Capítulo 178 - Correntezas
Após assistir à entrevista desastrosa de Masaru, Yami se joga no sofá com a despreocupação de quem não pretende se mexer tão cedo. Em suas mãos, o pacote de salgadinhos de cebola com o tempero intenso deixa uma leve camada de pó nos dedos, que ele ignora enquanto enfia mais um punhado na boca. A última lata de refrigerante gelado está sobre a mesinha à frente, quase vazia, mas ele não faz questão de se levantar para repor o estoque.
“Merda… tô precisando fazer mercado, mas será que aqueles velhos vão estar lá? Superlotando o lugar?”
Murmura com preguiça, imaginando as filas e corredores lotados que o aguardariam. Talvez fosse apenas sua mente fugidia buscando uma desculpa para evitar pensar na missão. A ideia de Amai, de ignorar esse problema por ora, o atrai, mas seu desejo por uma rotina simples e despreocupada logo se perde. Ele prefere adiar o inevitável, continuando ali, largado no sofá, com uma bermuda azul-marinho que contrasta com a pele clara de suas pernas esticadas sobre a mesa de centro.
As mãos sujas e grudentas sacodem o pacote em busca dos últimos pedaços crocantes, e ele sorri de canto ao mastigar.
“Mmmm… Ainda bem que guardei esse para hoje… fim…”
Esse raro momento de descontração quase arranca um sorriso completo, mas ele se contém. Com um suspiro, Yami se levanta e estica os músculos como quem se manteve no ócio por muito tempo. Ao lado, seu smartphone pisca incansavelmente, exibindo ligações perdidas e uma infinidade de mensagens acumuladas — entre elas, Amai, contratantes e outros contatos. Ele lança um olhar breve, sem pressa. Hoje, quer apenas o silêncio, uma pausa, ficar um pouco afastado de tudo e de todos, ainda que por algumas horas.
Num impulso rápido, caminha até o banheiro com o telefone em mãos, coloca uma música alta e deixa que os sons de guitarra preencham o ambiente. Liga o chuveiro, deixa a água escorrer, e permite que o dia comece — tão monótono quanto os outros, mas com sua mente inquieta, mais ansiosa que nunca.
Yami começa a sentir algo raro, quase proibido, brotar em seu peito. Com dificuldade, uma centelha de desejo e incômodo pulsa em sua mente, uma sensação perturbadora, estranha e provocante, como uma maré lenta o puxando para um ponto mais profundo de sua própria escuridão… O mundo ao redor, antes cinza e sem brilho, parece subitamente insuficiente, inócuo. As sombras que o cercam ganham um novo tom, prometendo algo mais… algo que lhe tira a paz, mas desperta uma vontade que ele reluta em reconhecer.
Enquanto isso, no segundo distrito de Nova Tóquio, Kurayami, Arthur caminha com passos firmes, consciente do perigo ao seu redor, mas sem medo. Kurayami é um labirinto decadente de ruas estreitas e sinuosas, onde cada esquina parece uma emboscada à espera de um descuido. As luzes de neon oscilantes refletem nas poças sujas, tingindo o chão de vermelho e azul, enquanto o breu envolve os céus, não por ser noite mas, as trevas ali eram tamanhas que luz dificilmente chegava, numa dança mórbida de cores que realça o estado degradado do lugar. Ali, os devotos do Noctismo — uma seita fanática e insana que prega a escuridão como salvação e perdição — se misturam à turba de criminosos e almas perdidas.

O cheiro é uma mistura repulsiva de cigarro, álcool e esgoto, tudo rodeado pelo vapor opressivo das tubulações desgastadas. Cada figura parece um espectro sombrio, de olhares furtivos e corpos enrolados em casacos surrados. Prostitutas cambaleiam na calçada, atraindo fregueses com olhares lânguidos e um misto de desespero egoísta e ambicioso, enquanto gangues cochicham em becos, trocando objetos ilícitos com normalidade.
Vestido com seu terno azul e o crucifixo no pescoço, Arthur chama atenção. Seus cabelos loiros caem em desalinho sobre os olhos, e seu olhar frio e determinado varre o ambiente com desdém. Para ele, aquele é apenas mais um campo de batalha. Não esperava, contudo, ser interpelado tão cedo.
— Ora… não é um cão do estado? — zomba uma voz rouca. À sua frente, um homem de cabelos tingidos de vermelho, jaqueta preta e calça jeans, empunha uma faca, cambaleando em torno de Arthur. Ao lado dele, uma mulher loira em um vestido colante e um jovem de cabelos escuros fumando despreocupadamente o acompanham.
O homem, desafiador, exibe uma cruz invertida no pescoço — o símbolo da seita que adora a escuridão. Ele esboça um sorriso insolente, mas antes que prossiga com a provocação, sente o mundo girar.
Num movimento veloz e preciso, Arthur o golpeia, atirando-o contra a parede com força descomunal. O impacto é seco; o corpo desliza ao chão, enquanto o sangue escorre pela parede, deixando uma marca brutal de sua força. Sua força física, apenas; se Arthur estivesse usando sua aura, o homem não passaria de uma poça de carne e sangue, talvez sequer restasse vivo.
— Cala a boca, merda… vão ficar me amolando? Tô sem saco e sem tempo… — diz com um tom impaciente. A fúria velada em sua voz desperta o medo nos demais, que recuam rapidamente entre as sombras.
Ele observa a parede, onde uma fenda agora se abre, e o sangue pingando forma uma poça ferruginosa, violenta. Não sente nada — nem pena, nem satisfação. O Arthur de antes hesitaria em ferir uma mosca; o de agora… matar vermes é apenas parte da rotina.
— Matar baratas… — murmura para si, a voz desprovida de qualquer emoção. — É isso que me restou sem você, não é? Apenas um vazio… — As palavras saem como o bater de seu peito, ecoando naquele lugar desolado, um espelho quebrado refletindo o que sobrou, revelando uma verdade difícil de encarar. Superar o sofrimento é um desafio, e é preciso mais do que apenas esquecer ou ignorar; é preciso realmente enfrentar e vencer.
Enquanto isso, uma imagem brilha em sua mente: uma sombra de cabelos ruivos dançando, olhos azuis vibrando no escuro à sua frente. Mas logo essas imagens se dissipam, perdendo-se entre os gritos que ecoam nos becos, sejam de prazer ou desespero, envoltos no fétido cheiro da depravação humana. Ele não está mais lá, não nos seus sonhos e pesadelos.
Ele precisa focar. Está ali por um propósito: encontrar o tal vidente.
Pobre homem. Ele chega a um ponto em que suas ideais se tornam como as meias de seus sapatos, destinadas apenas a absorver os odores e os pesares que permeiam sua existência.
Até quando suportará esse fardo?
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.