Capítulo 22 - Entrelinhas
A escuridão envolvia o céu, tingindo-o de um azul profundo ao redor do majestoso Domus Dei, o edifício mais alto da capital. À medida que a luz da aurora era gradualmente engolida por nuvens que indicavam a mudança de ciclos, três dos nove líderes do conselho se reuniam no 81º e último andar para discutir a crescente crise nas fronteiras de Crea.
O quarto, luxuoso e propriedade de Kyotaka Shibata, um homem tão influente quanto o próprio imperador das terras verdejantes de Aija, tornava-se palco de intensos debates. Uma TV ligada exibia noticiários sobre problemas causados pelo mundo espiritual, aumentando ainda mais a tensão.
— Foi Gabriel quem lhe contou isso? — perguntou Kyotaka a Hugo Moreau, enquanto se recostava em seu luxuoso sofá de couro de avestruz preto, que combinava com os demais móveis que enfeitavam seu apartamento.
Seiji, líder religioso e figura influente cujas palavras moldavam os destinos da Igreja de Elum e de seus fiéis, permanecia em silêncio ao lado deles, refletindo sobre as revelações. Vestia um tradicional quimono verde, representando seu clã, os Watanabe.
E enquanto os dois conversavam, o religioso finalmente encontrou suas palavras. Sua respiração acompanhava o crepitar das chamas da lareira, que se intensificaram repentinamente.
— É difícil acreditar… Até ontem estávamos elogiando-o por suas contribuições, e agora pensamos em eliminá-lo… — murmurou, acariciando sua barba grisalha com inquietação. — Mas ele sempre foi utópico demais em suas análises, nunca gostou de como resolvemos os problemas…
Enquanto comentava, Kyotaka observava o acusador sem desviar o olhar, que convocou a reunião com urgência após saber da deserção de mais três exorcistas. A urgência contrastava com o temperamento paciente e ponderado do líder.
— Sim, Gabriel sabia que eu sou o único capaz de alertar o conselho e garantir que lidamos com isso com seriedade — respondeu, desviando o olhar para uma garrafa de vinho na estante ao lado da pequena adega.
Seus lábios secos ansiavam pelo álcool enquanto a discussão se intensificava. Ele tentava se contentar em beber um copo de água como se fosse vodca, para manter sua abstinência.
— É trágico. Sempre achei Romero um bom rapaz. Este mundo enlouquece até os corações mais nobres… Mas, eliminá-lo?
— Um momento! — interrompeu Seiji, com a voz firme. — Não podemos nos dar ao luxo de lamentar! Tornou-se uma ameaça. Sozinho ou com outros desertores, ele pode ser o fim da Ordem! — lançando um olhar sério aos demais.
Moreau sorriu com um ar de triunfo ao ouvir isso, levantando-se do sofá. Ajustou sua gravata borboleta verde enquanto vestia um terno roxo, a confiança evidente em cada movimento.
— Exatamente. Além dos problemas com a reputação pública, lidamos com a síndrome da escuridão e os terremotos provocados por Masaru! — reclamou, lançando um olhar incisivo para o líder. — Se descobrirem o que esse maluco está tramando, podem exigir nossas cabeças! — esperando uma resposta.
— Concordo com você, Moreau. Precisamos agir antes que seja tarde demais! O império nunca gostou de revolucionários!
Mas não eram a voz da razão.
— E os outros líderes? Somos apenas três dos nove aqui! — indagou Kyotaka em resposta, confuso com a pressão que sentia.
Hugo soltou um suspiro de frustração. Enquanto isso, Seiji colocou a mão sobre o ombro do líder.
— Você sabe que alguns líderes têm políticas prejudiciais e não concordariam com decisões extremas. Cabe a você decidir, meu amigo… — encorajou.
— Estão falando de executar o rapaz sem vestígios, na surdina, não é? — embora já soubesse a resposta.
— Existe outra opção? Mesmo com uma investigação, dois ou três dias são tempo demais para esperar enquanto as coisas acontecem! — respondeu com firmeza.
— E se mais desertores estiverem com ele? Uma laranja pode apodrecer as demais… — ponderou o outro.
Ambos estavam determinados a convencê-lo, mas, cansado das palavras, bateu o martelo na mesa, sinalizando que a discussão estava encerrada.
— Entendo, mas precisamos seguir os procedimentos. Se Romero representa uma ameaça, vamos enfrentá-lo! — afirmou, desligando a televisão com firmeza após pegar o controle. O barulho da TV, junto às vozes de seus companheiros, o impedia de tomar uma decisão certa. — No entanto, não quero tomar decisões precipitadas. Precisamos convocar uma reunião com os outros líderes para debater o assunto em conjunto. Esta reunião está encerrada hoje; amanhã, preciso fazer um discurso e falar com o governador da cidade… tudo será resolvido em seu tempo. Espero que sejam compreensíveis, meus amigos! — disse com convicção.
— Droga… Posso ao menos levar aquele vinho seu?
Então caminhou em direção à prateleira enquanto fazia a pergunta com semblante insatisfeito, embora seus olhos suavizaram ao contemplar a garrafa antiga.
— Fique à vontade, Moreau. Agora, vou me retirar. Boa noite! — despediu-se, saindo para seus aposentos.
— Boa noite… — respondeu.
Seiji também se levantou e, sem olhar para trás, saiu do recinto, com seus pensamentos pesados sobre as decisões à frente. Seus passos ecoaram pelo corredor, seguidos pelos de seu senhor, que subia as escadas.
— Que Elum o abençoe, meu líder. Boa noite! — disse antes de sair, com seu olhar firme, antecipando um futuro incerto.
Assim que o fez, Moreau também se retirou, fechando a porta com um baque. Um momento em que os dois puderam, enfim, ficar a sós.
— O que faremos? — segurando a garrafa de vinho.
— Não é óbvio!? Encontre um bom assassino, senhor. Temos um dia até a reunião, então, boa sorte! — tomando o caminho à esquerda, enquanto o outro seguiu para a direita, claramente aborrecido.
Velho tolo! Bem, agora era hora de beber e relaxar. Amanhã, contrato alguém… Parece que não tenho descanso nessa vida de servidor público, por Elum!
Enquanto pensava, notou o velho rabugento entrando no elevador. Isso o animou, e tirou o smartphone do bolso, pronto para ligar para seu primeiro contato: Adrien Dubois.
— Salut, petit chat!
Luxúria brilhou em seus olhos.
A reunião terminou por conveniência dos líderes, mas trouxe consigo uma ansiedade crescente. Todos sentiram que o mundo estava colapsando rapidamente, ou ao menos, os que se preocupavam sentiam isso, enquanto os tolos bebiam e se entregavam aos prazeres até desmaiar.
Na madrugada seguinte, dia 31, por volta das 2h54, Rasen emergiu de um beco escuro e caminhou até os trilhos do metrô. Localizados ao lado de uma área residencial em um subúrbio pouco conhecido da capital, a apenas alguns quarteirões do local onde havia executado sua vingança…
Seus pés bateram nos trilhos, causando um ressoar assustador que ecoava em equilíbrio com o canto das corujas e dos grilos. Enquanto aguardava algo acontecer, escorou-se a uma placa metálica e leu uma matéria em seu smartphone:
“Homem idoso morre após ter a cabeça, os órgãos genitais e um braço destruídos…”.
O título chamou sua atenção, e leu o restante em voz alta, desencadeando uma risada sussurrante e sombria, como se aquilo fosse cômico ou o entusiasmasse o suficiente para levá-lo à beira de uma crise.
“A suspeita é de um crime cometido por um exorcista, de acordo com um depoimento anônimo…”
Continuou cochichando a notícia. Dava vida à pintura através de sua voz emocionada, bebendo das águas do prazer, e encontrava seu reconhecimento na escuridão do anonimato. Holofotes seriam o temor de um predador? Só se fosse tolo o bastante para deixar pegadas de sangue, o que não era.
— A chama se espalhou… agora é hora de caçar o incêndio e escavar suas cinzas! — disse, desligando o aparelho enquanto encarava a escuridão à sua frente.
Um grande túnel projetava uma atmosfera sinistra, fazendo-o arrepiar-se. Não dava para ver o fim, nem escutar um único som naquela escuridão.
Enquanto fitava o abismo, percebeu que o vazio à sua frente também o observava, penetrando seus olhos e mesclando-se com sua alma. Como uma espiral, entrelaçam-se com sua essência, dividindo-se em dois, numa dança mística de encontro e separação. Era como um espelho que refletia o que estava além, mas que, mesmo tão distante, conectava-se à sua natureza e o fazia tombar naquele lugar, em transe.
Isso não era mera sensação, não era apenas misticismo…
— Asmael, então é agora que tudo começa? — perguntou uma figura, observando do outro lado, como se estivesse assistindo a uma tela que dividia as duas realidades. Estava sentado em um trono feito de ossos humanos, mas sua aparência era celestial.
Suas quatro asas deslumbravam na escuridão, enquanto seus cabelos loiros fluíam suavemente por seu corpo nu, roçando delicadamente sua pele de seda. E dois majestosos chifres, semelhantes aos de um órix, adornavam sua cabeça.
— Sim, meu senhor, a partir deste fragmento do tempo, tudo se encaminhará para o fim! — respondeu o outro, vestindo um terno elegante. — Esse será o bobo que levará a corte aos seus dias de risada! O messias entre os homens… e o profeta entre os demônios…
Sua aparência era quase humana, exceto pelos chifres de gnu que adornavam sua cabeça.
Ele parecia um homem adulto, com cabelos ruivos e marcas de expressão no rosto. Não era nada menos que o rei infernal e senhor da luxúria, a serpente que asfixia o homem e circunda a maçã do pecado.
E em sua feição, havia expectativa, mas qual seria, eu não poderia dizer-te.
— Excelente… que os jogos comecem!
Foi a resposta de seu rei? Não! de seu imperador!
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.