Índice de Capítulo

    Em um quarto escuro, alguém assistia à televisão. No programa daquela noite, no canal sete, o velho cientista, Dr. Alberto Montalvo, ajeitava os óculos enquanto se preparava para explicar a teoria dos três mundos. A TV iluminava suavemente o ambiente, destacando a figura do cientista. Com um sorriso maroto, ele começava a andar até uma mesa de madeira, com uma lousa branca às suas costas.

    — Imaginem, meus caros, que o mundo é como um sanduíche. Temos o pão de cima, que é o mundo físico, onde todos nós moramos, com nossas preocupações mundanas e contas a pagar. Embaixo, temos o pão de baixo: o mundo astral, habitado por todas aquelas criaturas que adoram pregar peças — os demônios, os espíritos… e quem sabe até seu tio-avô reclamão, que você jurava estar em outro plano.

    Ele fez uma pausa, deixando que o conceito se assentasse nas mentes do público, antes de continuar, gesticulando com entusiasmo:

    — Agora, o recheio desse sanduíche é a intersecção, onde as coisas ficam realmente interessantes. Quando um exorcista — que é como aquele ingrediente especial que só sua avó sabe preparar — se aproxima de um demônio, acontece uma mágica. Ou melhor: uma intercessão. Ambos se tornam tangíveis e podem interagir, como se o pão de cima e o pão de baixo se espremesse contra o recheio.

    O Dr. pega um giz e começa a desenhar na lousa, ilustrando sua teoria.

    — Mas atenção! Essa ligação é mais sensível que uma receita de suflê. Para mantê-la, o exorcista precisa usar seus sentidos: visão, audição e olfato. É como se ele estivesse constantemente farejando, ouvindo e olhando para manter o equilíbrio desse sanduíche sobrenatural. Sem isso, o recheio se esparrama e a ligação desaparece — puff! Lá se vai o demônio para o mundo dele, e o exorcista fica aqui, coçando a cabeça e se perguntando onde foi que errou.

    Ele se volta para o público, com o sorriso ainda mais largo.

    — Então, da próxima vez que vocês ouvirem um barulho estranho no meio da noite, lembrem-se da teoria dos três mundos. Pode ser só um ratinho… ou pode ser que seu sanduíche cósmico esteja prestes a ser servido!

    O público ri e aplaude, enquanto ele se curva ligeiramente, satisfeito com sua explicação cheia de humor e mistério. A cena se dissolve lentamente, deixando no ar um misto de curiosidade e encantamento.

    O som da plateia se esvai, substituído pelo estalo alto de um pacote de salgadinhos sendo esmagado.

    No escuro do quarto, a jovem que assistia à TV resmungou, irritada:

    — Que saco…

    Levantou-se do sofá, onde estava esparramada da forma mais desleixada possível. Com um pulo rápido, desligou a TV, e a coberta que a envolvia caiu aos seus pés. Pisando nos inúmeros pacotes de macarrão instantâneo espalhados pelo chão, notou o seu papel de dispensa da Ordem Espiritual, marcado com o número vinte e três.

    Vestia uma calça jeans tão comprida que cobria os pés e uma blusa com estampa de unicórnio. O apartamento era tão pequeno que, ao ficar de pé, ela conseguia alcançar a lâmpada do teto com facilidade.

    Erguendo o braço, puxou o smartphone do bolso.

    Na tela, uma mensagem enviada há uma hora para um contato anônimo:

    — Podemos nos encontrar amanhã no parque?

    A resposta havia chegado dez minutos atrás:

    — Certo… Vamos nos ver no lago. Estarei junto a um homem. Um brutamonte de músculos…

    Ela suspirou, lendo a mensagem mais uma vez.

    — Iluminados… — balançando a cabeça com desdém.

    A luz do aparelho iluminava brevemente seu rosto, revelando a determinação que crescia em seus olhos. Havia algo nela — algo que não combinava com a blusa de unicórnio ou os pacotes de macarrão no chão.

    Algo que ardia por dentro.

    Injustiça… que ardia em vários corações, era como o sentimento que corroía Orfeu no submundo.

    Mas…

    Em outro mundo, distante em espaço e tempo, um portal rasgava as barreiras da realidade. Do vórtice pulsante, Asmael surgiu, seus pés tocando o solo amaldiçoado das Terras de Maladomus — o recinto dos pesadelos. Diante dele, erguiam-se os portões do castelo do mais vil dos demônios: aquele cuja aparência era de anjo, mas cujo interior abrigava um monstro.

    O palácio do dragão dourado, Luciel.

    Construído nas profundezas do abismo, o palácio reluzia em ouro corrompido, como ferro enferrujado, erguendo-se sobre a areia negra como um farol de perversidade. Em seus arredores cresciam árvores frutíferas, cujos galhos pesavam com maçãs douradas de brilho hipnótico. Serpentes escarlates, adormecidas entre as folhas, sibilavam ocasionalmente, como se sonhassem com a queda do mundo.

    Ali, sob a sombra do impossível, Asmael avançava — e, com ele, o presságio da guerra.

    O rei demônio atravessou a entrada e adentrou o palácio. Um longo corredor estendia-se diante dele, onde inúmeros demônios — todos nobres — se ajoelhavam em reverência, formando uma trilha até o salão principal.

    Suas vozes ecoaram em uníssono, cheias de fervor:

    — SAÚDEM O REI ASMAEL!

    Uma ventania poderosa irrompeu do grande salão, sacudindo os pilares, as tapeçarias e as próprias vestes dos presentes. O vento rugia como uma fera viva, enquanto ele avançava, com os cabelos vermelhos dançando ao seu redor e o terno azul ondulando como uma bandeira de guerra.

    Parou na metade do trajeto, firme. O silêncio caiu, denso e expectante.

    — Meu senhor… — sua voz rompeu o ar, carregada de emoção — Bezeel está novamente em sua prisão! E Romero… ele está vivo. O nosso futuro está garantido. Mas… eu te suplico!

    O demônio caiu de joelhos, os punhos cerrados contra o chão frio.

    — Liberte minha filha!

    Um suspiro escapou-lhe, pesado, quase aliviado por finalmente estar ali — diante daquele que podia mudar tudo.

    — Excelente, Asmael… Mas… — As palavras de seu senhor despertaram uma ansiedade esmagadora no demônio, que cerrou os punhos com força. — Libertar sua filha? — continuou, com uma calma cruel. — Você sabe… não foi apenas o escape de Bezeel. Ela é amante do maldito Azaael, aquele que tentou matar a nós dois!

    O demônio observava, imóvel, o leve suspiro que escapava dos lábios de seu senhor enquanto ele se erguia de seu trono dourado. Cada passo seu ecoava como o som de lâminas raspando metal — um lembrete de que até a beleza carrega morte.

    — Mas…

    — Eu não terminei — interrompeu com firmeza, sua voz cortante. Ele caminhava entre seus servos ajoelhados, tocando-os nas cabeças como se fossem bestas domadas. Apesar de sua natureza infernal, havia um brilho celestial em sua presença. Um brilho que cegava. — Como você é um excelente servo e aliado… — com um leve sorriso nos lábios — darei a ela uma chance. Daqui a duas semanas, quando o Messias derramar o caos sobre o mundo… eu a enviarei. E, se for um bom peão… poderá se tornar o meu braço direito!

    Nesse instante, ele ergueu a cabeça. Diante dele, um ser envolto apenas por um manto branco surgia entre as sombras. Os cabelos loiros caíam sobre olhos gentis, serenos — quase angelicais.

    — Certo! Meu senhor… não sabe o quanto sou grato! — exclamou, emocionado.

    — Eu sei — respondeu, em tom suave. — Sua filha é seu diamante. E você… fez tudo por ela. Servos que prezam pelos laços… são os que mais valorizo.

    Com um gesto sutil, Luciel segurou o queixo dele e o fez se levantar. Seus olhos se encontraram — e, naquele instante, uma corrente invisível se firmou. A admiração que sentia era como uma corda, presa firme nas mãos do rei.

    Assim regia Luciel, senhor de todos os demônios, o rei dos reis — aquele que prometera consumir o mundo dos homens e, sobre seus escombros, erguer uma nova realidade. Um mundo perfeito…

    Onde apenas ele e seu senhor, Alum, ditariam as rédeas do destino.

    Pobre coitado… Achava mesmo que tinha todos presos em suas cordas. Como se, nos ramos de uma árvore, os frutos jamais verteriam veneno…

    Ao sair daquele recinto, seus lábios se comprimiram num silêncio amargo. Seus olhos se ergueram para o teto do Reino dos Pesadelos, onde a luz jamais tocava — e ali, onde só trevas reinavam, ele sentiu o gosto do desprezo.

    — Eu odeio isso! — murmurou entre os dentes, com fúria.

    E, sem hesitar, desapareceu em um portal.

    ÚLTIMO CAPÍTULO ESCRITO AQUI!

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (1 votos)

    Nota