Capítulo 50 - Cruz
Próximo dali, ainda no distrito de Katakana, Masaru e Gabriel avançaram juntos por uma via, obviamente sombria, como todas as outras vezes que narrei, uma das muitas que cortavam a região, após terem recebido um chamado de seus superiores.
Era mais um caso em que as evidências apontavam para o sobrenatural, mas cuja resposta permanecia inalcançável para pessoas comuns.
Afinal, um crime espiritual dependia de um entendimento que ia além da simples ideia de compreender; era preciso ver e sentir.
E quem não sentia?
Policiais, de expressões carrancudas, haviam cedido espaço aos exorcistas depois de uma exaustiva jornada de seis horas na perícia do local.
Tanto esforço… para acabar em lugar nenhum.
A cena era de dar ânsia: o ambiente estava saturado de sangue, com três corpos estirados à vista.
Sorte que eram importantes o bastante para que alguém os visitasse.
O crime havia sido relatado na madrugada, justamente naquela região tão tranquila, onde os casos sobrenaturais eram mínimos e os criminais, menores ainda.
Mas paz… não era algo que um morador de Crea pudesse esperar, ainda mais em um império tão corrupto como o de Aija.
— Meu Deus… que horror! — suspirou Gabriel, passando pela fita que isolava a cena do crime.
À frente, jazia uma jovem, o pescoço brutalmente arrancado, com os filamentos de carne dilacerados.
A cabeça repousava alguns metros adiante, num grotesco beijo com o chão imundo, tingido de vermelho assim como seus cabelos.
Ela parecera partir em meio a um terror profundo; a expressão de choque permanecia estampada no rosto, mesmo na morte.
— Essa aí perdeu a cabeça… hehe — murmurou o boca aberta, lançando um olhar para trás antes de soltar um suspiro.
O cheiro era tão ruim que fazia suas narinas arderem.
— E… tá fedendo antes da hora… — resmungou, prendendo o nariz com os dedos, ainda que não precisasse.
No fim, era apenas isso que, de fato, o incomodava.
O que não importava… nem para mim, nem para você… nem para o careca.
— Não há presença de energia negativa… apenas espiritual. É estranho, não acha?
— Tá falando que pode ser um exorcista… ou, no mínimo, um desperto?
— Sim, e… — notou algo, a expressão tomada pelo espanto, enquanto se abaixava para tocar o sangue. Sentiu a textura pegajosa grudar em seus dedos; estava quente como chá recém-fervido — O calor deixado pela energia expelida é impressionante… ou o assassino era inexperiente, ou seus ataques foram brutais!
— Eram três exorcistas de grau três… pelo estado dos corpos e da cena, o responsável teria que ser, no mínimo, um grau cinco. O que descarta a possibilidade de ser um amador.
Constatou o “Mais Forte”, aproximando-se do corpo mais distante: um jovem de pele negra, com a cabeça baixa, recostada à parede à esquerda.
Havia uma brecha aberta em seu torso, uma fenda que o partira praticamente ao meio.
Mas não havia entranhas… apenas sangue e fragmentos indistintos de carne.
— Olha só… nem os buchos sobraram nesse aqui… será que o assassino era um tio do churrasco?
— Calado! — quase pulou em sua garganta, mas conteve-se, amassando os punhos na hora — …Esse tipo de dano não parece ter sido causado por um feitiço de transformação… nem por feitiços comuns, como bolas de fogo ou jatos de água…
— Tá…
Com um empurrão, verificou que o concreto da parede atrás do corpo estava intacto e frio. Sua mão atravessou-o, encharcando-se no sangue do rapaz, enquanto tentava segurar a respiração.
Que fedor… Pensou, revirando os olhos.
— O mesmo vale para a garota. Um feitiço capaz de arrancar uma cabeça deixaria rastros visíveis… teria que atravessar com velocidade e força suficientes para marcar o impacto do seu freio!
Olhando para o fundo do beco, onde havia apenas sacos de lixo, não se viam sinais de danos que indicassem um embate… apenas a prova de que o calor ali ultrapassara o de um forno, fundindo e colando tudo ao que antes permanecia oculto.
— Estranho…
— É… — murmurou, limpando as manchas de sangue que salpicavam suas vestes brancas sob o sobretudo. Voltou-se para o lado oposto, onde o corpo mais afetado permanecia: restara apenas a cintura para baixo e uma parede manchada de sangue e fragmentos.
— Certeza que é um Iluminado…
— Lúcido! O único assassino de aluguel capaz de matar um exorcista desse nível era o Hideki… e a Ordem mandou eliminá-lo, não foi?
Inocente até demais, lançou um olhar para o parceiro.
— É… Se foi um Iluminado, então eu estava certo de que matar seria uma de suas opções… mas por quê? Esses jovens eram exorcistas, inocentes… isso não tinha nada a ver com o conselho…
— Que foi? — Ao perceber os ombros dele se moverem, tensos — Isso te afeta tanto assim?
Como não?
Seu peito ardia por uma resposta lógica, mas nada… nada vinha.
— Não entra na minha cabeça! — murmurou, pegando o smartphone no bolso. Com relutância, encarou a tela com pesar e, após alguns cliques, parou na aba do contato de Romero, outrora com a foto de seu falecido Bulldog — Será que ligo?
— Liga, ué… se já pegou o smartphone todo ansioso mesmo, mete bala, cabeça de ovo! — resmungou, coçando a nuca — Só… vamos sair desse lugar? Tá fedendo pra caramba! E… eu lavei a roupa ontem… tá limpa, saca? — afastando-se dali.
— Tá…
Ao chegarem à saída do beco, o jovem quase vomitou diante da multidão curiosa.
Mas freou, apoiando a mão no joelho.
Enquanto, seu parceiro se escorava na parede, ouvindo o maldito “bip”…
— Que caralho! Sumam daqui, suas hienas! — berrou, dispersando-os, enquanto os oficiais, encostados em seus carros, os encaravam com certa irritação.
Gabriel saiu voltou em seguida, com o smartphone na orelha, mas o guardou pouco depois, chateado.
— Nada…
— Ah…
Limpou a baba com o sobretudo.
— Ele deve ter explodido o aparelho. Agora que é considerado um terrorista, não deve querer ser localizado!
— É…
Ergueu o braço em direção aos policiais, fazendo um sinal de arma com os dedos.
— Ele é inteligente, né?
— Que que cê tá fazendo?
Piscou e, de repente, encarou a face cagona de cada um dos oficiais.
— Masaru…
— Bang!
Isso bastou para que todos recuassem dos veículos, alguns chegando a sacar as próprias armas.
Mas…
— Bang!
Nada aconteceu.
— Bang! Baaang!
Aliviados, alguns deixaram escapar o ar preso no peito, e o careca chegou a estapear a própria face. Um jovem cabo até se mijou, deixando o donuts de seu superior cair das mãos.
— É divertido atirar, né?
— Masaru…
Dessa vez conseguiu contê-lo, e ele baixou a bola.
— Tô zuando, pô!
— Não seja leviano, vai… eles quase morreram do coração…
Enquanto o maldito ria, mesmo após presenciar aquele caos.
— Maldito! Desgraçado! — gritaram os oficiais em uníssono.
— He! He! Foi mal…
O fitou de lado, percebendo que ele estava sério, como se nem estivesse ali.
— Pensando demais, cara?
— Não… quer dizer, sim!
— No quê?
— Estava pensando… como alguém tão sábio pode cair em um abismo desses… não só o Romero, mas também os líderes… Às vezes penso… será que a loucura que nos guia é a tal razão que me falta?
Desabafou, lançando um olhar fugaz para os céus nublados.
— Sei lá…
Será que sou o errado? Merda… ser celeste… o que isso significa? Sinto-me mais ignorante do que nunca!
Ousou se questionar. Ignorar o que o jovem dizia era lógico… não ouvi-lo fazia sentido.
— Sábios, heróis… não existem! Somente humanos. E sabe uma das coisas que eu gosto em você, cara?
Enquanto conversavam, os policiais já se acalmavam, cochichando entre si sobre os dois… talvez falando mal, e com razão.
— O quê? — virou-se, mantendo a mesma expressão de sempre.
Séria, sem se importar com suas brincadeiras.
Mas ainda amável… até demais.
— Você é inocente! Mesmo sendo tão velho! É… você é um velhinho fofo! — provocou, já que o calvo não tinha mais cabelos para perder.
As palavras, como pontas de flechas disparadas pelo rapaz, cessaram quando ele suspendeu os dizeres e levou o braço até o ombro de Masaru.
Conformado…
— Não muda, cara!
Deixando uma certa leveza o golpear.
— Não era você que disse…
— Só não mude, Masaru. Eu não vou poder rir mais se você amadurecer… — concluiu, caminhando até o carro estacionado atrás dos veículos policiais.
Mas…
Colocando as mãos no sobretudo, viu sua feição feliz se transformar, a cada passo, em preocupação.
— Enfim, vamos?
— Vamos! Mas… ehr… antes a gente podia fazer um lanche? Não? Estou morrendo de fome!
— Lanchar? Ah, tá… mas nada de ficar matando tempo, hein! Te coloquei como meu parceiro para trabalhar! — entrou no carro com um suspiro — Hoje ainda tenho uma reunião com o governador, o tempo está corrido!
Então colocou as mãos no volante, olhando adiante, enquanto os fardados voltavam a entrar no beco.
Agora, poderiam continuar seu trabalho.
— Fechou, senhor ocupado! — retrucou, como se a palavra trabalhar fosse uma tortura.
E até era para ele e, provavelmente, para a maioria de vocês… amantes da adrenalina.
Mas até quando?
— Sou mesmo! Hm…
Ao entrar, se jogou no banco de trás e segurou firme no assento do piloto.
Aquela era a cruz que, dali em diante, teria de carregar…
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