.
O cenário se estende diante de seus olhos, quase como um sonho imerso em serenidade, onde o tempo parece desacelerar ao ritmo de cada pétala de sakura que cai suavemente no chão. As cores delicadas da primavera misturam-se com o vento que sussurra entre as árvores.
No entanto, por mais que o cenário em si seja um refúgio, a inquietação a apressava. Seu olhar se fixa no horizonte, no final da escadaria, como se ali repousasse o destino que tanto teme, mas que sabe ser inevitável. A lâmina em sua cintura, fria, parece destoar da ansiedade que corrói seus pensamentos. Cada vibração do smartphone em seu bolso traz um novo arrepio de apreensão.
Não há como escapar! Salta os últimos dez degraus para finalizar aquele percurso.
Calma… calma! Aos seus pés, observa os saltos partidos e o estrago causado pela ação impetuosa. A poeira levantada pelo movimento de sua queda se espalha, mas ela não dá atenção a isso. Seus olhos estão focados no smartphone!
— Alô? Amai Shirasaki na linha! — diz, a voz vibrando com uma animação irreprimível, apesar do caos ao redor. Como se nada fosse capaz de desviar seu foco agora.
Do outro lado da linha, a voz do número desconhecido soa cansada e carregada de uma energia oposta.
Ela sente uma familiaridade, uma voz rouca, masculina, passiva e gostosa de ouvir…
— Aqui é o Yami Yamasaki. Bem, seremos uma dupla, né? Que merda… — responde com um suspiro, seu tom baixo e, como sempre, rabugento preenchendo o silêncio da sala vazia ao seu redor.
Nosso protagonista estava na cama do hospital; o tom de sua fala era marcado pela frustração, sem paciência para essa “dupla” que a vida lhe impôs. Quer dizer, que Kyotaka, seu chefe, havia imposto!
Mesmo assim, não se deixa afetar. Já sabia que sua nova parceria não seria fácil, mas a imprevisibilidade dele apenas aumentava a curiosidade sobre o que está por vir. Ela se acomoda melhor no degrau, ainda com um brilho nos olhos, e solta uma risada curta e sem freios, como se nada realmente pudesse estragar o momento.
É ele, é ele!
Também pudera, já sabia quem era, quem seria sua dupla antes dele mesmo; tinha um dedo seu na tal nomeação anônima e aleatória. Papo para outro capítulo…
— Merda ou não, não importa. Vamos fazer acontecer! — Ela cruza as pernas, sentindo-se mais confortável, mais pronta do que nunca para o que quer que venha a seguir. Tentando até disfarçar a surpresa, mas que manipuladora! Foi então que o “bip” do monitor de frequência cardíaca cresceu, enquanto o tédio de estar ali despia lentamente a exaustão de sua mente.
— Yami? Está aí? — diz, e em um salto, se ergue inquieta.
— Morreu? Oi?
— É… — Junto a um bocejo, que tentou conter de qualquer jeito, o pobre carro velho já havia ficado sem gasolina na metade do trajeto.
— Está cansado, hein? Zangado?
No instante em que o chama dessa forma, o aparelho alerta seus batimentos cardíacos, que marcam 143 bpm.
Talvez ele tenha morrido nesse mesmo instante… novamente.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.