Capítulo 181 - Propósito Maior
— Finalmente, coloquei as peças no devido lugar. Há mais alguma coisa que deseja que eu faça? — Asmael pergunta, surgindo de um dos muitos portais dimensionais, sua figura enevoada, fragmentos de sombras dissolvendo-se ao seu redor. Seus olhos pousam sobre o imperador, que o encara em silêncio… O olhar sombrio de Luciel exala um misto de serenidade e profundidade, quase ameaçador, como se sondasse algo além do visível. Ele é o arquiteto e observador, a entidade que não toca, mas manipula de longe os fios do destino.
— Meu Imperador? Irmão?
Ele não responde de imediato. Sua presença no trono, um vulto majestoso e imóvel, parece entrelaçada ao salão, cujo ar está pesado com lembranças de tramas urdidas e decisões feitas. Finalmente, ele fala, sua voz retumbando com um tom profundo, quase acusatório:
— Não há mais nada que precise ser feito. Na verdade, Asmael, diga-me… você sente raiva de mim?
A pergunta soa estranha, penetrando a carapaça de controle da entidade, e por um momento, ele perde a compostura.
— R-raiva? — A gagueira o trai e ele se amaldiçoa internamente. Tentando disfarçar, ele ajeita a postura, mas o desconforto persiste, envolvendo-o como uma nuvem densa de suspeitas. Luciel o teria descoberto?
O rei, diante da resposta, inclina-se levemente para frente, os dedos entrelaçados sob o queixo, os olhos como abismos escuros que absorvem cada reação de seu dito cão.
— Sou responsável pelo seu sofrimento, não é? — Sua voz é tranquila, um murmúrio sombrio que mergulha nas profundezas das emoções reprimidas. — Então… me odeia?
A hesitação cresce dentro dele como uma ferida mal cicatrizada.
— Sofrer… são palavras humanas, meu senhor, singelas e simplórias. Se há um propósito maior, não vejo mal nisso… — ele responde com uma calma ensaiada. Palavras moldadas na fornalha da falsidade. — Eu diria que não o odeio! Talvez tenha… mas isso já passou. Se ainda fosse o caso, não estaríamos aqui, não é?
Luciel fica em silêncio por um instante, mas algo em sua expressão indica que não está convencido. Ele continua observando, uma esfinge enigmática, antes de murmurar, quase como um pensamento que escapa sem ser dirigido a ninguém.
— Propósito… — Ele estende a palavra, como se estivesse testando seu peso. — Os humanos, essas criaturas efêmeras, apegam-se a essa noção de ‘propósito’ como quem se agarra a um último pedaço de madeira em um mar revolto. Temem que, sem esse sentido, sucumbiriam à insignificância do vazio ao redor. Mas esse consolo frágil não passa de uma ilusão, uma invenção para aquietar mentes aflitas que se recusam a aceitar o que é existir sem um norte… Ou seja, sem Elum! — Seus olhos se acendem, e a atmosfera no salão parece pulsar com a intensidade de sua presença. — Eu não diria que seguimos por um propósito maior… mas uma evolução. Uma evolução que transcende o sofrimento e, mais ainda, a falsa promessa de redenção que a ordem oferece. Mas em breve… em breve, tudo mudará para sempre. Você não deseja ver um mundo onde nós, demônios, não sejamos apenas sombras fugazes?
— Desejo… meu senhor! — Asmael sussurra, mas o imperador não se dá por satisfeito.
— Eu não ouvi direito — rebate ele, a voz soando como uma lâmina afiada.
— DESEJO, MEU SENHOR! — Desta vez, ele grita, sentindo-se tragado pela força das próprias palavras. E, como que respondendo àquela intensidade, ele se ajoelha, curvando-se diante do trono, ainda que uma parte de si questione o significado desse ato.
Mas a resposta está dada — todos querem que o ciclo se rompa, mas ele realmente se romperá? A verdade é que, por mais que desejem, o ciclo dificilmente cederá. Então, ali estão, separados por uma barreira invisível de desilusão, como observadores de uma mesma tragédia.
E você, o que faria com sua própria desilusão? Mudaria seus pensamentos, tentaria uma nova direção? Ou insistiria no mesmo caminho, trazendo mais caos e repetição para essa espiral sem fim?
Luciel opta pelo caos, e ergue-se lentamente, seus movimentos solenes e meticulosos, como um deus descendo dos céus para julgar seus súditos. Sua voz reverbera, carregada com uma certeza implacável:
— Sentimentos… um fardo comum a nós todos, sentimentos de insatisfação, ódio, até amor… Mas nós, Asmael, aqueles que ousaram desafiar as correntes do destino, somos superiores. As emoções humanas servem apenas para condená-los à fraqueza. Mas nós? Não cairemos nesse abismo! Ascenderemos, dele faremos nossa morada e reinado!
As palavras parecem ecoar pelas paredes do salão, fortificando o palácio de dentro para fora, e por um instante, Asmael sente-se reduzido, esmagado pela presença do imperador. Algo dentro dele quer gritar, mas ele reprime essa faísca de rebeldia, prostrando-se ainda mais.
— Irá… irá remover essas fraquezas? — As palavras do demônio escapam como um sussurro de desespero. Afinal, o que fez o grandioso imperador sair de seu trono? Por que dessas perguntas e questionamentos?
Luciel hesita, uma leve pausa que poderia passar despercebida a qualquer outro, mas não a ele, cuja mente está atenta a cada movimento.
Então, finalmente, com uma frieza controlada, ele diz:
— Irei encontrar-me com Alum, senhor do abismo. Ele clama por um dia em que nenhuma luz, nem mesmo uma centelha, permaneça em qualquer canto deste mundo… ou dos demais!
Ele lança um último olhar a Asmael antes de virar-se e caminhar em direção ao grandioso portão que é a entrada do palácio, seus passos ecoando e depois se tornando um sussurro distante… e quando a silhueta do rei desaparece, o demônio ergue-se, seu corpo tenso, como se cada músculo estivesse carregado com o peso de anos de arrependimento e reflexões… como se aguentar aquilo já não estivesse mais dando.
“Somos sombras… Não, somos erros que a ordem um dia quis ignorar, mas que sempre voltam para atormentar suas ambições… E erros, como esses, não podem ser ignorados para sempre! O mundo só irá florescer quando erros deixarem de existir!”
A certeza amargura-lhe a mente.
Seu senhor, Luciel, promete um mundo novo, mas ele sabe que, se esse mundo surgir das sombras de seus próprios erros, a condenação será inevitável. Ele contempla o destino com uma inquietação silenciosa, questionando-se sobre seu próprio papel nesse desenlace — e sobre todos aqueles que já foram perdidos.
Por isso, ele é opositor…
O tempo, afinal, não retrocede verdadeiramente; o que volta é uma repetição sem alma, enquanto o futuro permanece apenas como um vislumbre do acaso. O verdadeiro tempo é o presente, o agora imutável. E ainda assim, mesmo possuindo o poder de distorcer tempo e espaço, ele, um demônio de imenso poder, descobre que não pode mudar o essencial…
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