Capítulo 38 - Alucinação
— Você não tem carro? — perguntou Yamasaki, de mãos nos bolsos — Só pode ser piada.
Tirou do sobretudo o mesmo pacote de balas amassado de antes, jogou a última para o alto e a pegou com a boca, como se fosse um truque que repetia desde criança.
O sabor fresco da menta cortou o amargor que crescia dentro de si.
Não era o escuro ao redor que o incomodava. Era o outro.
O de dentro.
— Não… Bem, como eu não aceito missões pagas, nunca sobra dinheiro pra luxos assim… — respondeu, coçando a nuca, visivelmente constrangido — É, posso estar sendo meio otário, mas…
— Meio?
— Caramba… você leva mesmo a sério essa causa — comentou a ruiva, cortando o parceiro sem a menor delicadeza, olhando de lado.
É. Yami não teve os pais por muito tempo pra ensinar boas maneiras… bad.
Mas… havia algo no tom dela.
Algo que até ele percebeu.
Quente demais pra ser só curiosidade.
Os olhos focavam no azedinho… como sempre.
Dava mordidas no pulso e sorria do nada, como se tentasse conter algo que escapava mesmo assim.
Ela tá tão na dele…
Apenas deu de ombros. Em silêncio, começou a andar, os olhos já cravados no túnel que se estendia à frente. De súbito, franziu o nariz.
— Tsk… minha rinite… deve ter um caminhão de pó nessa droga — murmurou, fungando — Mas é isso aí… precisa de determinação pra ser um herói, né?
— Ou seja, você é um fudido!
É… não ia ser fácil lidar com Chatosaki.
Ela parou. Lançou um olhar seco por cima do ombro, daquele tipo que adestra cachorro com silêncio.
— YAMASAKI! — ralhou, envergonhada, cobrindo o rosto com a mão.
Mas o loiro observava a cena com um sorriso torto. Não via mal nenhum naquilo.
— Ah, é… isso mesmo. Mas enfim — retomou, ajeitando a postura — Se vocês não se importam com meus atrasos, então eu também não vou me importar com os jeitos de vocês, sabe? Só quero estar num grupo que me entenda… ou, pelo menos, que seja compreensivo. Vocês são, né?
— E-er… claro!
— Foda…
Ela deu uma cotovelada leve no ombro do parceiro, como quem dissesse: “vai, responde direito!”
— É, cara… tranquilo! — disse, meio sem jeito, quase levantando a mão num joinha murcho.
— Hehe… — ela riu, sem nem fingir arrependimento.
Seria um ciclo natural, um irritar o outro.
Maldita…
Até pensou, encarando-a como um assassino.
E então, sem aviso, o heroico exorcista assobiou.
Mas o som…
Não ecoou.
Nada.
Como se o ar ali estivesse morto.
O vento agitava as folhas, a poeira dançava no chão… mas nenhum ruído os acompanhava.
Era como gritar no vácuo.
— Tem algo aí…
— Aterrorização — resmungou ela.
Era óbvio para os três: em um domínio de caça, a realidade se dividia.
De um lado, o mundo lúcido, concreto, estático. Do outro, a zona de aparições onde o som era a única bússola confiável, revelando os contornos do sobrenatural.
— A entidade ainda está em estado limitado — continuou, tomando a frente com ares de liderança — Isso quer dizer que vai ser uma missão bem tranquila, não é, rapazes?
Deu alguns passos decididos à frente, erguendo a mão até a altura do peito, como se abençoasse o próprio caminho.
— Espera aí! — Yami a cortou derrepente — Não acha estranho?
O clima mudou.
— É uma aterrorização… mas não houve nenhum acidente nos últimos meses. Pelo nível de distorção… e essa sensação no ar… Esse lugar devia estar tomado por manifestações. Ou pior: abrigando uma entidade única. Alto grau. Algo bem poderoso.
Silêncio.
E não é que… sabia do que estava falando?
Não era o exorcista poser que todos achavam. Tinha olho. Intuição. Experiência, talvez ou apenas um instinto afiado demais pra ser ignorado.
— Verdade, cara… — murmurou Arthur, quase sem pensar.
Até ele ficou impressionado.
— Faz sentido, né? — continuou, firme, desbravando a discordância — Normalmente, uma entidade aterrorizante não passa mais que uma semana sem cometer suas atrocidades. É da natureza dela. Precisa se manifestar pra existir.
Se não… é só um fantasma.
A aura dela foi a primeira a se erguer – súbita, controlada, quase ensaiada.
Um reflexo do que foi ensinada a ser: liderança antes de qualquer dúvida.
— Sim, eu considerei isso — disse, virando-se para ele — Mas… a gente precisa de certeza. Não dá pra ficar debatendo o que é ou não é, fofos.
Sua inconsequência soava como razão.
Os dois se entreolharam, meio emburrados, a tensão ainda pulsando, enquanto a jovem avançava mais um passo e sacava a lâmina num movimento limpo e rápido.
— Expando potentiam: facit ut gladium gerere possim, qui uno ictu exorcizare valeat.
A frase escapou dos lábios com urgência, como se quisesse calar os questionamentos com a própria ação.
— É, pode ser ou não… mas gostei de você, Shirasaki! — disse o loiro, batendo o punho contra a palma aberta da outra mão.
Uma aura azul-marinho cresceu ao redor dele, pulsando em ondas firmes. Enchia o ar com aquela determinação juvenil…
…que quase convence até o silêncio.
Mas então…
— Atchim!
O espirro cortou o clima como uma faca.
A garota não conteve o riso, dessa vez, verdadeiro. Sincero.
— Hm… — resmungou o azedo, observando o espetáculo. Sua aura ainda contida, quase entediada — Vocês dois se animam com tão pouco…
Mas antes que terminasse a frase, os dois já haviam saltado para dentro do túnel, engolidos pela adrenalina e pela penumbra.
E apenas suspirou. E, com a mesma calma de sempre, caminhou até a entrada. A escuridão o engoliu devagar.
Lá dentro, viu as costas dos dois.
Paralisados.
Silenciosos.
Sem dizer uma palavra, continuou andando até alcançá-los e pousou uma mão em cada ombro.
— O que estão fazendo aí? Viram uma assombração?
Mas a piada morreu na garganta.
Diante de seus olhos, o universo… se expandia.
Sem começo.
Sem meio.
Sem fim.
Ele estava no vácuo, pisando nas luzes do céu, como se as estrelas tivessem descido ao chão só para sustentá-lo.
E à sua frente… alguém batia palmas.
Cabelos vermelhos como brasas.
Luvas brancas, impecáveis.
Um terno de elegância quase insultante.
E chifres. Chifres reluzentes como os dentes afiados que brilhavam quando sorria.
— Eu estava à sua espera, Yamasaki Yami… e também do meu bom e velho irmão, Azaael — disse, caminhando em sua direção.
O jovem até tentou recuar, mas seus pés pareciam presos em uma calma irreal.
Ainda assim, seu olhar era duro tentando se manter indiferente.
Asmael ergueu a mão.
Seus olhos… giravam.
Como espirais.
Um breu denso e ao mesmo tempo acolhedor.
Como cair dentro de uma memória esquecida.
— Quem é você? Que merda tá acontecendo?
Nenhuma resposta.
Os dois ao seu lado ainda estavam imóveis, congelados no tempo.
E então…
Tudo tremeu.
A figura à sua frente oscilou como uma ilusão mal projetada.
O chão perdeu o sentido.
Pisou no nada e caiu.
Direto sobre os trilhos.
— Responda!!! — berrou, no exato instante em que a realidade voltou.
O som ecoou pelo túnel. E arfava no chão frio, os olhos arregalados.
— O que tá havendo?! — Amai correu até ele, estendendo a mão.
Voltaram ao túnel escuro e úmido – agora com ruídos normais demais para confortar. Ratos, insetos, e o gotejar persistente da água em alguma fresta.
O loiro os observava de longe, com as mãos na cintura, como se já estivesse quase no fim da passagem.
— Não achamos nada! Aff… — bufou — Quanto mais andamos, mais a energia se dissipa. Isso aqui parece mais um mecanismo do que uma entidade em si…
— Um túnel… energia negativa… nada faz sentido! — explodiu a jovem, erguendo-o com força — Um mecanismo? Pra quê?!
Ela bateu os pés, irritada.
A frustração transbordava.
— Então… não tem como exorcizar? — perguntou ele, ainda meio perdido, limpando a poeira das roupas.
A mente zonza.
O corpo frio.
Ele não fazia ideia do que acabara de acontecer.
Só sabia que… algo o puxou para fora. E depois o jogou de volta.
— Teria se não tivesse recuado! — ela resmungou, já começando a andar — Bah… isso me broxou demais! Vamos logo.
— Que decepcionante! — completou Arthur, lançando um olhar enviesado para o parceiro. Aproximou-se e segurou pelos ombros do rapaz — Viu uma assombração, foi?
Irônico até demais.
— Quê? Hã… eu só… tava esperando mais, sei lá… — respondeu, desconversando. Com um giro de ombros, soltou-se do toque e seguiu em frente, alcançando a sua “líder”, que já praticamente saía do outro lado do túnel.
— Entendi…
Contorceu o nariz, tentando segurar mais um espirro e então os acompanhou com passos arrastados.
Foi só o começo.
O primeiro sussurro de que algo grandioso e terrível, se aproximava.
Depois daquele dia, Yami passaria horas se perguntando sobre aquela visão.
E o mais novo integrante entenderia, com clareza, o que tirava Amai do sério.
O desconhecido.
O fracasso.
Não saber…
E não resolver.
Eram duas afrontas diretas à sua natureza de prodígio, por mais inabalável que parecesse ser.
Aquela noite chegava ao fim.
Finalmente.
Toc! Toc!
A porta de um velho trailer se abriu, rangendo, no meio do terreno baldio de um parque de diversões abandonado.
Kazuki Tanaka.
De fora, estavam Milk e Kwawe, ambos exaustos, derrotados, após mais um dia fracassado tentando recrutar crentes para o culto. Quando a porta se abriu, respiraram fundo, aliviados.
Mas não era bem quem esperavam.
Um homem de meia-idade, com olheiras fundas e um sobretudo marrom desbotado.
Exalava cansaço.
Físico e moral.
— Que diabos vocês querem comigo? — grunhiu, batendo a mão no rosto antes de soltar um arroto — Tenho que trabalhar amanhã, porra…
— Você é Antônio de Almeida? O simpatizante dos Iluminados? — perguntou Kwawe, direto ao ponto.
O homem franziu a testa.
— Ah, agora aparecem?! Esperei vocês a tarde inteira ontem! Aquele filho da puta do meu patrão ainda descontou meu almoço!
Resmungando, atravessou a cozinha do trailer, onde garrafas vazias, restos de lanches e embalagens de delivery se acumulavam, e se jogou na cama desarrumada.
— Entrem logo, cacete!
Os dois se entreolharam, incrédulos.
Mas obedeceram.
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