Capítulo 39 - Revisitando o conhecimento
— Sério, esse plano de vocês é hilário, pra caralho! — diz o velho Antônio, encarando os dois enquanto degusta sua vodca direto da garrafa, marcada com o rótulo Esplendor do Douro Vodka, de sua terra natal. Bebe como se fosse água, dando goladas entre as falas — Mas estou precisando disso… de algo imbecil. Faz tempo que nada me cativa! — reclama.
— Entendo… então isso seria um sim? — diz Milk, entediado, naquele ambiente que fedía a álcool e mijo. Típico de um bêbado solitário. Kwawe, por sua vez, esperava escorado no armário, se espremendo pra caber ali.
— É… é um sim! Na ordem, eu fazia o mesmo que faço lá no bar: trabalhava, trabalhava… Um ciclo fodido! — afirma, e suspira fundo, caindo de braços abertos sobre a cama. O álcool escorre da garrafa, molhando o colchão — Quero foder um pouco esse mundo! — Como quem entrega um manifesto cansado.
Uma risada amarga se escondia sob a máscara que usava. Talvez não pertencesse àquilo, mas oportunidades não escolhem quem as agarra.
— Ótimo… — disse, se levantando, aliviado ao perceber que Antônio já desmaiava, iniciando um ronco pesado de exaustão — Kwawe… amanhã teremos mais dois pra recrutar. Espero que estejam mais aptos ao diálogo… ou, pelo menos, que não estejam caindo aos frangalhos.
— V-verdade. Tomara que tenha uma bonitinha…
— Tá pensando em mulher essas horas?
— Ehr, não! Nada disso… com isso, o chefe vai ficar aliviado, não? Mais representatividade feminina… — resmungou, tossindo uma, duas vezes — E me lembra, por favor, de nunca mais exagerar na cerveja… — reclamou, com a voz arranhada, como quem já sabia que falharia de novo.
— Melhor exagerar na bebida e ficar rouco do que acabar naquele estado. Enfim… vamos?
Um único aceno do grandalhão. Sério, firme.
— É… ainda tô lúcido, ao menos…
— É disso que eu tô falando!
Bateu no peito dele, com orgulho.
E então, os dois seguiram para fora, cruzando o parque, atravessando a trilha da mata escura, até alcançarem a estrada, onde a van os aguardava.
Dali, seguiram caminho de volta, enquanto Yamasaki e sua admiradora deixavam Arthur em casa.
Ele desceu num bairro residencial simples, no distrito de Hiragana. Um complexo de apartamentos comuns. Do tipo que qualquer um consegue pagar, até com o pior emprego do mundo.
É… a situação do nosso loirinho não era das melhores. Irônico, pra alguém com uma aparência tão elitista.
— Valeu, gente! — disse, animado, acenando antes de desaparecer escada acima.
Simpatia era o seu charme.
Deixando-os a sós.
— Ele é legal, vai? — comentou, percebendo que seu café sem açúcar continuava alheio à realidade — Yami? — chamou de novo, virando o rosto na direção dele.
— Ah… fala — respondeu, ainda vendo os fios vermelhos que haviam cruzado sua visão. Aquele odor, aquela sensação na pele… Piscar não bastava.
Fechou os olhos por um instante.
E então os abriu.
— O que você tinha dito mesmo?
Percebeu o olhar dela. Descontente.
— Você tá estranho. O que foi, hein? Aconteceu alguma coisa? — resmungou, curiosa demais pra segurar as perguntas.
— Eu? Ah… não sei…
— Qual é… só quero ajudar. Não vou te zoar se viu o Gasparzinho, vai! — disse, meio maldosa, sem perder a chance de cutucar. Então o olhou, esperando que dissesse algo.
— Há, há… — Com um sorriso seco. — Eu só tive um déjà-vu Sei lá… uma alucinação. Acho que foi porque não estava com o crucifixo… — completou, tentando acalmar a ansiedade visível nos olhos dela.
— E o que você viu?
Hesitou. Só por um segundo.
— Um demônio. Cabelos vermelhos. Ele me cumprimentou e… Então, um baque. E eu tava aqui de novo. Vendo você me estender a mão.
Desabafou, enfim.
— Parece uma alucinação sobrenatural… mas por quê? Como? Não havia entidades lá. Você comeu alguma coisa hoje, Yamasaki? — perguntou, desconfiada.
Então, colocou as mãos sobre os ombros dele, arrastando-o suavemente até seu peito.
Com a mão livre, deslizou os dedos pela corrente prateada, até alcançar o crucifixo. Então, o puxou com cuidado.
— Aqui! — Entregando nas mãos dele.
— Seu crucifixo? Não vai precisar? — murmurou, surpreso, sentindo a mão dela sobre a sua, carinhosa, enquanto encaixava o objeto entre seus dedos — Que foi…? — reclamou, num fiapo de voz.
— Tenho outros. A cada promoção, meu pai me dava um. Ele é meio coruja, sabe… — Sorrindo com doçura, o olhar distante. Encarava um poste solitário no meio da escuridão, onde vaga-lumes se reuniam ao redor da luz.
— Que coruja, hein… — Meio sem jeito — Bem, enfim… eu vou aceitar, então. Melhor do que receber outra bronca daquela velha. Já seria a segunda esse ano…
Colocou o crucifixo no pescoço, quase aliviado.
— Ela não cansa… típica velha com PhD em dar bronca em jovem — completou, suspirando — Já deviam ter a aposentado.
— Caramba… acho que até hoje só desgastei um crucifixo. Talvez você esteja liberando energia de um jeito nada refinado… — comentou, observando a feição dele com atenção. Quando o viu suspirar, teve certeza — É isso mesmo, Yamasaki?
Ela então pegou o braço dele com as duas mãos, cheia de si, como se tivesse acabado de desvendar um mistério.
— Talvez… Eu nunca entendi esse negócio de refinar energia espiritual. Não entra na minha cabeça! — resmungou, frustrado.
— Não? Não acredito! O exorcista de grau cinco, não sabe como fluir bem a própria energia? Há! Há! Cômico! — provocou, fitando-o de lado, depois de girar o corpo para frente com um entusiasmo quase teatral — Quer que eu te ensine?
— Você não fala… você humilha — respondeu, sorrindo com incredulidade — Vai lá… fala, gênio. Prodígio da geração! — completou, no mesmo tom ácido.
— Certo, certo… — Revirando os olhos com um sorriso. Então, como se fosse parte de um ritual, puxou um par de óculos da bolsa e os colocou.
A cena já beirava o inacreditável.
— Imagine sua energia espiritual como água.
— Água? — Franziu a testa, cético — Sério, Amai?
— Sim. Água. Pense na sua energia fluindo dentro de você como a corrente de um rio. Quando a água flui de forma controlada, ela segue um caminho definido e chega ao destino sem desperdício. Do mesmo jeito, sua energia espiritual precisa fluir com direção e não jorrar por aí feito mangueira furada.
Ela falava enquanto gesticulava no ar, como se desenhasse o curso do rio com as mãos, traçando curvas imaginárias com precisão, quase poética.
E ele? Bufou, ainda incrédulo.
— Então agora eu sou um rio? Tá de brincadeira!?
— Tô tentando ajudar. Ou prefere continuar desperdiçando sua energia como um encanamento furado? — retrucou, já irritada com a implicância.
Ele cruzou os braços, ainda desconfiado.
Mas a curiosidade venceu.
— Tá… vá lá. Continua.
— Pense num encanamento com vazamentos. Ele desperdiça água, certo?
Ela fez um gesto com as mãos, como se a água escorresse pelos dedos invisíveis.
— O mesmo acontece com sua energia espiritual. Se você perde o controle emocional ou não mantém o foco, você desperdiça energia. É como se sua energia tivesse furos e ela vazasse por onde você menos espera.
— Faz sentido… mais ou menos. Mas continua — Tentando não parecer interessado.
— Outra coisa importante é a purificação e o refinamento. Pense na água de uma nascente pura. Ela precisa ser mantida livre de poluentes pra ser saudável e útil, certo? Sua energia espiritual funciona do mesmo jeito. Ela também precisa ser purificada e refinada. Práticas como meditação, controle da respiração… manter o humor positivo, tudo isso ajuda a limpar e melhorar o fluxo da sua energia. E permite que ela circule de forma mais eficaz, sem causar desgaste ou colapsos.
— Purificar e refinar… — repetiu, com uma expressão meio cínica — Tá. E eu faço isso como, exatamente?
— Meditação. Respiração controlada. Manter-se positivo… — ignorando o sarcasmo.
— Hm. Tô perguntando como eu vou fazer essas coisas…
— Tentativa e erro… não?
— Aff…
— E tem mais. Assim como a água pode ser armazenada em reservatórios para ser usada quando necessário… Sua energia espiritual também pode ser acumulada. Essas mesmas práticas de meditação, respiração, foco – ajudam você a guardar energia. E, mais importante: a liberar com precisão. Na hora certa. Quando realmente precisar.
— Então vou ser um tanque de água agora? — Finalmente tinha entendido aquele conceito que foi ensinado ainda no primeiro ano da academia… e que ele ignorou, como uns 80% das aulas.
— Se quiser pensar assim… sim. E não esquece da adaptabilidade e da flexibilidade. A água se molda. Ela muda de forma conforme o recipiente, o ambiente, a pressão. Sua energia espiritual precisa fazer o mesmo. Praticar o controle da respiração, manter a calma. Tudo isso te ajuda a ser mais resiliente. Ajustar o fluxo conforme a situação. Não resistir… mas fluir.
Ele a encarou por um momento, ainda tentando manter a pose de cético.
— Vai… tenta. O que você tem a perder? — Segurando o olhar dele com firmeza, mas sem rigidez.
Apenas… certeza.
— Tá bom, vou tentar. Mas se isso não funcionar… vou te zoar pelo resto da vida, tá?
— Combinado — Ela sorriu, satisfeita.
Tirou os óculos, prendeu a risada piscando para ele.
E seguiram, sem pressa, rumo à sede do clã Shirasaki. A noite, enfim, os deixava em paz.

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