Capítulo 43 - O Último cavaleiro
Quando Milk enfim chegou ao seu destino, desceu do táxi.
Era uma zona residencial no bairro de Hiragana, a poucos minutos da Academia, onde Yamasaki havia cumprido sua última missão solo.
O lugar era composto apenas por casas, a maioria abandonadas, e situava-se na ponta do distrito.
Ao lado da estrada que separava as casas da floresta, havia um córrego há anos poluído, cuja água negra e estagnada exalava um cheiro de podridão que alcançava as narinas do jovem, já farto de incômodos.
Parecia que, naquele lugar, inúmeros sonhos eram mortos junto a seus portadores.
E talvez fosse realmente assim… afinal, em Aija, tantos já haviam morrido — em tantos momentos da história — que a morte tornara-se banal.
Que lugar…
Apressadamente, arrancou o papel do bolso, onde o número 43 estava anotado, e se dirigiu à casa menos deteriorada da rua. O número estava pintado ao lado da porta, alguns metros além da cerca alta, que lhe batia na cintura.
Abriu o portão de madeira, que rangeu de tão velho, e entrou no que deveria ser o quintal — mas tudo ali estava tomado por lama.
A terra, mesmo sob a Aurora forte daquele dia, parecia ainda úmida, e o cheiro era ainda mais insuportável.
Por sorte, havia pedras dispostas em linha, formando um caminho até a varanda e, consequentemente, à porta.
Ele seguiu por elas, e, ao chegar, bateu uma, duas vezes.
Soltou um suspiro logo em seguida. Estava sem paciência. Já havia passado por três lugares diferentes desde o encontro no praiano e até agora, nada. Apenas falsas pistas e perguntas sem resposta.
Não passou um minuto, e a porta se abriu.
O rapaz que surgiu tinha uma expressão vazia, quase sem esperança. Cabelos pretos curtos, vestia uma camisa social branca e uma calça preta.
Claramente havia acabado de chegar do trabalho.
— Jarves? — o perguntou.
— Ehr… eu mesmo. Por acaso, você é o rapaz que falou comigo por mensagem? — Sem jeito, os olhos inevitavelmente examinando-o.
— Isso. Bem, posso entrar? Aqui fora está frio… — respondeu, lançando um olhar ao interior da casa.
Era um lugar humilde; mal havia móveis, e os poucos que restavam estavam enferrujados e desbotados. O piso era batido, as paredes, rachadas pelo tempo, e o teto mofado pela umidade das chuvas.
— À vontade! Só… desculpa, eu não sabia que viria hoje, então não arrumei nada — Lhe dando as costas enquanto caminhava até o sofá.
Sentou-se e fez um gesto, abrindo espaço para que o visitante se sentasse também.
O lugar cheirava a mofo. Na televisão, ligada no canal um, passava a série semanal Em Busca do Fim, justamente na cena em que a protagonista, Meredith, descobria a traição de Faisal, seu noivo, e o eliminava de forma brutal.
A cena chamou a atenção de Milk por alguns instantes que então, desviou o olhar de volta ao rapaz no sofá.
— É uma série boa, não? — comentou Jarves, soltando um suspiro — Mas… não é de séries que veio falar, certo? Eu estou dentro?
Era óbvia a ansiedade em sua voz, o que fez caminhar lentamente até a porta, fechá-la com firmeza, e então, em um instante carregado de tensão, voltou-se para encará-lo.
Sem sentar.
— Depende. Por que você quer se tornar um de nós? — indagou, a voz firme — Você leu a carta, se encheu de esperança… mas o que é que realmente arde no seu peito? O que te move a desejar revolução?
Enquanto falava, os sons da televisão ao fundo pareciam se distorcer — ruídos, gritos enlouquecidos, fervorosos.
— O quê? O que mais seria? Caramba, olha esse lugar, essa casa… eu estou cansado dessa merda! Cansado de ficar mofando aqui! — Sua sinceridade transparecia no olhar, crua, desesperada.
— A vida é difícil para todos… — respondeu, inexpressivo propositalmente.
— Sim, sim! Mas caramba, não é só aqui… era onde meus pais viviam. Onde eles morreram!
Tentando transformar sua insatisfação em algo mais profundo, mais justificável. Mas parecia preso em um luto interminável.
Um luto que não comovia.
Que era distante — distante demais do que o iluminado representava.
— Morrer é um ciclo… natural. Está frustrado com isso? — Com calma, tentando desfragmentar as palavras do rapaz, buscando enxergar além da dor.
Precisava de alguém quebrado, sim — mas não naquele estado. Não perdido.
— Eles morreram de fome! Há dez anos, quando Aija passou pela grande fome… não se lembra?
— Como se fosse ontem. Até porque eu era um garoto de rua naquela época… — Sem pestanejar — E me diga: o que você quer? Vingança? Contra os mais ricos? Se for isso, saiba que nossa ideia vai além. Muito além disso — quase cortante, como uma repreensão.
A fala o atingiu em cheio. Jarves o encarou com os olhos brilhando, cheios de lágrimas. Como se, pela primeira vez, estivesse sendo visto de verdade… e confrontado.
— Não, não é vingança… caramba… — Mais lágrimas caindo pela face e pingando sobre a calça, deixando-a úmida — Meus pais sempre foram pobres. Deram tudo de si por esta casa. Quando veio a fome, tentaram de tudo… mas o governador, o imperador… a resposta que deram a eles foi a morte!
— Muitos morreram, realmente. Não foi a melhor campanha do império vigente. Ainda mais com a negligência… as guerras internas… e aquele surto de Síndrome da Escuridão. Foi um caos total…
— “Não foi a melhor campanha?” — indignado — Aquilo foi um genocídio! Não há registros nos livros, mas mais de um terço da população morreu! Claro, só a população pobre! Os ricos e os que viviam nas áreas nobres mal sentiram o cheiro podre nas narinas… e, se sentiram, devem ter confundido com o cheiro dos ratos! — exclamou, levantando-se enfim do sofá.
— E…?
— Eu não ligo pra esses ideais abstratos, sabe? Eu só quero lutar contra o sistema. Eu vi meus pais morrerem. Eu morri com eles! — apontou para o peito, ofegante — Quero fazer algo da minha segunda vida… e não repetir o que teria feito se só tivesse uma!
— Você não é o primeiro! Aquele convite… Romero sabia que não viriam apenas simpatizantes da causa. E eu não te julgo por isso. Na verdade, não ligo quais sejam suas motivações. Eu não sou tão idealista… não tanto assim — admitiu, enquanto pegava o controle remoto sobre a estante e desligava a televisão, encerrando o ruído de fundo.
Virou-se então, olhando-o com seriedade.
— Mas, querendo ser um de nós… terá que nos ajudar. De corpo e alma. Você entende?
Foi quando percebeu, próximo ao sofá, uma placa caída — uma das várias que estavam no protesto em frente ao prédio da Ordem.
— Eu irei! Eu juro! — exclamou Jarves caindo aos pés de Milk sem hesitar.
Estava no limite do que podia ponderar, mas decidido. Decidido a embarcar em uma viagem que, ao menos, o levasse a ver um pedaço de terra.
— Eu luto por vocês! Só me dê a chance de fazer o que tanto almejo! Já me cansei de me lamentar… e eu nunca vou aceitar! — bradou, a voz quebrada.
Suas mãos desceram pelas pernas nuas do iluminado, como se fosse sua última esperança.
— Entendo… Enfim, você pode sim fazer parte de nós. Mas, como eu disse a todos os outros, terá que provar seu valor — Recuando alguns passos — Não falo de uma missão qualquer, mas de uma prova concreta. Você está disposto a se tornar inimigo do mundo?
Ao dizer isso, fitou seus olhos — esperando ouvir a verdade, e apenas ela.
— Sim! Já não me importo mais com este mundo. Na verdade, ele já morreu pra mim! — respondeu, erguendo-se com firmeza.
— Então, garoto… — com a voz baixa, quase cerimonial — Considere-se um de nós!
— S-sério? — Com os olhos arregalados, entre a incredulidade e o alívio.
Milk apenas assentiu com um leve movimento de cabeça.
O silêncio que se seguiu pareceu selar o pacto.
O último cavaleiro havia sido nomeado.
E assim como a chama da mudança começava a arder, o futuro se selava.
Cada um desses seis, forjado pelas dores do mundo. Seja por seus pesares, seus crimes ou sua defesa desesperada desse mundo cruel, agora estavam no tabuleiro.
As cartas do messias e seu mentor já estavam lançadas.
Iniciava-se, enfim, o instante que antecede a primeira jogada.
A chama surgira — e logo viria o incêndio… e, com ele, as cinzas!
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