Índice de Capítulo

    As memórias finais de sua jornada, permeadas por sombras e perda, o guiam de volta às terras ocres.

    Ele estava em meio ao vasto deserto de Shamo, onde a luz abrasadora de Aurora queima o firmamento, Kwawe caminha perdido com um semblante marcado pela exaustão e dor, sem rumo após a morte.

    A densa cortina de poeira, alimentada pelas incessantes tempestades de areia, envolve e cerca o homem como um manto. Cada rajada de vento que bate em suas costas e face faz com que o passado e o presente se confundem, criando uma névoa espessa que obscurece sua visão e dificulta a distinção entre o que é “real” e o que é um fantasma do seu antigo eu.

    Mas, interrompendo seu caminhar errante, finalmente, a poeira começa a se dissipar diante de seus olhos, revelando um cenário familiar e estranho. Kwawe se encontra rodeado por inúmeras ovelhas, suas pelagens brancas contrastando com o árido ambiente. Quando olha à sua direita, se vê com um cajado firme em suas mãos, ele é novamente o pastor daquelas que uma vez foram sua companhia mais constante. O velho companheiro, desgastado pelo ócio e pelo tempo, traz novamente aquela sensação de pertencimento a algo que ele havia deixado nas profundezas de seu coração.

    E o deserto, que há muito parecia apenas um lugar de desolação e sofrimento em suas memórias, agora se revela em uma paisagem que se mistura com os belos ecos de seu passado. Imerso nele, sendo levado há mais de dez anos atrás, quando era um jovem com o simples sonho de ver sua família bem, longe das agruras da vida e fortificado em sua fé.

    Ele se rejuvenesce com o passar de uma ventania.

    O cheiro dos animais e a brisa ocasionalmente refrescante batem em seu rosto, carregando o peso das memórias esquecidas e trazendo calmaria. A areia sob seus pés e o som distante das ovelhas criam uma atmosfera de reminiscência que se mistura com a realidade, tão calorosa que não parece mórbida.

    — Esse deserto…

    Sua fala é interrompida por uma presença inesperada, uma voz feminina que parece transcender o tempo e o espaço.

    — Ainda é belo, não é?

    Ao ouvir aquelas palavras, Kwawe é transportado para um dia do passado, um dia tão especial em sua memória que o crepúsculo parece ter chegado mais cedo. Ao seu lado, ele vê a imagem de sua mãe, se materializando junto ao laranja dos céus, envolta em mantos que a cobrem dos pés à cabeça, carregando um balde de água, o mesmo que usava no trajeto que fazia dia após dia. A cena é um retrato da vida dura e pobre que ele conhecera, mas também um lembrete doloroso de um tempo mais simples, quando a esperança e o amor eram os únicos alicerces de sua existência.

    A visão de sua mãe, com olhos cansados mas gentis, faz uma lágrima escorregar pelo seu rosto, revelando a juventude perdida em seu semblante marcado pelo tempo. O deserto, com seu calor implacável e a brisa esporádica, torna-se um pano de fundo desolado para o retorno de uma vida que, apesar da dureza, ainda guarda pequenos momentos de beleza e conforto.

    — Por que nunca vi tanta beleza nisso? Como vejo agora?

    — Via, meu menino… A beleza sempre esteve diante de você, mas a chance de apreciá-la foi tirada quando a fé deixou seu peito. Não se lembra?

    — Quando morri?

    — Exatamente. E agora, sente essa fé?

    — É… eu sinto. Não está mais em minha mente como antes, mas agora que tudo acabou, sinto que posso libertá-la!

    — Não acabou, Kwawe. A salvação é para todos! Basta se arrepender. E mesmo que você seja lançado no lago de fogo, ainda há um paraíso no fim do seu sofrimento! — Ela fala com firmeza, sua mão envolvendo a dele, que agora não está mais desgastada pelos embates da vida. Sua pele negra, como a mais bela das obsidianas, e seus olhos cor de mel aveludado fazem dela um verdadeiro anjo guia. Suas palavras penetraram seu peito, como um bálsamo para feridas nunca fechadas. — Venha para mim! — sussurra, sua voz doce como mel, preenchendo o ambiente com uma paz inexplicável.

    — Eu… — Ele olha para sua mão, agora suave e jovem, como a de um menino. — Vou, mãe! — Aceita com convicção, do fundo de seu coração. Ao fazer isso, ele cai no chão no mundo real, o baque se dissipando em um sorriso sereno. Ele encara o que está além das janelas quebradas, o mundo que ainda pulsa com a vida, agora visto com novos olhos e uma nova esperança, para alguém que já era considerado morto.

    Assim é, e ele bate na porta de Romero, que, nervoso, conta em sua mente os minutos para que tudo acabe… Dez minutos de um ciclo prestes a se fechar, enquanto a paranoia o corrói e o abismo ao seu redor perturba ainda mais sua mente.

    — Covarde! — Indaga a si, um fantasma de sua mente projetado ao seu redor, tocando onde já não há mais o braço. Ele fecha os olhos, tentando evitar encarar a certeza da morte que agora se aproxima para cobrar seu preço.

    — Cadê aquele Romero? — questiona outro fantasma que surge às suas costas, com os dedos pressionando seus olhos.

    — Que desafiou a morte contra aquele caçador? — continua o primeiro, movendo a mão que falta até a outra, com a cicatriz dividindo os dedos. — Que caminhou pelo deserto como um morto-vivo e ascendeu!? Que decidiu mudar o mundo!?

    — Está morto! — responde, olhando adiante, lágrimas caindo a seus pés. — Está morto! O que sou é apenas uma casca, prestes a ruir. E o que sobrou? Nada! Julguei que Rasen e Milk seriam melhores, que poderiam continuar, mas fui covarde ao pensar que daria certo! Eu os joguei nesse abismo e até agora não salvei suas vidas! E nem sei se posso! — Ele se ajoelha, encarando o céu e a noite, a desesperança estampada em seu rosto.

    Ele é o rei, que se atira entre os peões e bispos, esperando sua execução, tão irresponsável quanto quando tinha 18 anos, arriscando a vida de todos no processo em busca de valor e sentido.

    Mas o que são essas coisas? Onde buscá-las? Ele nunca soube, e chegar ali fez com que entendesse que está no fundo do poço, onde nenhuma luz parece penetrar, e o breu está prestes a consumi-lo.

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