Capítulo 37 - O túnel em Sangai
— Yelena Alekseeva, Daniel Lopez… são nossos alvos!
Determinou Mael, enquanto caminhava junto de seu irmão em meio à floresta que ficava após o litoral. As folhas dos arbustos e das copas murchavam ao seu redor e caíam sob seus pés; o breu parecia acompanhá-los em meio ao entardecer.
Suas vestes agitavam até os galhos, criando uma estranha corrente de ar que poderia intrigar qualquer observador. Sorte que estavam sozinhos… até então.
— E Asmael disse o porquê de serem esses dois? Quer dizer… havia vários alvos, não? — manifestou-se de forma menos sutil, chutando pedras em seu caminho e espantando os pequenos animais.
Embora não o vissem, sentiam sua presença maligna.
Até as aves procuravam escapar daquela região, interrompendo seus voos e recuando precipitadamente dos céus.
— Não! — ela esbravejou, cruzando os braços com força — Ele apenas diz que, eliminando ambos, garantimos que Luciel faça a próxima jogada. Mas qual será? Os dois parecem que não confiam na gente. Me sinto a amiguinha excluída! Não sente isso também?
— Óbvio que sim — resmungou, esfregando a nuca como quem tenta afastar o desconforto — Mas… Bem, eles devem estar assim devido ao imbecil do Bezeel e ao maldito do Azaael. Ambos os traíram, e eram os mais próximos… Eram praticamente irmãos, né? Em outras palavras, não há muita confiança entre nós, não dá pra culpar eles, não acha!?
Disse isso, mas nem ele parecia convencido. Seus olhos desviaram para o chão por um breve instante, carregando um traço de culpa ou talvez frustração. Ele sabia que aquela aliança era frágil como vidro trincado – bastava um passo em falso para tudo desmoronar.
— É… Merda! E deve ser por isso que ele nos mandou tão já. Três dias até iniciarmos os planos, até lá, temos que ficar de tocaia! — reclamou, revirando os olhos — Ah, que preguiça! Por que não perdemos um tempo naquele, hmmm… bar do Beel, hein?
Colocou as mãos para trás da cabeça.
— Bar do Beel? Tá maluco? Outro traidor? — Levantou uma sobrancelha, indignado, mas não totalmente surpreso. A ideia era absurda, mas não inesperada.
— Ué, mas o que ele vai fazer? Nem demônio é mais! Tá mais pra garçom…
— Isso é o que mais me preocupa… É sempre quando parecem inofensivos que fazem a pior jogada. Você tá bem inocente, Mael…
Os olhos de ambos se cruzaram.
— Só vamos beber uma… água-ardente? — sugeriu com um brilho malicioso nos olhos, como se fosse a coisa mais inofensiva do mundo — Sabe? Falei certo, né?
— Tá… mas… aguardente? Não vamos beber isso, seu idiota! Será algo bem melhor: um vinho! E de preferência, que seja bem caro!
— Claro, Vossa Excelência!
Entre provocações e risos abafados, finalmente alcançaram o fim da trilha que serpenteava por entre as árvores densas e retorcidas da floresta.
A mata se abria em um corte abrupto que dava lugar ao asfalto, um contraste violento entre o mundo espectral que habitavam e a normalidade banal dos vivos. A rodovia Doko se estendia à frente deles, asfaltada e movimentada, com carros que zuniam em alta velocidade, indo e vindo sem cessar.
Uma placa enferrujada, meio coberta por musgo e pichações, indicava: RODOVIA DOKO – 78km até Saisho (capital) – com setas mal desenhadas apontando para leste e oeste. Um mapa esmaecido mostrava a conexão com a cidade-estado vizinha de Chūgoku, embora a tinta já estivesse quase sumida.
Mael parou à beira da estrada, observando os veículos passarem por ele como vultos de luz e som. Cada carro que atravessava seu corpo produzia um leve distúrbio no ar, como uma ondulação invisível, mas nenhum fazia contato.
Leviel vinha logo atrás.
— Seja como for… teremos que evitar os malditos exorcistas até esse tal dia. Como faremos?
— Possuindo! Há bilhões de humanos incapazes de utilizar sua aura. Nesses três dias, vamos passar nos disfarçando de humanos — com um sorriso maquiavélico surge em seu rosto, ele mais que ninguém sabia como se meter entre os vivos — Vou beber bastante vinho, esbanjar o ouro do mortal azarado que eu achar. Enfim, vou me divertir bastante. Não sei você!
— Para você é fácil, ganância… Já eu, enfim, o que farei? Irei ficar pescando peixes por todo o tempo? Antes com a boca, agora, com… uma vara?
— Isso, vá pescar inveja. Assim, você se acalma um pouco dessa ansiedade!
— Engraçadinho…
Quando responde, um pouco irritado, o demônio ergue o olhar para o céu, fixando-se na troca sutil das luzes no horizonte. Nox sobe lentamente aos céus, sua presença dominando o firmamento, enquanto Aurora recua, como se fosse ficando translúcida, cedendo espaço à que está atrás, que avança devagar, reivindicando seu lugar.
A troca das divindades.
E… exatamente essa mesma visão alcança Yamasaki, que está encostado no capô do seu carro, imóvel no meio da passagem que divide os trilhos de uma rua que cruza a cidade. A noite finalmente tomou conta do céu acima da entrada do túnel da estação de trem em Sangai. Seu olhar carregava uma frustração – já esperava ali há mais de uma hora, e nenhum dos dois havia chegado ainda.
— Onde estão eles… — murmurou, chutando a roda do carro com o calcanhar e, logo em seguida, desferindo um soco contra a porta.
O impacto foi forte, quase amassando o metal, mas ele não estava nervoso o suficiente para causar dano de verdade; era mais frustração do que raiva.
— Hihi…
Ecoou de trás dele.
— Am…
Um som inesperado que quase o fez pular. De repente, se virou
— Eu estou aqui, oh, Yamasaki! — Amai surgiu de repente.
Ela usava um casaco preto que descia até os joelhos, dividido na cintura como uma saia, esvoaçando levemente com o vento frio. Ele não pôde deixar de notar suas pernas nuas expostas ao frio.
— Não sente frio nas pernas? — Perguntou meio descarado, levantando o olhar para encarar os olhos dela.
— Por quê? — respondeu ela, com um sorriso meio convencido no rosto, esperando que ele dissesse algo, mas logo percebeu, meio sem jeito, que talvez ele tivesse olhado um pouco demais.
— Nada… Bem, por que demorou, hein? Você e o carinha lá de terno disseram que iam chegar há mais de uma hora!
— Ah, eu… — Fez um gesto nervoso, jogando o cabelo para trás — é que esqueci que meu carro estava na oficina. Tive que vir de táxi, e foi um saco encontrar um número decente; não passa nada na frente da sede do meu clã!
Olhou ao redor, notando que ali só estavam eles dois – mais ninguém.
— E o outro? Não chegou?
— Ah, era isso… Poderia… — Começou, mas parou ao notar novamente como ela estava impecável, cada detalhe de sua aparência refletindo a vaidade, das unhas pintadas aos cabelos perfeitamente escovados — Esquece… não, como pode ver…
Ela parecia pronta para uma festa a cada missão, sempre impecável.
A agitação lembrava a de um adolescente ansioso para beber até cair pela primeira vez.
— Bem, se o Arthur não chegou… hm… — Desviou o olhar para o túnel, onde a escuridão era espessa demais para enxergar o outro lado, dando as costas para o rapaz — Melhor, se ele demorar mais dez minutinhos, entramos sozinhos, tá bom?
— Certo!
— Ótimo…
Ela estreitou os olhos, olhando fixamente para a escuridão.
— …Que profundo. Deve ter algo poderoso lá, não acha!? — comentou, sem desviar o olhar daquele breu.
— Deve ter nada…
Até que a voz do rapaz quebrou o silêncio.
— Nada? — Arqueou uma sobrancelha, incrédula — Você nem deve ter lido a história, né? Dizem que mais de cem pessoas se suicidam aí todo ano. Muitos são homens, frustrados com a vida, deixando filhos e esposas para trás. Trágico demais para não ter nada, não?
— É…
— Quando algo tão forte assim ocorre, deixa uma marca, uma mancha negra que a alma abandona ao ascender. Mas pense… — ela virou o rosto para ele, séria — inúmeras dessas? Se não for uma calamidade habitando aí, eu nem consigo imaginar o que seria. — Encostou-se casualmente ao carro.
Era o momento de puxar uma conversa mais calma, mais humana. Já tinham esperado demais – e talvez, só talvez, fosse bom se ouvirem de verdade.
— Nem sempre energia negra ganha consciência… Pode ser só… um aglomerado. Um estoque esquecido de sofrimento. Um poço de ecos.
— Você, mais que ninguém, sabe disso, não é? Exorcista impuro! — disse, enrolando uma mecha do cabelo entre os dedos com um sorrisinho provocador.
Aquele maldito sorriso.
— Ah, é… eu entendo um pouco mais, mas nada que me faça um gênio — dando de ombros — Sei que ela flui conforme os pensamentos que a geraram. Provavelmente seja um acúmulo, já que foram muitos atos… não dá pra unificar tudo isso numa só mente.
— Uau, até parece alguém dedicado falando assim. Nada do preguiçoso que me falaram!
— Me chamaram de…
Mas antes que ele respondesse, ambos ouviram passos apressados e uma respiração ofegante se aproximando.
Arthur surgiu pelo do outro lado, onde iniciava o túnel para quem vinha, suado como se tivesse corrido uma maratona. Ofegante, com o rosto corado e os cabelos desgrenhados, carregava os sapatos de couro nas mãos, completamente descalço.
— Foi mal, gente… — murmurou, soltando um longo suspiro enquanto tentava recuperar o fôlego.
Mas shirasaki já foi cruzando os braços, lançando um olhar que sua misturava impaciência e seu julgamento.
— Foi péssimo, mocinho! — Com teatralidade, antes de rir da própria encenação.
— Palhaça…
O azedinho quase deu meia-volta com aquelas atitudes.
Era chato. Sempre foi. E, pelo jeito, não mudaria tão cedo.
O clima só não pesou porque… bem…
— Quase… me caguei! — soltou Arthur, sem pensar duas vezes.
Todos caíram na risada.
Naquele instante, ninguém se importou de verdade com o atraso. O estado deplorável dele, suado, descalço, com os sapatos na mão, já dizia o suficiente: tinha atravessado a cidade inteira a pé só pra estar ali.
E, no fim das contas, isso bastava.
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