Capítulo 55 - Homem imutável
— Você é um mentiroso! — rugiu Hazan, os olhos ardendo em chamas.
Aumentando a distância entre os dois, se lançou numa corrida desesperada para o outro lado da rua.
Agachou-se diante da vitrine de uma loja de roupas, com os dedos roçando o vidro.
Com um único toque, canalizou um pulso de energia que fez o vidro explodir em milhões de cacos pontiagudos.
Os estilhaços caíram ao seu redor, refletindo a luz de sua aura incandescente, e, com um movimento rápido, destacou o dedo anelar e impulsionou os fragmentos contra o adversário.
O feitiço cortou o ar como uma tempestade de lâminas.
E Rasen, tomado por um instante de adrenalina, saltou para a frente, traçando um arco com o indicador.
O movimento dispersou a maior parte dos estilhaços, mas não todos. O impacto deslocou o ar, criando um vácuo momentâneo que o poupou de ser atingido.
— Eu? Por quê? Oras… — Com uma calma quase irritante.
Seus olhos seguiram sua presa, que corria para o centro da rua.
A aura se concentrou no seu braço direito.
— Expande potentiam meam: ut possim spiram manipulare, quae inimicum meum frangere possit, in directione quam dico et indico!
A energia começou a girar em alta velocidade, formando uma espiral translúcida que parecia devorar a própria existência em um ciclo infinito na palma de sua mão.
Ele vai tentar encerrar isso rápido!
O pensamento atravessa-lhe a mente enquanto lança um olhar veloz para o hidrante à esquerda.
Num impulso, rola pelo asfalto e apoia as mãos sobre o metal.
— Transmutatio materiae et status…
O ferro se derrete, a água rompe em jatos contra o céu noturno.
— Sério? Está perdido? — O sorriso sarcástico se abrindo em seus lábios — Disrumpe!
E junto com a palavra o feitiço explode no ar, e a pressão da água se desfaz. Dois sons ressoam ao mesmo tempo: o estalo seco do asfalto se partindo… e um grito abafado, engolido pelo vapor.
Sangue respinga no chão encharcado, enquanto uma cortina branca envolve tudo, dissolvendo formas e silenciando a visão.
Droga… ele deve ter feito esse tal ritual para deixar essa merda mais fácil de se acertar!
Ofegava, o peito subindo e descendo em espasmos curtos.
Seu olhar se turvava ao constatar o vazio onde antes estivera a mão esquerda. O sangue escorria em jorros desordenados, espalhando-se como vinho derramado de uma garrafa estilhaçada.
Cada gota marcava o chão, deixando um rastro vermelho.
A ausência do membro não era apenas física: era um incômodo que pulsava em sua mente, como se o corpo tentasse compreender a perda sem sucesso.
E, ainda assim, a dor não vinha. O momento em que deveria ser insuportável revelava-se estranhamente silencioso, como se toda sensação tivesse sido arrancada junto da própria carne.
Sinto cada fragmento meu devorado da realidade…
Sentia-se à beira da inconsciência, a mente oscilando em um torpor enevoado.
A cada respiração, a escuridão parecia avançar em seu encalço, mas daquela névoa interior brotou-lhe uma ideia súbita.
Aproveitando o sangue que ainda jorrava de sua ferida, ergueu o braço remanescente e, em um gesto desesperado, arremessou o líquido para o ar como quem lança uma granada, a última aposta de um condenado.
— Não me pegará em truques!
Foi mais veloz. Com a mão esquerda, reuniu em um único ponto o vapor que o circundava e o sangue lançado, condensando-os.
Um sorriso malicioso desenhou-se em seu rosto, refletindo a crueldade do instante.
— Que imbecil! Perdeu o braço por isso? — zombou, moldando diante de si uma esfera de vapor impregnada de energia, que fervilhava como uma estrela escarlate — Qual será sua próxima jogada? Ou será que o gato caiu na própria armadilha?
Foi então que, ao pronunciar tais palavras, notou algo inesperado: um sorriso espontâneo se abriu nos lábios do adversário, um sinal perturbador de confiança que fazia até mesmo um ser caótico como ele temer.
— Expando potentiam meam, ut omnis pars mei, quae iam non est pars, sicut ignis explodat — entoou, a voz trêmula, marcada pelo esforço de quem se sustentava apenas pela vontade.
No instante seguinte, a mão do Messias explodiu como uma granada, o estilhaço de carne e osso espalhando-se em uma onda de dor.
O impacto da explosão foi tão forte que o lançara para trás.
Evocara sua técnica inata, a transmutação corporal. Com ela, podia remodelar partes de si, ou até vestígios de sua própria essência, em eventos devastadores que transcendiam só a carne.
Sua mão recém-amputada deixava no ar um rastro vermelho, misturando-se ao cheiro acre de pólvora e às cinzas que ainda pairavam como poeira incendiária.
Alguns dedos, carbonizados e irreconhecíveis, rolaram pelo chão até pararem próximos aos pés do inimigo, reduzidos a ossadas queimadas e esmagadas.
Um grito áspero escapou dos lábios do maldito, rasgando o silêncio da rua deserta.
— Ah… Merda! Você é a porra de um filho da puta! — cuspiu sangue, o rosto contraído. Pela primeira vez desde o despertar de seus poderes, experimentava a dor em sua forma mais crua. A sensação era insuportável… um torpor se espalhava pelo corpo, entorpecendo-lhe os músculos, nublando-lhe a visão.
Antes que conseguisse reagir, Hazan avançou.
O pé subiu em um arco violento e colidiu contra o seu queixo, estalando ossos e lançando-o para trás.
A cabeça e as costas se chocaram contra a parede de pedra, que tremeu com o impacto. Uma onda de agonia percorreu-lhe o corpo inteiro, e cada respiração tornou-se um tormento sufocante, como se o ar tivesse se transformado em lâminas dentro de seus pulmões.
— Mal… Maldito! — gaguejou, tentando erguer os braços em defesa. Mas sua mente já não estava apenas na rua: flashes fragmentados dos abusos sofridos em sua juventude o atravessavam. Ser vítima sempre o lançava de volta ao mesmo abismo: o pavor sufocante, a impotência sem saída.
Seus olhos se inundaram de lágrimas, não apenas pela dor, mas pelo terror psicológico que o consumia por inteiro.
E o exorcista, implacável, não demonstrava sequer um traço de piedade.
Avançou e golpeou violentamente entre as pernas, desarmando-o por completo.
Rasen arquejou, o corpo traído pelas próprias mãos que tremiam e falhavam, quase deixando-o desmaiar no lugar.
Um grito gutural, bruto e animalesco, escapou-lhe dos lábios, rasgando o ar noturno.
— Você continua muito longe de mim! — rugiu, desferindo um chute lateral que o lançou contra o chão.
Os lábios beijaram o asfalto gelado e sujo, o gosto metálico do sangue misturado à poeira impregnando-lhe a boca.
Hazan deu um salto para trás, ofegante, a visão turvando-se como se a realidade vacilasse.
Ainda assim, elevou sua aura até que se inflamasse como uma fogueira, iluminando a rua com um clarão.
A luz cobriu a ferida aberta, o sangue cessou de gotejar, mas sabia, aquilo estava longe de ser uma regeneração.
— Está na sua cara de maníaco que você não deu nenhuma chance àqueles garotos! — acusou, a voz pesada de fúria e convicção — Você só aproveitou a situação… ou os caçou, como fez comigo!
Respirando fundo, enfim conteve o fluxo desordenado do peito, estabilizando o fôlego diante da ferida que agora apenas se mantinha estancada.
Eu já me livrei disso! Já superei isso!
Era o que martelava em sua mente, uma versão de si que insistia em acreditar ter vencido os traumas, mesmo enquanto encarava com os olhos arregalados.
Mas, naquele instante, percebeu a verdade amarga… abandonara sua humanidade em prol da própria insanidade.
Mas ainda havia as marcas das falhas, das fissuras inevitáveis. Ser humano era uma verdade imutável, uma condição que nenhum poder, por mais grandioso ou profano, poderia apagar.
E com um salto desengonçado, escapou, correndo em desespero como um animal acuado.
Por pouco não despencou de face contra o chão.
Hazan até tentou agarrá-lo pelos cabelos, mas se esquivou por um triz, cruzando os dedos da mão esquerda em meio ao movimento frenético.
Venha a me, spiritus qui me circumdat…
Unire ad me, servus tuus sum… O mors, quae vitae meae insidias, quae est in omnibus, pars tua ego ero in futurum… Redde mihi manum, pro ea, quod accepi omnia!
As palavras ressoavam apenas em sua mente, mas o ar ao redor reagia.
Uma aura negra o cercou, distorcendo a realidade e congelando o instante no tempo.
Ele havia revertido o ritual por meio de outro, abrindo mão da vantagem conquistada com a morte dos jovens em troca de sua própria mão… um preço cruel para continuar realizando seus feitos.
Perdê-lo, no fim, representaria não apenas sua falha, mas a prova de sua condição inferior.
No mesmo instante, os dedos da mão esquerda explodiram, incapazes de conter a torrente de energia. O sacrifício foi aceito.
Sangue escorreu-lhe dos ouvidos enquanto tentava concentrar todas as forças; a pressão de informações esmagava-lhe a mente, quase colapsando-a sob o peso da entidade evocada.
Mas, em contrapartida, a mão direita regenerou-se num piscar de olhos, carne e osso costurados…
Então, o tempo retomou seu curso. O cenário, até então imerso em escuridão, clareou aos poucos.
A entidade dissolveu-se no ar, e a influência da morte que impregnara todo aquele embate simplesmente desapareceu, como se jamais tivesse existido.
Quer dizer… brincar com a morte sempre deixava vestígios.
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