Capítulo 4 - Selvagem
“O que usamos é apenas o que somos.
E eu sou…
detestavelmente ciente disso.
— Yami Yamasaki
✧ ✞ ✧
Ele as lançou em diagonal, erguendo os braços de baixo para cima, enquanto as chamas cresciam, cortando o ar e devorando tudo à frente. O calor intenso envolvia-lhe o rosto, e as brasas — vivas, vorazes — dissipavam a escuridão com sua dança ardente.
Queimar carne morta?
Diante da visão impressionante daquele que domava a própria natureza com as mãos, até as sombras que envolviam a entidade recuaram, despindo-a em tormento perante a iminência do feitiço.
Queimar…
E então, inevitável, a erupção irrompeu: um tornado implacável de fogo que o atingiu sem chance de desvio, incendiando-o sem trégua. Cada centelha vibrava e ardia, dançando freneticamente ao redor de sua vítima.
Como uma bruxa à mercê de seus pecados.
À medida que as labaredas se espalhavam de forma apoteótica, o calor que devorava sua pele revelava a magnitude do confronto.
Contra o ser prematuro estava… um dos maiores prodígios.
Ghhhhaaaarrgh…
O ambiente resplandecia. A luz penetrava os cantos mais ocultos, projetando sombras dançantes sobre as paredes, onde se estampavam as expressões contorcidas
Ghhhhaarr!
Sob o crepitar incessante, o contorno do corpo do demônio se obscurecia ainda mais, enquanto seus olhos perdiam nitidez, engolidos pelo calor avassalador, equiparável à lava de um vulcão.
— Está quente, não é? — brincou, com um sorriso que oscilava entre confiança e cinismo.
Apesar da calma encenada, as sobrancelhas se arquearam, traindo o desconforto diante daquilo que se recusava a terminar.
A besta demoníaca já deveria ter caído… mas não caía.
Sob o olhar do exorcista, ela permanecia de pé, inabalável.
As chamas ao redor, famintas por carne e ossos, apenas intensificavam o espetáculo horrendo.
O corpo da criatura se contorcia em fúria, e de suas feridas jorrava um sangue púrpura e ácido, cada gota queimando o solo em estalos, espalhando um cheiro acre de destruição aos pés do vagante espiritual.
Ainda assim, não recuou, mesmo quando o piso derretia sob seus sapatos, dissolvendo-se em uma névoa corrosiva.
Os gritos, antes moldados pela dor lancinante das chamas, transformaram-se em um brado de ódio puro.
O som reverberava em ondas sônicas que enfraqueciam as garras ferventes do fogo, fazendo tudo ao redor estremecer. Sua carne carbonizada exalava um odor acre, e, desafiando o inferno ardente, parecia prevalecer sobre as brasas inclementes.
A escuridão, como uma entidade viva, respondeu ao chamado de sua fúria. Densa, implacável, emergiu e se fechou ao seu redor. Com um movimento, rasgou caminho entre as garras calorosas que o aprisionavam, afastando-as.
No embate entre a decadência das chamas e a astúcia da sombra, desenhava-se uma dança caótica e aterradora, a cada instante ecoava o triunfo da escuridão sobre o fogo.
Superou minhas chamas mesmo sendo tão… Fraco!?
Num salto audacioso, a entidade lançou-se contra ele. O impacto ressoou em um estrondo que fez o ambiente inteiro vibrar, enquanto uma cortina espessa de poeira se erguia, ocultando tudo em seu véu sufocante.
Mas, em uma velocidade impossível de ser seguida, já havia escapado, tão rápido que a besta só percebeu sua ausência quando a poeira, enfim, se dissipou.
O que restava era apenas a destruição: paredes prestes a ceder, pilares trincados como ossos fraturados, e a entrada reduzida a um amontoado de entulho e lascas de madeira soterradas sob a cratera deixada pelo golpe.
Em meio ao tumulto, já estava atrás dele.
Ironizando a cena com palmas lentas. Seus olhos estreitaram-se em frieza, e um suspiro carregado de tédio escapou-lhe dos lábios.
— Belo golpe… mas errou. E isso, para você, será fatal! — Com um sorriso ácido que cortava-o como lâmina, lançou esse seu gracejo final à criatura.
Interrompendo o gesto teatral, ergueu o braço direito e, com os dedos em forma de pistola, concentrou no indicador uma esfera cortante de vento.
Diferente do feitiço anterior, aquilo não era mera liberação de energia: era manipulação pura.
Canalizava o ar, deixando que a energia de seu espírito fluísse pela conexão astral-elemental que unia o mundo, seus conceitos e suas criaturas.
A sinergia se revelava numa dança etérea com a própria natureza, como se cada movimento estivesse inscrito no destino desde o princípio dos tempos.
Essa harmonia energética culminava em um feitiço tão poderoso quanto econômico, pois não dependia de transmutação, apenas da liberação precisa da energia acumulada.
Seus olhos ardiam com a mesma intensidade das brasas que conjurara antes, brasas que agora consumiam o cenário às suas costas, transformando tudo em uma pintura caótica de fogo e destruição.
O espetáculo fez o prédio estremecer. Paredes se cobriram de poeira, corredores se encheram de fumaça, e o ambiente tornou-se um caos visual e sensorial, como se o próprio mundo se rasgasse sob a pressão do feitiço.
No primeiro andar, as pilastras que sustentavam o edifício estremeceram. Rachaduras serpentearam pelo concreto, como o leito de um rio recém-nascido, enquanto a própria arquitetura parecia se contorcer em agonia, despedaçada pela força do impacto.
Os únicos presentes, além dos combatentes, precipitaram-se para fora das salas, buscando desesperadamente segurança em meio ao tumulto.
O diretor e seus funcionários cambaleavam pelo corredor, engolidos pela fumaça que avançava sem piedade, sentindo a pressão do caos cerrar-se sobre eles como o abraço frio da morte.
Enquanto a batalha prosseguia no andar inferior, cada golpe da entidade fazia o prédio estremecer, como se a qualquer momento toda a estrutura fosse sucumbir à força devastadora do ser sobrenatural.
Mas o prodígio não ficava para trás. Respondia com agilidade incomparável, desviando das tentativas brutais de esmagamento sem sequer perder o fôlego. Cada investida que rompia o ar ou despedaçava o chão liberava ondas de choque.
Nenhuma ousava sequer tocar-lhe as vestes.
Então, a vidraça do teto cedeu. Os estilhaços despencaram em meio ao combate, e em cada fragmento refletia-se o olhar dos dois oponentes, multiplicando sua fúria em miríades de brilhos cortantes.
Eternizados em vidro, mas efêmeros ao tempo.
Por causa das promessas feitas ao rival dos poetas, permanecia inabalável, decidido a não ser surpreendido.
Com o mesmo mudra firme em sua mão, absorvia cada vez mais a ventania que o circundava, comprimindo-a em um vórtice invisível. Nas suas mãos, a energia não era apenas força: era fio e tecido, moldada como se fosse o próprio mestre de sua trama.
Um feitiço como esse será suficiente…
Do outro lado, a pele da criatura regenerava-se lentamente das queimaduras; a cada tentativa falha de golpeá-lo, parecia que a própria natureza do demônio se adaptava à dor, tornando-o ainda mais implacável.
Qualquer um se espantaria.
Ele, porém, foi tomado por uma estranha empolgação. A ideia de explorar todas as possibilidades o incendiava por dentro, enquanto percebia, pouco a pouco, sua aura rubra colidindo contra a aura negra e abissal da entidade, duas forças opostas, dois princípios ancestrais disputando o direito de existir.
Assim é o ciclo do existir, um interminável matar apenas para seguir sendo.
Uniram-se em uma sinfonia uniforme, dançando em perfeita harmonia, colisão entre luz e escuridão, entre o físico e o espiritual. Naquele instante, trevas e energia tornaram-se indiscerníveis, fundindo-se tão intensamente que a linha entre ambas simplesmente desapareceu.
Esse instinto…
Uma ferocidade tomou sua mente, rompendo a monotonia gélida que o marcava. Sua enfermidade, antes um fardo, fundia-se agora à intensidade da aura, moldando um ser tão caótico quanto um demônio.
Perdia as amarras da razão. Tornava-se selvagem.
…Sou eu?
Interrompendo a sequência de golpes, tomou o controle da dança, movendo-se como um bailarino. Que com um deslizar para trás, ampliou a distância, sem desviar os olhos um instante sequer, atento a cada sinal.
Sou!
A entidade, consciente de que sua vida diminuía a cada segundo em que ele permanecia de pé, lançou-se para agarrá-lo em fúria. Mas escapou com um passo lateral, tão veloz como um relâmpago, fluindo como sombra.
Sou eu!
Ergueu o braço à altura da cabeça da criatura e observou as garras dela rasgarem o ar, espalhando trevas tão intensas que pareciam capazes de desmembrá-lo.
Não… você, não!
Sem dar-lhe mais chances, canalizou uma rajada de vento, pura energia espiritual fluindo como lâmina translúcida de sua aura. O movimento foi instantâneo: à queima-roupa, disparou uma esfera minúscula, comprimida e letal, que cruzou o espaço com a precisão de bisturi de cirurgia.
O projétil colidiu contra a cabeça da besta e, num único instante, despedaçou-a em fragmentos incontáveis. Uma explosão expansiva que irrompeu de dentro para fora, desintegrando-lhe o crânio com tamanha velocidade que nenhum olhar humano poderia acompanhar.
O sangue púrpura espirrou como cascata, banhando seu uniforme, enquanto o corpo da criatura cedia no mesmo instante, desintegrando-se como areia levada pelo vento.
No entanto suas vestes e pele permaneceram intactas. O sangue, incapaz de corromper aquilo que era protegido pela aura espiritual, não o atingia.
Não era você… sou eu.
Observou em silêncio enquanto o restante da besta se despedaçava sob seus pés, ficando nada além de uma ilusão partida pela força de seu feitiço.
A técnica, veloz o suficiente para ultrapassar inúmeras vezes a barreira do som, deixou em seu rastro um cone de condensação — marca indelével de sua capacidade de afetar fisicamente a matéria.
O feitiço distorceu o espaço ao redor, liberando ventos furiosos que, pouco a pouco, se dissiparam, apagando os últimos vestígios da energia descomunal que havia sido conjurada.
Retornava à natureza como uma anomalia… não em seu estado essencial.
O alívio o tomou por inteiro.
Permitiu que a mente se esvaziasse, ao menos daquele mal, deixando para trás a ansiedade corrosiva que o moldava como a fera de negro
O combate, enfim, havia chegado ao fim.
Aliviado pelo peso da luta, pôde finalmente contemplar o cenário devastado que deixara para trás.
Tudo havia se transformado em escombros; o que um dia fora a sala de ginástica agora era irreconhecível.
Paredes rachadas, piso despedaçado, vigas retorcidas… o edifício parecia ter se curvado em agonia à força do embate.
Cada fragmento de destroço era como um epitáfio mudo.
— Caramba… quanta adrenalina, pirralho!
Enfim, Azaael reapareceu.
Através dos olhos de seu hospedeiro, viu tudo: a batalha feroz, o impacto das vontades, e, por fim, a escuridão que antes se agarrava ao prédio desfazer-se em fragmentos, como vidro moído contra o nada.
Esses cacos de sombra caíram e desapareceram sem deixar rastro, como se jamais tivessem existido.
E no silêncio posterior, apenas o som do próprio respirar lhe provava que ainda estava ali.
O derradeiro resplandecer do horizonte, a noite já havia assumido o seu trono.
A luz que penetrava a escuridão revelou múltiplos focos ascendendo do solo aos céus, as vítimas da entidade, ou o que delas restava.
Fragmentos de almas, enfim, transformaram-se em brilhos que pontuaram o firmamento, libertos do tormento causado pelo mal. Era o último vestígio de vida que ainda persistia no mundo físico, mas que, ao final de sua jornada, também alcançaria o destino final.
Como as chamas de uma fogueira à mercê do tempo, sua aura lentamente se dissipou.
O calor que antes emanava de sua pele dava lugar ao frio, que novamente o envolvia.
O exorcismo estava concluído. Estava? A dúvida escapou, solene e genuína, de sua mente.

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