Capítulo 17 - Alianças
Ela esperou, ouvindo ruídos do outro lado da linha… até que tomou coragem para cutucar o monstro. — Por que você está zangado? Tem a ver com a gente? — questionou, enquanto caminhava pela calçada, acompanhada pelos altos muros que separavam o terreno da rua.
Segurando o smartphone com firmeza, enquanto os pequenos adereços e figurinhas de animação (um gato branco de vestido rosa) na capa rosê balançavam suavemente ao ritmo do vento. Deu para sentir sua voz transbordando de animação enquanto conversava com o rapaz, um entusiasmo que vibrava e preenchia o ar ao redor.
Uma adolescente que gostava de sadboys, nada incomum… não era?
— Sim, infelizmente… — Foi direto e cruel. — Mas, como isso funcionaria? Com seu sobrenome, imagino que esteja bem ocupada, não é? — Sentou-se na maca, enquanto a enfermeira acabava de sair.
Seus olhos alternam entre a sopa na bandeja sobre o colo e uma expressão de descontentamento, como se a refeição fosse mais um castigo do que um alívio.
Comida para defunto…
— Infelizmente? Que nada! Vai ser muito divertido! Pelo menos você teria companhia… alguém para te fazer parecer menos estranho para os outros… — gracejou, tocando os lábios com a mão, como se estivesse afagando a própria voz.
Sua expressão parecia despretensiosa, quase brincalhona.
Ele ficaria uma fera… Enquanto pensava, suas bochechas ganharam um leve tom rosado, e seu olhar se tornou mais profundo, quase como se pudesse enxergá-lo do outro lado da tela digital.
— Estranho? — questionou.
E no mesmo instante, a colher plástica em sua mão partiu ao meio sob a pressão de sua força descontrolada, despencando na tigela e mergulhando na sopa quente.
O líquido borbulhante espirrou para todos os lados, manchando a mesa sob seu colo com gotas escaldantes. Do outro lado da porta, o médico, que já se preparava para entrar, deteve-se ao observar pela pequena janela de vidro. Seu olhar de surpresa rapidamente deu lugar ao receio, e recuou instintivamente.
Vai que o estresse desse exorcista explodisse ali mesmo? Esses caras devem lidar com uma barra diariamente… Enquanto um calafrio percorria sua espinha. Não seria eu a lidar com essa bomba prestes a detonar!
Certo estava… e por isso se retirou como um desertor em uma guerra perdida.
Que diabos?! Por que, justo uma garota? Praguejou, cerrando os punhos de frustração.
— Pois é… — enfim ela respondeu, após ele não dizer mais nada a não ser suas reclamações mentais, com um sorriso que beirava a provocação — sorte que ele não via. — E, já que estávamos falando de um desastre, você também precisava melhorar muito profissionalmente! Sério, como pode um exorcista tão habilidoso quase demolir uma escola inteira só para lidar com um demônio daquele nível? — continuou, a voz carregada de ironia, enquanto caminhava com passos mais firmes e cheios de energia, sem nem olhar para trás.
As árvores do outro lado do muro também balançaram suavemente ao vento, suas pétalas cor-de-rosa caindo ao chão e se espalhando aos seus pés. Elas criaram uma bela pintura que contrastava com o clima cinzento e sombrio que dominava o mundo.
— Ah… Eu… — tentou falar, mas as palavras tropeçaram e se perderam no caminho, o fôlego se esvaindo enquanto ele lutava para continuar.
— Eu? Nem tente! Você é um garoto travesso, e sabe disso. Que tal te chamar de diabinho trevoso? Combina perfeitamente com você! — disparou, cortando qualquer tentativa de resposta antes que ele conseguisse se explicar. As palavras dela chegaram como flechas, rápidas e certeiras, deixando-o completamente desnorteado.
Conversar com ela era uma missão impossível. Suas habilidades sociais já eram um desastre por si só, e diante daquela intensidade, só conseguia se afogar mais.
— Vai se foder! Sério… — em um misto de raiva e constrangimento, enquanto o rosto esquentava, ruborizado pela frustração.
— Haha, que boca suja… Mas bem, respondendo ao seu questionamento, não sou tão ocupada assim… Ser exorcista é a minha vida! — soltou um suspiro cansado, como se a simples menção ao trabalho fosse um peso. Ela fez uma pausa, aguardando o tráfego diminuir antes de atravessar a rua. — Quando não estou treinando no refúgio da minha família, estou lá, aceitando missões nos quadros públicos… — Seus olhos brilharam, como se a simples lembrança a energizasse, e ela se entregou a um breve desabafo.
Finalmente… Pensou consigo, como se um peso fosse retirado de seus ombros. A conversa tomara outro rumo, e ele finalmente se via “levado” a sério.
— Entendi…
Do outro lado, o som das buzinas ecoou, misturado ao vai e vem apressado das pessoas… e, de repente, o rapaz tomou uma iniciativa e interrompeu o silêncio:
— Bem, falamos mais quando tivermos uma missão para cumprir, certo? Deixo o resto com você… — Esboçou um sorriso fatigado, seguido de um bocejo, claramente mais interessado no descanso do que na tarefa em si.
— Espera!
Assim que a cabeça tocou o travesseiro, a voz suave quebrou o silêncio, despertando-o. Ele sentiu uma pressão na mente, obrigando-o a sentar rapidamente, piscando algumas vezes para afastar a sonolência enquanto seus olhos percorriam a estante e a cadeira vazia na sala hospitalar.
— O que foi!?
Ela apertou os lábios, controlando-se com esforço, evitando se deixar levar pela urgência das palavras que estavam prestes a escapar e, assim, acelerar ainda mais o coração dele.
Ele era como um café… Amargo, mas irresistivelmente viciante! Mas já era hora de deixar a cafeína de lado! Shopping, obrigações, a aguardavam…
— Não era nada! Vou te mandar uma mensagem quando confirmar tudo, combinado? — Refreando os pensamentos mais impetuosos que quase escaparam.
— Combinado… — Revirou os olhos, tentando processar. — Falou… não, até a próxima! Tá? — Bocejando mais uma vez.
— Até… Diabinho trevoso…
No exato momento em que a ouviu, virou o rosto em direção ao smartphone à sua direita. Ao revirar os olhos novamente, o som do aparelho sendo desligado preencheu o espaço daquela sala.
Enfim, silêncio… Relaxou, entregando-se à exaustão. Sua visão se embaçou, e, com um baque suave, sua cabeça encontrou o travesseiro.
Maldito Azazel… Me deixou como um aparelho viciado! Sua energia espiritual e vital se esvaiu, como se estivesse perfurado…
Já a garota prosseguiu apressada, seus passos rápidos enquanto murmurava palavras baixas, distraída pela busca frenética de uma música no aplicativo. Atravessou mais uma rua e, sem hesitar, parou na calçada, diante de um carro preto estacionado no fim da via. O veículo brilhou de maneira enigmática sob a luz que escapava das nuvens, com um crucifixo prateado preso ao para-choque dianteiro.
Foi quando o carro finalmente arrancou que Rasen concluiu, por fim, a árdua subida da escadaria. O relógio marcava 15h da manhã e, ao alcançar o topo, uma expressão de alívio se espalhou por seu rosto, como se tivesse deixado para trás o peso de um desafio difícil.
Diferente dos demais andares, ali só havia uma porta e, à esquerda, um quadro de um navio navegando em águas tranquilas. Parecia uma embarcação antiga, dos períodos mais sangrentos de Aija, quando nenhum império conseguia se erguer e os povos se chamavam fujianos.
Ao empurrar a porta, finalmente reencontrou seu único amigo, ou, ao menos, a pessoa mais próxima disso.
— Foram vinte e cinco dias… que pareceram cinquenta! — exclamou Romero, o tal, enquanto se deixava cair, quase derrotado pela espera, em uma poltrona surrada, no fundo daquele ambiente abafado.
O lugar exalava o peso do tempo, com livros espalhados pelo chão, como se cada página fosse uma testemunha de algo esquecido por outros, mas lembrado por ele.
Na mesa, coberta por uma grossa camada de poeira, repousava um mapa. E Rasen, imperturbável, manteve-se em pé sob o arco da porta, os olhos absorvendo cada detalhe da cena, como se não fosse apenas um simples espaço, mas um palco crucial em um jogo maior.
Que estava prestes a iniciar, o botão “start” prestes a ser pressionado.
— Realmente, mas agora estou aqui! — Ele deu o primeiro passo, seus dedos deslizando pelo mapa.
— Então, me conte, o que você descobriu?
— Foi uma experiência reveladora… No monte Hierosolyma, senti a presença da luz do anjo Gael, como se sua essência, sua vontade, permanecessem impregnadas no ar, ou a própria alma dos fundadores estivesse entrelaçada àquele lugar — disse, com o olhar distante, enquanto continuava a caminhar pelo recinto, seus passos ecoando suavemente no silêncio. — Isso me faz questionar por que a ordem foi estabelecida em Aija. As terras ali são áridas, desprovidas de fertilidade, mas, no entanto, Niftar e o anjo decidiram fundar justo naquele local. Há algo profundamente significativo por trás dessa escolha, não há? — ponderou, como se a resposta estivesse oculta nas sombras daquele passado distante.
Da qual vários livros derivados e a própria Leges falharam em contar.
— Dinheiro, questões políticas… É simples: com a ordem em Aija, o imperador fortaleceu sua posição junto ao povo. É um jogo de poder, onde cada movimento é calculado! — comentou, com um tom cínico, como se desmascarasse a verdadeira natureza por trás das ações dos homens. — Mas Niftar e Gael, com suas visões além do óbvio, devem ter percebido algo sagrado nessas terras!
Ao parar para ouvi-lo, contemplou uma pintura que retratava um anjo cedendo lugar a um demônio. Havia luz em sua queda e escuridão nos céus ao redor. A imagem era uma alusão a uma verdade que lhe agradava: ao se tornar um “demônio”, ele se via como um mal necessário…
— Realmente! — a certeza em sua voz era inconfundível. — Enfim… voltei com mais perguntas do que respostas! — enquanto fazia um movimento teatral, tocando com firmeza um dos móveis antigos ao seu redor, um armário, deixando marcas de dedos na camada de poeira que o recobria.
— Por mais que tentemos compreender, a verdadeira natureza desta realidade sempre nos escapa; estamos apenas arranhando a superfície, deixando um mar de perguntas sem resposta — respondeu Romero, com o olhar brilhando como uma estrela nascente, encantado pelas palavras de seu amigo. — Por isso… nós somos necessários! — Era claro que ele já tinha uma ideia, e essa ideia o fascinava profundamente.
Até alguém como Rasen percebeu.
— Verdade…
Ele então esfregou os dedos enquanto recitava um trecho de um livro, que ambos conheciam bem: Nunc autem videmus per speculum in aenigmate, tunc autem facie ad faciem; nunc cognosco ex parte, tunc autem cognoscam sicut et cognitus sum… E observou a poeira microscópica cair à sua frente.
Foi como um disparo, em meio ao caos, que reverberava a insanidade por onde passava e atingia o coração de seu ouvinte.
Não o atingiu? Não entendeu? 1 Coríntios 13:12.
— Isso nos força a reconhecer as limitações de nosso conhecimento superficial e a buscar modificar o destino… Cheguei à conclusão de que o simulacro da criação, a espiral que Schattenstein imaginou para um mundo perfeito, é a nossa melhor ideia: um mundo sem verdades, apenas harmonia!
Discutiam com uma sintonia impressionante, cada um complementando o argumento do outro.
— Mas, para alcançar isso, precisamos que minha espiral tenha um estoque de energia… um estoque que supere os limites que conhecemos! — Continuando o assunto que começara há algum tempo, antes mesmo de viajar.
— Sim, e é exatamente por isso que estamos aqui, neste lugar tomado por ratos — olhou ao redor e arqueou as costas sobre a cadeira. — Meu plano é simples: vamos roubar o Cubo da Maldição Eterna, um artefato de Nível Apocalipse, armazenado e protegido no nível dezessete da zona de contenção!
— Que fica a apenas quinze minutos daqui! — Um sorriso soberbo então surgiu em seus lábios.
— Exatamente!
— Lembro-me quando foi descoberto. As lendas diziam que ele foi forjado a partir do desespero dos homens. Contavam que mais de cem demônios mundanos estavam selados dentro dele… uma fonte de energia inigualável! — confessou, compartilhando o entusiasmo do amigo. — Mas há dois problemas: como invadir sem ser interrompidos por um exército de exorcistas, e como lidar com tantas entidades se o cubo for aberto? Isso é um desafio até para mim… no máximo, conseguiria aprisionar dez com minha técnica inata expansiva… mas… — pensativo, refletindo sobre os obstáculos à sua frente.
— Eu sei, mas vamos por partes… temos alguns dias até lá, e só preciso de seis exorcistas!
— Seis?
— Sim, apenas. Meu plano é criar uma distração no dia da invasão da zona de contenção. Com sorte, isso fará com que todos os exorcistas voltem seus olhos para nós. Se Milk for tão eficiente quanto imagino, conseguiremos conter até os celestiais por tempo suficiente! — explicou. — Mas, com o cubo em mãos, temos que ser astutos. Na verdade, seremos os mais ousados! Você vai liberar todos os demônios, controlados ou não, e, conforme o caos se instala, a energia negra que será consumida em sua espiral virá do medo, terror e desespero que dominarão o ar!
Seus olhos recaíram novamente sobre o mapa entre os livros enquanto o outro concluía sua fala, delineando os próximos passos do plano. O papel estava caído ali, após uma forte rajada de vento que invadiu pela janela sem vidros.
Energia em transformação, ainda não domada por um instinto… entendi! Como se reorganizasse as peças do quebra-cabeça mental.
Tal pensamento o pegou de surpresa. Em vez de focar no trabalho de exorcizar entidades e usar a energia restante, a ideia era criar energia e absorvê-la, mesmo sem depender de uma racionalidade totalmente formada.
— Dois planos suicidas! — admitiu após uma breve reflexão, observando a palma da mão, onde a energia fluía em uma espiral de dentro para fora. Ele fechou o punho com força, os olhos cheios de decisão, antes de o encarar novamente.
— Perecer pelo nosso ideal ou dar ao mundo uma segunda chance? Parece justo! — exclamou com determinação, como se finalmente tivesse escolhido o caminho.
Ou parecia… ao menos, naquela época…
— Assim somos, iluminados! — parafraseou, com um novo lema de vida tirado de um dos muitos livros que leu, levantando-se. — Bem, já que você chegou, que tal recrutar um rapaz comigo?
— Eu?
— Sim, ele passou pelo mesmo caos que você…
— Não vai rolar. Você acha que eu consigo convencer alguém com essa minha cara? — respondeu, tirando o smartphone do bolso e soltando uma risada fria.
— Uma desculpa esfarrapada dessas?
— Não, na verdade, preciso fazer uma visita… você entende, não?
Esperava que não, mas ele apenas sorriu de lado ao ouvir as palavras, pegando um de seus livros e segurando-o entre a cintura e o cotovelo direito.
— Claro! Então nos vemos mais tarde, meu amigo… — e, antes de sair, ele parou na porta, virando-se para lançar um olhar penetrante. — Mas não se esqueça, sigilo, hein! — o aviso soou mais como uma ameaça velada.
Um tolo, quem quer que pensasse que seria cumprido…
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