Capítulo 45 - Meu messias nasceu aqui
Seis passagens atrás…
Dentro de um carro, em meio às ruas mais sujas do distrito de Gou, Gabriel dirigia enquanto Romero o acompanhava, folheando um jornal. Na qual, lia-se: “Já se passaram quatro anos desde a fatídica Síndrome da Escuridão. O Império nega responsabilidade, enquanto a oposição afirma que mais de quinze milhões morreram.”
Pior do que isso era saber que a mesma oposição elegia seus próprios adversários — um eterno teatro de fantoches… o povo.
— Uma barbaridade… Como esse filho da puta do imperador consegue dormir? Quer dizer, o ex-imperador… Aquele velho deveria ser fuzilado em praça pública! — Jogando no banco de trás.
Em suas mangas, quatro cruzes costuradas indicavam sua classificação como exorcista de grau quatro. Já não era mais o jovem do deserto ou, pelo menos, era isso que acreditava.
— Ele dorme como todos os nobres, com a cabeça em travesseiros macios e mesas fartas ao amanhecer. Romero, se você se chatear com tudo o que acontece, você não vive! — Ao virar a esquina, avistaram uma multidão nas calçadas, murmurando entre si, com olhares de choque e curiosidade.
Aquela rua parecia um túnel do tempo, onde as mazelas e os prazeres se ocultavam como passos sutis.
Somente o tempo podia converter uma semente em uma árvore majestosa ou podre, de tanto ser rasgada pela sujeira dos homens.
— Não é tão fácil… — Olhando para os lados através do vidro fumê. Soltou um suspiro profundo e recostou-se no banco do carro — Imbecis… Devem estar aqui só pela diversão. Não se importam com o moleque…
— Não os culpe. Este instante, por mais infeliz que seja, é uma quebra na rotina monótona de suas vidas. Não espero que você entenda ou normalize a situação, só… não se importe tanto! — replicou, estacionando em frente ao Jardim das Flores Douradas. Era madrugada, e as luzes do grande edifício permaneciam acesas. Carros dos homens mais poderosos de Nova Tóquio estavam estacionados ali, e uma ambulância bloqueou a entrada, impedindo a passagem de qualquer veículo.
— Sua calma me assusta!
Saindo imediatamente do carro e tornando-se alvo de olhares indiferentes ao redor.
— Me assusta também…
Tirou as mãos do volante após suspirar e fechar os olhos.
— Bairro de Gou… além dos muros do Domus-Dei, isto aqui é bem bonito! — admitiu, surpreendido pelo braço de Gabriel em seu ombro. Que saiu logo em seguida, batendo a porta do carro com força.
— Vamos?
— Ehr… Vamos!
Os dois sentiram um odor pútrido. Não era um cheiro demoníaco, mas o cheiro do pecado humano — tão adorado e tão repugnante.
Então caminharam, passando pelos paramédicos que lhes abriram passagem. Todos pareciam imersos na situação. Quando chegaram perto de um grupo de policiais, que seguravam pás e tinham as fardas sujas de terra.
Gabriel tomou a dianteira.
— Boa? — cumprimentou enquanto o parceiro encarava um rapaz sobre uma maca, ao lado dos paramédicos, aos pés da escada.
Que coberto de terra, respirava com dificuldade.
— Boa! Achamos que vocês não viriam! — disse o oficial que comandava a operação, apertando a mão do exorcista.
— Desculpe a demora… Tivemos que evitar uma onda de protestos, mas… qual é a situação? — Fitando Romero de canto de olho.
— Segundo uma das funcionárias do local, parece que o dono abusou do jovem e o enterrou vivo depois do ato. Viemos atrás de um corpo, mas, caramba… ele ainda está vivo mesmo após seis horas! Não dava pra não ser um caso paranormal! — explicou.
Uma criança?
Diego pensou.
Ao tocar seus dedos no corpo do jovem, sentiu-o tremer… e percebeu não só o frio, mas também o medo, a repulsa… o abuso.
Enquanto, engolia a seco a situação.
— Abusou? O que esse moleque estava fazendo aqui? Isso não é um bordel de mulheres? — Como se interroga-se o oficial.
— Calma…
— A mãe… trabalhava aí, pelo que disseram! — respondeu ajeitando o cinto enquanto encarava a grandiosidade do edifício — O pai é o dono… disseram que ele tinha preferências por garotos… Um porco nojento se é que me entende!
O nojo estava estampado no rosto dos exorcistas e dos demais oficiais, mas o jovem que ele tutelava parecia ainda mais chocado.
Seus olhos estavam arregalados, os lábios secos… e, para sempre, carregaria o trauma daquele toque. Seu corpo jamais voltaria a distinguir amigo de inimigo…
— O quê? Deve haver algum engano. Que mãe… que pai faria isso?
Aquele instante, aquele maldito instante, fez Romero sentir algo revirar em seu estômago. Estava pronto para vomitar, mas aquela cena… era apenas um fragmento de sua mente. Uma lembrança que, um dia, já passara.
Um breu tomou seus olhos e, ao seu redor, tudo foi deletado. Caiu em escuridão… Uma escuridão profunda, sem horizonte.
Estava sonhando com o que já fora.
Vítima da doença chamada ansiedade. E do pulsar mais forte do coração: a injustiça…
Aquele era uma revisita ao seu passado, em sonhos que, como uma cortina, caíam ao “tic-tac” do relógio vibrando sobre a mesa do smartphone.
A luz da manhã parecia surgir, caindo sobre seu rosto. Ao abrir lentamente os olhos, viu sapatos negros e ensanguentados nos pés de alguém sentado em sua poltrona. Livrando-se do ponto de vista limitado, ergueu-se, assustado… e lá estava Rasen, encarando-o, refletindo o abismo em seu olhar.
O mesmo garoto da maca…
— Acordou cedo… pesadelo?
— Ehr… é… foi mais um sonho… desagradável… de um momento desagradável! — Sentando-se no colchão, ainda espantado — Onde esteve? Quando a Milk chegou, você já tinha saído…
— Só estava contemplando a noite, que, aliás, foi tão boa… não sentiu o frio? — Erguendo-se e deixando pegadas de sangue à frente da poltrona — Depois de tanto calor…
— Rasen… você sabe que não pode chamar atenção até o plano estar completo, não sabe?
— É… mas eu não chamei atenção. Se é isso que imagina! Eu apenas estava tentando entender meus próprios limites. Até o dia, preciso estar a par das possibilidades e das impossibilidades. Afinal, será uma jogada de uma única chance, não é?
— Sim! — Levantando-se — Mas…
— Para que tanto medo? Já não apostamos nossas vidas nesse lance? Acalme-se! O destino está do nosso lado — Interrompendo-o e seguindo para a saída.
— Sim…
As palavras não saíram. Não esperava por aquela confiança… não esperava.
— Enfim, vou tomar um banho. Quando todos chegarem, me chame… Boa manhã, meu amigo! — concluiu.
Ele então desceu, seus passos ecoando e despertando quem quer que ainda estivesse adormecido.
Um sorriso de orelha a orelha estampava seu rosto e, no bolso, algo de metal tilintava levemente. Era a sinfonia da morte que carregava, revelada quando entrou em seu apartamento e seguiu direto para o banheiro.
Ali, jogou três crucifixos banhados em sangue na pia. Com movimentos lentos… Com a mente em outro lugar, começou a se despir, peça por peça, revelando um corpo tatuado.
Cada tatuagem contava uma história, carregada de incertezas… pois as certezas sempre o machucaram demais.
Um crucifixo em chamas no pescoço pois sua fé era inflamável. Asas sangrando nas costas, a liberdade cortada. Uma serpente engolindo a outra no dorso da mão esquerda, traições que poderia sofrer…
Algumas de suas marcas…
Enfim…
O dia 34 já começava gélido, após outros calorosos.
Era o derradeiro. Os seis cavaleiros iriam se reunir a Rasen e Romero, assim como os oito iluminados.
Era apenas o início do desabrochar do caos. Abraçando essa ideia, Milk, logo cedo, enviou mensagens a todos. Estava exausto, vestindo as mesmas roupas do dia anterior, um andar abaixo do último, onde seu amado se encontrava.
Sentado sobre o colchão no chão e seu único pertence, uma mala à sua frente, naquele ambiente tão escuro e vazio.
Só guardava roupas e maquiagem. O suficiente para mascarar o amor que sentia em forma de admiração… e, talvez, uma submissão cega…
Independente.
Os três estavam postos para o que estava por vir. Menos Kwawe, que bebera na madrugada e não acordaria… não por agora!
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