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    “Pessoas são mais valiosas que vinho, mas menos prazerosas…

    Sério, o gosto amargo depois de horas, só um ser humano pode deixar na boca da alma.

    ✧ ✞ ✧

    Na manhã do dia vinte e nove, o céu amanheceu carregado de nuvens acinzentadas se amontoavam, feridas abertas no firmamento, como se o próprio céu, exausto de sustentar o mundo, quisesse enfim engolir tudo.

    Embora a chuva ainda não tivesse caído, o frio rasgava o ar, fazendo os ossos tremerem e o hálito ganhar forma, vapor tênue que se desfazia antes mesmo de existir, o fôlego de uma cidade cansada demais para sonhar.

    Ráfagas de vento atravessavam ruas e becos, fazendo os telhados rangerem e as janelas vibrarem.

    O lixo se erguia em redemoinhos, girando sem direção… a própria cidade respirava, inquieta, viva, à beira de um colapso que só ela parecia pressentir.

    A humanidade nunca percebe nada.

    No distrito Gou, o quinto… coração comercial e espelho do progresso, o paredão de nuvens se adensava sobre o Domus Dei, que desafiava o tempo, a lógica e até mesmo a humildade dos céus.

    Suas paredes de vidro refletiam a tormenta, devolvendo ao mundo a própria fúria, e sua estrutura colossal permanecia inabalável, zombava do que ousava tocá-lo.

    Entre os arranha-céus, era o maior.

    Pois ali repousava o coração da Ordem dos Exorcistas, onde fé e poder coexistiam à beira da ruína, mantendo-se juntos apenas pelo medo do que poderia vir caso um deixasse de crer no outro.

    Cíclico… não?

    Os sopros caóticos da natureza rugiam, mas o interior permanecia um santuário de ordem e silêncio.

    Através das amplas vidraças, via-se Aurora lançar seus véus dourados sobre a cidade, uma luz divina tingindo de ouro o céu acima das nuvens, como se a tormenta fosse apenas um rumor distante.

    E ali, no topo do mundo, um homem contemplava tudo com o olhar de quem possuía mais do que via.

    Um magnata, vestindo um terno negro impecável, o nó da gravata ajustado, quase ritual.

    Em seu pulso, o crucifixo prateado refletia a luz com falsa pureza, a armadura moral dos que confundem fé com estética, dos santos que se orgulham mais do brilho do ouro que da chama da alma.

    Um símbolo sagrado, usado com a mesma frieza com que se exibe uma joia.

    Ele saboreava lentamente um vinho caro, trezentos e vinte e cinco mil ienes por garrafa — em uma taça cravejada de diamantes.

    O vidro diante de seus olhos filtrava a luz, permitindo que apreciasse o espetáculo celestial sem jamais se cegar.

    O próprio céu tinha aprendido a se curvar à sua comodidade.

    Ele se encontrava no septuagésimo oitavo andar, onde o luxo deixava de ser conforto e tornava-se autoridade materializada.

    Ali residiam os nove homens mais influentes de Crea — líderes que não apenas comandavam o exército mais poderoso do mundo, mas ditavam também o ritmo da própria fé e da guerra. Seja física ou espiritual…

    Seu olhar, frio e impenetrável, refletia a imponência do ambiente ao redor: paredes de mármore negro, tapeçarias antigas demais para um homem de meia idade tê-las e uma iluminação suave que fazia cada detalhe parecer inspirar submissão.

    Através da vidraça, o reflexo revelou uma segunda presença, um outro sentado no sofá de couro, postura disciplinada, uma taça nas mãos e o silêncio nos lábios, aguardando que o magnata se pronunciasse.

    Logo atrás da mesa adornada pela garrafa do caríssimo Roi des Rois, exalava uma compostura que beirava o sagrado.

    — Sr. Souza — começou, soltando um suspiro pesado, os olhos semicerrados em desdém — tem certeza de que ouviu essas palavras da boca de Romero?

    O sobretudo escuro lhe dava a elegância de um veterano da guerra e do tempo.

    A calvície contrastava com a imponência de sua postura.

    Mesmo cego de um dos olhos, sua presença parecia ver mais do que muitos homens de visão perfeita.

    E, apesar da expressão severa, havia em seu semblante uma paz inquebrantável, a serenidade de quem aprendeu a carregar os próprios pecados sem pressa de absolvição.

    — Ouvi, sim — respondeu, enfim, a voz grave, serena, fúnebre — Infelizmente, conheço o suficiente para reconhecer a verdade nos olhos de um mentiroso…

    — Mentiroso…?

    — É… Mas me diga — inclinou-se levemente para frente, pousando a taça sobre a mesa — vai acreditar em mim… ou prefere acreditar nele?

    — Todos nós mentimos, senhor Souza… alguns por medo, outros por fé. E há aqueles que mentem com tanta perfeição que fazem da mentira uma forma de verdade institucional.

    A mente, afiada como lâmina, abriu caminho pelo labirinto de palavras e intenções onde o outro tentava conduzi-lo.

    — Mas eu sei… vocês, homens de pensamento e de sonho, possuem uma ligação diferente de nós… os poderosos, os vulgares, os que sujam as mãos com o mundo! — dissera, teatral, com o olhar afiado como a lâmina de um cético, tentando encontrar, nas frestas do silêncio, algum reflexo de verdade na serenidade impenetrável do outro — Mas quem sou eu, afinal, para duvidar? — O sorriso oscilava entre a ironia e a rendição.

    — Hm…

    Já lhe dera motivos, ou ilusões suficientes para acreditar.

    Avançara alguns passos, som de seus sapatos sobre o mármore polido.

    Ergueu a taça e, sem hesitar, bebeu o vinho restante de uma só vez, deixando o líquido escuro deslizar pela garganta como se quisesse afogar um pressentimento.

    Apoiou-se então nos braços do sofá, exalando a satisfação ensaiada de quem finge domínio.

    — Ótimo… excelente! Só…

    Mas a frase morreu antes de nascer.

    — É, eu sei… — interrompeu — Acredite… é mais difícil para mim do que para qualquer outro ter que te alertar sobre isso…

    As palavras escaparam entre suspiros, um som humano demais para alguém que aprendera a disfarçar fraquezas.

    Havia nelas o peso de algo que não se dizia impunemente: um segredo antigo, talvez o amargor da desilusão… ou a lenta tortura de quem ama o que deveria odiar.

    — Bem, eu irei alertar o conselho, como pediu… — declarou, endireitando o terno e deixando o peso da decisão assentar nos ombros — …me atirando aos leões, é claro!

    Não havia medo em seu olhar, apenas a estranha calma de quem já aceitara a sentença.

    Acusar diante de nove iguais era como cuspir no altar de onde vinha seu próprio poder.

    Mesmo assim, sorriu.

    — Mas entendo você; sou o único maluco capaz de dizer isso com determinação. Você me considera louco, não é?

    — Louco? Não… talvez não… Apenas um suicida social, alguém que ainda acredita poder dizer a verdade num mundo que a renega.

    — Verdade?

    — Mas os Regnianos… sempre foram assim, não foram? Nascem entre a fé e a heresia, e morrem acreditando que ambas são a mesma coisa.

    — Sempre! — respondeu com um riso breve, que ecoou o como o estalar de gelo partindo-se — Nascer nas terras gélidas é praticamente um atestado de loucura!

    Gurando a taça já vazia entre os dedos antes de deixá-la sobre a mesa, o som do cristal encontrando o mármore soando como um ponto final.

    O outro esboçou um sorriso contido, uma tentativa de humor que não encontrou eco.

    O riso morreu na garganta, substituído por um engolir seco,
    como se as palavras seguintes exigissem coragem para atravessar seus lábios.

    — Mas um suicida social… — repetiu, saboreando a expressão como se fosse o vinho — é, até que gostei disso… Soa quase poético, não? Um título digno de quem desafia os deuses e ainda quer ser lembrado… um herege como eu!

    — Enfim, peço que dê a devida atenção — Ajustando o punho do terno, a voz retomando o tom pragmático dos que preferem não sentir — Eu… entendo os ideais do meu amigo, mas o mundo já está… um caos, não? — completou, deixando a pergunta pairar no ar como um incenso que se recusa a apagar.

    O observou por um instante, o olhar sereno demais para um homem que acabara, talvez, de selar o destino de outro.

    — Sim… — respondeu por fim — Acho que você, mais do que ninguém, sabe das consequências dos pensamentos dele. Se Romero realmente deseja mudar o mundo… terá que agir como um tirano. Um daqueles que carrega o fardo e o sangue dos próprios ideais nas mãos.

    Fez uma pausa, apoiando os cotovelos nos joelhos, inclinando-se levemente à frente.

    A taça abandonada sobre a mesa tremulou ao som distante do vento,
    como se o silêncio também aguardasse sua sentença.

    — Diga-me, então… o que o levaria a esse ponto? Vocês dois… não eram pacifistas? Ou seriam apenas homens de fé disfarçados de mártires? — arqueou uma sobrancelha, o canto dos lábios se curvando em ironia — Sem ofensas, é claro.

    — Ele mudou desde o incidente com o garoto; a visão que tinha do mundo não era mais a mesma — Fez uma pausa — Enquanto eu… Continuo igual…

    — E a dele está errada? — a pergunta saiu abrupta, sem o filtro da polidez — Quer dizer… não que eu queira concordar com isso…

    — Não sei e, sinceramente, não me importo — respondeu com firmeza — Se ele optar pela matança, estarei na oposição. Ponto. Não fico remoendo conflitos subjetivos quando o risco ultrapassa certo limite. Subjetividade é, ao fim, discurso que posterga a ação.

    — Entendi. E o Rasen? — Mudando o foco — Entre os alunos, há mais alguém com a mesma visão?

    — Bem, não sei… — Soltando o ar como exorciza um fardo — Só sei que esse Romero não hesitaria em sacrificar a si mesmo pelo que acredita. Vi isso nos olhos dele, senhor Moreau… Então, por favor, faça isso valer a pena.

    — Entendido… Pode contar com boas notícias em breve!

    — Certo…

    Ergueu outra taça, o vinho tingindo o cristal com o vermelho profundo de um presságio.

    — Um brinde… a nós. — Deixando que o timbre da palavra “nós” ecoasse no ar, como se o brinde fosse mais uma sentença do que uma celebração.

    O tilintar solitário do cristal soou como o fecho de um pacto.

    Os olhos de Gabriel o seguiram, impassíveis, enquanto o acompanhava até a porta.

    O som da maçaneta era suave… metálico, preciso, o estalar de um veredito.

    — Obrigado.

    — Disponha…

    Por um breve instante, o observou — o olhar percorrendo-o dos pés à cabeça com um interesse que não soube disfarçar. O mesmo olhar de um colecionador avaliando uma peça rara.

    Mas, como um bom conhecedor de vinhos, sabia distinguir o sabor que não lhe pertencia.

    Que desperdício…

    E quando atravessou a porta, a indiferença se desfez num instante.

    Ali, parado no corredor, estava aquele que menos esperava ver, o mais jovem a se formar na academia, o orgulho e o incômodo da mesma.

    O maior prodígio da geração.

    — E aí, como foi lá, cabeça de ovo? — perguntou, com um sorriso torto que misturava sarcasmo e afeto.

    A voz veio acompanhada do som oco de suas botas batendo contra a parede. Estava encostado ali, braços cruzados, o corpo relaxado como quem fazia da insolência uma arte.

    Os cabelos desgrenhados e as roupas sujas denunciavam o retorno recente de mais uma missão — e, ainda assim, havia uma centelha viva, quase arrogante, queimando em seus olhos.

    — Ah, Jigoku… — murmurou, revirando os olhos, exalando resignação e ironia em partes iguais — Cabeça de ovo? — repetiu, arqueando a sobrancelha, e lá no fundo se pergunta se realmente ouviu aquilo.

    — É… Tão careca que reflete até os pecados alheios.

    — Não cansa?

    — Não, exatamente. — Aquele tom que os insolentes dominam tão bem — O que aquele charlatão te disse?

    Esse pirralho força… pensou, respirando fundo para conter o impulso de mandá-lo calar a boca.

    — Bem, sobre isso… — começou, ajeitando a gravata, tentando manter o tom neutro — …ele mencionou que faria algo, mas não deu muitos detalhes. Só perguntas, como sempre.

    — Ata…

    — Hm. E você? — O canto da boca curvando-se num sorriso zombeteiro — Não tinha uma missão?

    — Eu? — Esticou os braços e sorriu, preguiçoso — Ah, já concluí!

    O observou por um instante, o silêncio entre eles tão cortante quanto o vidro trincado.

    — Impressionante… um insolente eficiente!

    — O melhor!

    — Melhor? — O olhar cético — Já chegou ao grau V?

    — Uhum… em dois dias!

    Gabriel respirou fundo, cruzando os braços.

    — Já? Você realmente é um prodígio… — pausou, estreitando o olhar — pena que tem essa mentalidade.

    — Meh! — deu de ombros — Eu sou um prodígio, um exorcista perfeito! Não vem baixar minha bola, ó, vovô! — provocou, entre risos, cruzando os braços atrás da cabeça e caminhando em passos largos pelo corredor.

    — É verdade…

    — Um dia vou ser um exorcista de grau celestial, como você — virou o rosto, piscando um dos olhos com arrogância — Então, vai ter que me aguentar!

    — Que o céu tenha misericórdia de nós quando esse dia chegar…

    — Você me odeia, né?

    — Nem parece ter vinte e um anos… — disse, pousando as mãos sobre os ombros do rapaz. O gesto o pegou de surpresa, e uma estranha sensação de calma percorreu-lhe o corpo, como se a própria presença de silenciasse o caos ao redor — Mas mal posso esperar por isso.

    — Cara, você é tão maneiro que nem parece careca… — retrucou, tentando provocar, mas o máximo que conseguiu foi uma risada abafada, seca, quase educada demais.

    — Você nunca fica irritado, né?

    — Me irritar? — O olhou de relance — Acha mesmo que nunca lidei com pirralhos chatos?

    Soltando-o e retomando o passo, o som de suas botas ecoando sobre o piso vinílico.

    — Aff… Tá bom, mas uma hora você perde essa pose toda! — Trotando atrás dele, o corpo cheio de energia, o peito inflado de confiança juvenil.

    Soltou um suspiro longo, quase resignado, e balançou a cabeça.

    Sim… estava claro.

    A partir dali, ele teria um carrapato ao seu lado.

    E aquele seria apenas o começo de um longo, longuíssimo dia.

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